31 de ago. de 2016

breve reinado





(Fábio d'Aroma)








teve um dia o seu reinado

dona maria a louca e seu rosário

tem agora o seu momento dado

o vice traidor e temerário




morreu louca louquinha em seu castelo

a louca maria não mais dona do seu reinado

morrerá um dia o traidor que de segundo

quis ser ele só o principal

num dia seco do planalto central

num quarto triste do palácio de cristal

sozinho esquecido e odiado

como foi a louca dona maria em seu reinado




27.8.2016

30 de ago. de 2016

Trova - ó senhor, senhor cidadão


(Ivan Wasth - reunião dos inconfidentes)






ó senhor, senhor cidadão

agora vós me respondeis

com quantos silvérios dos reis

se engana toda uma nação




27.8.2016

26 de ago. de 2016

trova




(Zevi Blum - Haephestus)









se tudo o que é bom

sempre pode melhorar

tudo o que é ruim

somente tende a piorar




24 de ago. de 2016

Narrar não é preciso




(Almeida Prado - moça lendo)



Narrar não é preciso

apenas necessário.

Não basta à vida

a vida vivida:

a vida só é plenitude,

quando narrada

mil vezes repetida.

Como as contas do rosário

entre os dedos do cristão

são os dias lembrados

são os dias contados

mais do que história

gotas que escorrem 

orvalhando a memória

com paciente presciência

prestam ao deus tempo

o culto da sua existência.







s/d

23 de ago. de 2016

mesa de bar

(Loic Allemand - autoportrait)





mesa de bar

copo de chopp

prosa ligeira

muita bobeira

risos sem nexo

moça bonita

ninguém nem liga

num canto o poeta

sonha e medita

e só ele pensa

menos no amor

e muito mais no sexo


18.6.2016


20 de ago. de 2016

Trova - molhei-me, ensaboei-me




(Francis Gruber - L'amour quitte la terre,1946)







molhei-me, ensaboei-me,

enxaguei-me, enxuguei-me

lágrimas não sequei 

– as que por ti chorei






28.6.2016


17 de ago. de 2016

olho a rua



(Antonio Sgarbossa - che bella passeggiata)







olho a rua

por trás da vidraça

gente que passa

olho a rua

pessoas

muitas pessoas

ao frio da tarde

agasalhadas

enroladas

ensimesmadas

no passo ligeiro

de suas vidas

enroladas

ensimesmadas

vidas que

lhes foram dadas

vidas sentidas

vidas vividas

vívidas vidas

vidas proscritas

que nunca serão

nem escritas

nem lidas


18.6.2016


15 de ago. de 2016

Trova - a liberdade que sonho




(Claudio Dantas)




A liberdade que sonho

É uma coisa esquisita:

Se nunca está onde a ponho,

É porque virou visita.








9.7.2016

13 de ago. de 2016

Tensão





(François Millet)




Sempre tão tensas

nossas conversas.

Não alcanço o que pensas

quando tergiversas.

Não espero futuro,

não despejo inúteis palavras.

Somente o que te juro

são o ouro que tu lavras.

Na bateia das minhas ideias

faze-te de ouvidos moucos

e te defendes em colmeias

como inseto em voos loucos.

Sempre tão tensas

nossas conversas

que me dispensas

e te dispersas.




23.7.2016

12 de ago. de 2016

rosa dos ventos




(Paul Klee - Zitronen)





não tenho sul

não tenho norte

não vou para o leste

nem volto para o oeste

caminheiro sem caminho

navegante sem oceano

astronauta sem estrela

solitário no mundo

no mundo me perdi




24.7.2016

11 de ago. de 2016

PERMANÊNCIA



(Gauguin)




Já se escreveram todos os contos, todos os romances.

Já se compuseram todas as canções, todas as sonatas, todas as sinfonias.

Já se inspiraram todos os poemas, todos os versos.

Já se riscaram todos os prédios, todas as moradias.

Já se esculpiram todas as efígies, todas as esculturas.

Já se dançaram todas as coreografias, todos os gestos.

Já todas as palavras foram ditas; todos os gestos, repetidos.

Já todas as vidas que havia para viver foram vividas.

Mesmo assim continuam os artistas e todos os seres humanos

a compor melodias

inventar histórias

rabiscar poemas

inventar formas

dançar alegrias

riscar possibilidades

repetir palavras

recompor as vidas

repetir o amor

a dor

a saudade

a emoção

como se nenhum conto tivesse sido contado

como se nenhum canto tivesse sido cantado

nenhum romance, enredado

nenhum poema, declamado

nenhuma choupana – mísera choupana – reerguida

nenhuma figura, delineada

nenhum gesto, repetido

nenhuma palavra, soletrada

nenhuma vida, revirada e revivida

e do pó dos caminhos

mesmo do pó das estrelas

– nós os seres que vivemos nesta casa de noz –

recriamos

da pedra, da palavra, do peito, do sangue, do suor, do gesto, do cérebro

livros

danças

sons

figuras

pirâmides

vidas

para o inefável e inexorável desejo de permanecer.



18.7.2016


9 de ago. de 2016

Utopias



(Luke Fildes - Houseless and Hungry - 1869)



Na madrugada fria,

fui encontrar minha utopia

dormindo sob marquises

no meio de muitos trapos.

Faminta, nem lembrava os dias felizes,

quando batíamos longo papos

sobre a miséria humana

e sonhávamos ambos com dias melhores

muito além da vida insana

de muito trabalho e cada vez mais pobres

que levavam – e ainda levam – proletários do mundo inteiro

sob o jugo do capital.

Sentei-me ao lado de minha utopia

- queria oferecer-lhe algum dinheiro –

embora desde muito eu já sabia

que isso lhe faria mal.

Nem falar ela podia, minha pobre utopia,

ali entre tantos mendigos e sem teto,

entre o povo que ela sempre defendia,

enrolada nos trapos como um feto

mal nascido e mal criado.

Tomei-a nos meus braços,

aqueci-a com meus abraços,

dizendo-lhe o quanto havia procurado

por sua trilha, por seus traços

pelos caminhos da minha vida.

Quase morta, na miséria mais profunda,

sua voz veio a mim num fio lamentoso,

naquele momento tenebroso,

naquela calçada mais imunda.

E disse-me o que eu nunca pensara

que um dia pudesse admitir:

que fosse eu uma pessoa rara,

não deixando nunca de sorrir,

não deixando nunca de lutar,

que da minha luta e do meu sorriso

dependia que ela pudesse se salvar.

Que tivesse, enfim, muito juízo

para continuar tendo esperança

de um dia tudo melhorar.

Se eu sonhasse, se eu não desistisse,

foi o que ela, a minha utopia, me disse,

ela aos poucos sairia desse coma

e de novo brilharia, como brilham as utopias,

para todos os povos em qualquer idioma,

colocando nos olhos de cada ser humano

a esperança de uma vida menos vagabunda.

Portanto, minhas companheiras e meus camaradas,

o que ficou daquele encontro na calçada,

naquela fria e distante madrugada,

é o pedido, quase uma exigência,

que não tomemos ciência

de quão distante estejam nossos desejos, nossas esperanças,

não importa se são longos os tempos de tristeza,

que os enfrentemos com braveza,

que nos aqueçamos nas noites frias

com novas canções, com novas danças,

e, unindo nossas mãos como as crianças,

não abandonemos nunca as nossas utopias.


5.8.2016












8 de ago. de 2016

noturno número 6

(Campofiorito - Quirino) 





noite sem lua

navega no breu

a imaginação do poeta

pelas estrelas do céu

solidão sua amiga dileta

vento companheiro

de vigília e procura



caminha à toa pela rua

como se fosse destino

perder pela noite o tino

ralar nas pedras a amargura



não sofre no entanto

apenas entoa o canto

de todo lobo solitário

vigia a sombra do rato

assusta um retardatário

dança pelas calçadas

até furar o sapato



no rosto o riso das palhaçadas

do velho circo do interior

passa o poeta pelo túnel do vento

rodopia redemoinho e flor

mastiga o doce do tempo

e vira de novo um menino

perdido totalmente o tino



na noite sem lua

vagando pela rua

no meio do breu

em busca de um caminho

em busca de um carinho

que nunca recebeu


13.7.2016








7 de ago. de 2016

noturno número 5



(Pawel Kuczynski)






várias noites já alta a madrugada

no silêncio do meu quarto

sinto uma vibração profunda

uma leve vibração que provém

das entranhas da terra

perpassa o solo até a madeira

da cama e alcança meu corpo

uma vibração de vida leve e breve

onda que traz das profundezas

a certeza de que ainda vivo

e diz baixinho aos meus ouvidos

- é noite

- há vida

- não morra!


19.6.2016



5 de ago. de 2016

noturno número 4





(Vítor Fernandes - Ibitipoca - MG)




com saudades das noites de Minas

escrevo noturnos ao entardecer

quando o sol ainda escorre o amarelo ouro

pelos muros negros da rua deserta

é domingo

os poucos transeuntes olham desconfiados

para o céu azul sem uma nuvem sequer

parece que esperam o tempo mudar a qualquer instante

é domingo

o tempo escoa a preguiça e o passo lento

não haverá noite de estrelas ou de luar

é domingo

mata-me aos poucos a saudade 

das noites de Minas 







19.6.2016

4 de ago. de 2016

noturno número 3



(Rob Gonsalves - New Moon Eclipsed)






quando é noite de lua cheia

é tão bom ver a lua

no céu a brilhar

porque se não fosse

noite de lua cheia

não se poderia ver a lua

no céu a brilhar

assim como é tão óbvio

dizer que é noite e há luar

é tão bom poder dizer

quanto é tão bom apreciar

a lua cheia no céu a brilhar

(o óbvio também é poesia)



18.6.2016

3 de ago. de 2016

noturno número 2



(Ceri Richards)




canta o grilo

a coruja pia

a raiz enraíza

a folha cai

o silêncio silencia

a noite precisa

o sonho e a lua

a vida suspira

à rua varre o vento

puxa o frio ao cobertor

a cama range

trila o grilo

pia a coruja

ao longe

cresce a planta

vergam os galhos

a lua se esconde

embranquece a nuvem

o sonho pesa

o rato arrepia

o gato pula

lambe os bigodes

a vizinha insone

toca baixinho

o piano que geme

um noturno de Chopin



18.6.2016

2 de ago. de 2016

noturno número 1



(Gustave Caillebotte)





dorme a noite

aos raios da lua

dorme a amada

em mim enroscada

toda calma

toda nua

os lábios a sibilar

aos meus ouvidos

cantigas de ninar

os seios

em meu peito a arfar

o ventre úmido a roçar

meu ventre

meu sexo

lá fora estrelas eternas

brilham menos ao luar

sonhos de delícias

que eu não posso imaginar

a amada em meu leito

com seu jeito de luar

ah, a amada minha, a noite

que foi feita para sonhar

à luz do luar e ao açoite

do vento sul

do vento frio

e nessa noite, ó amada, oh sim

quem me dera se assim fosse

quem me dera se fosse assim

18.6.2016