31 de out. de 2016

leitura




(Claude Monet; a woman reading)




ler um bom romance é para mim um exercício complexo

pois me enrolo sempre num terno paradoxo

quando não sei se acompanho o desejo ortodoxo

de chegar logo ao fim e saboreio apenas a trama prolixa

ou leio devagar a ruminar cada palavra em doce amplexo









29.10.2016

28 de out. de 2016

gente



(Érika Cardoso - Mama África)







não sou negro

a minha pele é que é negra

não sou branco

a minha pele é que é branca

não sou amarelo

a minha pele é que é amarela

branco negro amarelo

e mil outros tons tem a pele

de gente que nasceu e vive

sob sol escaldante

entre borrascas e brumas nevosas

em climas de trópicos chuvosos

de gente que mora

em cidades de cimento e aço

em palhoças à beira de rios

em casas fincadas sobre estacas

dentro de lagos

em casebres dependurados

em morros derriçados

em choças de pau-a-pique

de pedra ou de argila

cobertas com folhas de palmeiras

à beira de vulcões

à sombra de baobás

ao sol do deserto

às margens de rios e mares

sobre montanhas nevadas

gente alta

gente baixinha

gente de pescoço comprido

gente de olhos irisados

cada um com sua cor

negros

brancos

amarelos

todos têm cabeça tronco e membros

comem folhas

comem carnes

comem frutos e raízes

falam com vozes roucas

falam com vozes finas

e cantam

e dançam

e até guerreiam

se têm cores as suas peles

se têm cores os seus olhos

brancos são seus dentes

brancos são seus ossos

caminham todos sobre os pés

trabalham todos com as mãos

pensam todos com o cérebro

têm todos bocas que riem e falam

bocas que comem e beijam

narizes que cheiram

ouvidos que ouvem

olhos que veem e contemplam

a pele que sente o vento

e a carícia de outra mão

arrepia igual sem distinção de cor

não tem cor o sentimento

não tem cor o pensamento

e bate em cada peito igual coração

que faz correr em todas as veias

o mesmo sangue rubro

carregando a mesma vida multicor

gente branca

gente preta

gente parda

gente amarela

gente de cores e sabores

gente apenas

contada aos bilhões

são átomos invisíveis

num planeta perdido e solitário

a navegar por galáxias infinitas



15.10.2016

27 de out. de 2016

vida e livros





(Foto de Chema Madoz)




tudo o que aprendi da vida veio dos livros que li

sem mestres

sem deuses

tudo o que a vida me ensinou transformei em livros

não necessariamente livros escritos ou publicados

mas livros devidamente encadernados em minha cabeça

sem traumas

sem dores

não faço da vida e dos livros que sempre li e reli

motivo de lamentações nem de estranhas devoções

cultivo apenas dentro de mim a minha eterna solidão

sem queixas

sem lágrimas

sou o que sou longe de mandamentos obscuros

faço de cada passo a decisão de apenas viver

com meus fantasmas e meus desejos e minha frustrações

como se a escada para a treva fosse apenas a lei da vida

sem mestres

sem deuses

sem traumas

sem dores

sem queixas

sem lágrimas

porque a vida é apenas um livro que se lê assim



22.10.2016



26 de out. de 2016

LEMBRAR PARA VIVER







Dias de penúria e felicidade marcaram meus quinze primeiros anos de vida. Não lhes tenho nenhum sentimento de saudade nem desejaria que voltassem. Então, para que relembrá-los? Talvez para saber quem eu fui, quem eu sou. Para isso servem as memórias. E, proustianamente, vou, aqui, tentar desvendar mistérios, pequeníssimos, mas fundamentais mistérios de minha vida. Delimito no tempo essas memórias: os quinze anos, quando me formei no que nessa época se denominava ginasial. Precisamente o dia de minha formatura, quando, às voltas com o discurso que eu teria que fazer, como orador da turma, iniciou-se uma briga entre mim e meu irmão Marcos. Na verdade, ele é quem brigava comigo. Sexto filho de uma prole de que restaram apenas quatro irmãos – duas irmãs, Maria Amélia e Irene morreram ainda no puerpério, muitos anos antes de mim – tinha vindo ao mundo doze anos após aquele que era até então o caçula, Marcos, com quem vivia às turras. Tive, com ele, poucos momentos de distensão ao longo de toda a sua vida. Nossa relação era sempre muito tensa: temia-o mais do que o amava como acho que os irmãos de sangue devem amar-se. Era doente, o meu irmão, sofria de alcoolismo e, quando bebia, tinha crises de violência e rancor exacerbados, muitas vezes voltados para mim, como se eu tivesse culpa de ter nascido e tirado o seu lugar ou suas oportunidades de vida, sei lá, nunca consegui descobrir por que gostava de me xingar, de me agredir verbalmente. E nesse dia, em especial, tinha sido muito duro comigo: dissera que esperaria que eu crescesse, que eu me tornasse homem, para enfrentá-lo e, então, ele me daria uma surra. Sei, agora, que a promessa da surra era fanfarronice da bebedeira, mas vivi muitos e muitos anos atormentado por essa possibilidade, já que ele sempre foi muito mais forte do que eu. No auge da discussão, chegou meu padrinho de batismo, Geraldo Faria. Sim, eu tive um padrinho de batismo, não podia nunca ter escapado do catolicismo beato de minha mãe. Há uma foto ridícula de primeira comunhão, na qual um menino franzino, assustado, de terno jaquetão, calças curtas, sapatos (coisa rara) e meias brancas segura uma vela. Típica foto da época, padrão de vexames em datas específicas de que quase ninguém escapava. A fotografia não era algo comum, só os profissionais ousavam, com suas câmeras enormes, colocadas em tripés, atrás das quais o fotógrafo se escondia sob um pano negro, obter flagrantes de momentos históricos das famílias: casamentos, batismos, bodas e outras efemérides. Tergiverso, à Proust, para quem as memórias devem ser assim, oceânicas, longas, detalhadas, aborrecidas talvez para a maioria dos leitores, mas com o sabor de madalenas daquele momento específico de uma lembrança que desperta sensações que desatam nós que se enredam e desenredam em teias de sentimentos e de pedaços de vida. Nunca provei uma madalena. Nem mesmo qualquer mulher com tal nome. Minhas memórias gustativas prendem-se aos sabores quase primitivos de uma broa de fubá ou de um frango com quiabo e outras comidas típicas do interior de Minas, da velha Lavras, onde nasci. Voltemos ao meu padrinho, Geraldo. Era ele um tipo folgazão, amplo, bigode farto no rosto onde pontuava sempre um sorriso maroto. Era também uma espécie de contraparente – e eu me embaralhava nesses parentescos e nessas redes familiares, porque era filho de minha tia – não, ela não era exatamente minha tia, mas tia de meu pai – dona Elisa Faria, cujo marido... bem, é mais ou menos isso, são figuras que povoam mais a minha imaginação do que realmente lembranças concretas de sua real localização numa pretensa árvore genealógica de minha família, já que eu, por vontade e por circunstâncias, quebrei quase todos os laços que me prendiam à parentalha espalhada por aí. Meu padrinho Geraldo era, então, para mim, uma figura real e presente, com seu jeito brincalhão, com suas histórias e, hoje percebo algo que mal percebia à época, com sua possível cultura. Uma de suas histórias muito me intrigou e ilustra bem sua personalidade. Contava que, em sua época de estudante, vivia com outros rapazes em uma república. As repúblicas marcaram época: eram casas alugadas por grupos de estudantes forasteiros que iam estudar longe de suas cidades de origem. Transformavam-se, claro, em antros de farras e estripulias de uma juventude que contava com muito poucas opções de divertimento. Pois, nessa república onde morava meu padrinho, segundo ele, havia uma tradição entre os moços: no final do dia, depois do banho, todos se postavam às janelas para paquerar e conversar com as moças que passavam pela rua. Impecáveis, com suas camisas brancas de colarinho e gravata, mas completamente nus da cintura para baixo. Inocente, eu jamais atinei por que assim agiam os rapazes. Mas a história prossegue: um dia, Geraldo, moleque como ele só, descobriu que um grande espelho que havia na sala, se colocado num determinado ângulo, poderia fornecer uma grande oportunidade de pregar uma peça nos colegas. Assim, depois dos devidos ajustes na posição do tal espelho, ele seguiu o ritual de sempre, com os amigos. Porém, depois do banho, vestiu-se e foi para o portão, enquanto os demais rapazes postaram-se à janela. Divertiu-se ele às escâncaras com a reação das moças: elas paravam para conversar com os rapazes da janela e iam embora rapidamente, algumas ruborizadas, outras divertidas, com a visão de várias bundas refletidas no grande espelho. Também nunca soube – porque acho que ele nunca contou – como terminou essa patacoada. Era assim o meu padrinho Geraldo., com seu humor, suas histórias de uma juventude passada em algum lugar – seria Campo Belo ou Belo Horizonte? – completamente ignorado por mim, como também não sei até que nível de estudos ele completou. Sei que era culto, porque, naquele dia, ao chegar à minha casa, no momento mesmo da discussão com o Marcos, ele achou um motivo para me afastar da briga, me chamar de lado e me dizer algumas reconfortantes palavras e, principalmente, me entregar um presente: um livro de capa dura e vermelha, uma edição da FTD de Os Lusíadas. Não me lembro de mais nada desse dia, nem de como foi a cerimônia de formatura, tudo se apagou da minha memória, nenhum esforço recuperou os demais acontecimentos de uma data tão importante, ficou somente a memória da briga com meu irmão, porque está atrelada ao presente de meu padrinho Geraldo, por quem não tive oportunidade de chorar, muitos anos mais tarde, quando ele morreu. Choro-o agora, com todo o meu ser, porque uma lágrima de saudade não tem data nem hora para ser vertida por aqueles que marcaram tão profundamente nossas vidas, mesmo que no instante de um relâmpago, num momento crucial e salvador.



Joinville/SC – 4.6.2014

25 de out. de 2016

para itamar assumpção











por que morreu itamar assumpção

por que

nego duro no batuque

nego duro no batuque

por que morreu itamar assumpção

aos cinquenta e três anos de idade

por que morreu

nego duro no batuque

nego duro no batuque

nego duro na dor

por que morreu

com tanto humor

levando a dor

levando o batuque

doi doi doi doi

morrer itamar

sem nenhuma assunção

por que morrer assim

num batuque assim

por que morreu

assumpção

por que morreu

itamar

índio negro a cantar

sofreu ou não sofreu itamar

mas morreu

e quem sofreu fui eu

ó itamar

por que por que por que

cinquenta e três

53 malditos

53 marginais

ó por que morreu

por que

ita

       mar

                 mar

                             maravilha

e tenho dito

meu preto

brasileiro

pretobrás


22.10.2016



24 de out. de 2016

espreita





(Taro Hata)




confesso que vi

vi e revi e vivi

o instante sublime

fugaz

intempestivo

inusitado

nunca esperado

os meus olhos

espantou-os a visão

e quase

quase

se recusaram a ver

mas vi

vi e olhei e observei

e espreitei

por detrás das folhas

do galho da jabuticabeira

o fruto negro engasgado na boca

eu vi e quase caí

me segurei

me arrepiei

e os pelos de minha virilha

enrijeceram

os meus olhos arregalaram

os meus doze anos pesaram

os galhos da jabuticabeira envergaram

e eu vi e revi e vivi

pela janela aberta

entrando no banho

a moça nuinha

nuinha

nua

eu

vi



15.10.2016


16 de out. de 2016

EROSKAI: HAI-KAI



 
(Gaston de Saint Croix)






1.

Dedo afasta  calcinha
preta.
Alcança a  língua tua
boceta.

2.

A língua cobra
  dobra
 por dobra
se desdobra.

3.

Clitóris duro
na língua preso:
só ele goza.
Teso.

4.

Do fundo
vem
 o doce sumo.
 Sumo bem.

5.

Ó vaginíssima:
beber
teu sumo,  depois
morrer!
  
6.

O nariz,
matreiro,
sente o gosto do teu
cheiro.

7.

Lábio com
lábio:
fico mais
sábio.

8.

Penetra a língua mais
fundo:
encontro, enfim, o teu
mundo.

9.

Gemes e morres em gozo
louco:
a língua expande. E acha
pouco.

10.

Na greta, o grelo; na fenda,
a gruta.
Da língua escorre o gosto
da fruta.

 11.

Ó dulcíssimo vaso
vaginal:
planto em ti meu gozo
paradoxal.

12.

Abre-te, boceta, à língua,
ao dedo:
revela, ao toque, o teu
segredo!

13.

Enquanto a língua a tua gruta
explora:
embaixo, troncho, o pênis
chora.

14.

Fendida em vales pela língua
 molhada,
rompe a vulva a lagoa
represada.

15.

Quando o gozo
 vem,
bebo o sumo que tua greta
tem.

  
16.

Não te nega a língua, se pêlos
tens.
Mas lambe-te louca se lisa
vens.

17.

Carinhosa, a língua molhadinha
te chama.
Única fenda que na água
se inflama.

18.

Racha, greta, gruta: o teu
nome?
À língua importa que te
come.

19.

Boceta ou caixa
de pandora:
quem te chupa
te adora.

20.

Goza, enfim, goza. Afoga,
na boca,
a língua que te chupa
louca.


29.8.97

10 de out. de 2016

desnudo-me






(Lucien Freud)




desnudo-me para ti

não exatamente a nudez de meu corpo

embora a nudez das carnes flácidas e velhas pouco me incomode

sou como sou e nada há a fazer sobre isso

mas desnudo para ti minha vida

meus pensamentos

aquilo que chamam alma e que eu chamo apenas o que eu penso

e quando me desnudo para ti

dispo para mim mesmo todas as mágoas

todos os dissabores

e conflitos

deixo que venham à tona figuras de minha vida

como o pai que nunca tive

ausente sempre e sempre distante

dele nunca ouvi uma palavra sequer que se parecesse com a palavra filho

abandonou-me por outros filhos

irmãos de sangue mas não de compartilhamento de emoções e de vida

temerosos talvez que lhes surrupiasse parte de alguma pretensa herança

de um pai do qual não queria nem mesmo um retrato na parede

sim

falo do meu pai como a sombra que se foi sem ter sido

não devia merecer de mim nem mesmo a queixa desses versos sofridos

deixemo-lo em seu túmulo em algum cemitério perdido nas montanhas de minas

que falta não fez nem falta fará à minha vida

desnudo-me para ti

para falar de minha mãe

não

não posso falar de minha mãe

que a dor de sua partida é dor que dói cada dia

cada segundo

picada de agulha no coração

saudade que se carrega em cada verso

em cada momento

fique minha mãe aqui dentro de mim apenas

como luz de uma sombra que não se apaga

de quem mais posso falar nesse desnudamento

de minha irmã que tão cedo se foi

sem ter visto crescer uma só das flores que deixou

já duas delas também estioladas

de meus irmãos homens o que foi pai no lugar daquele

e o que foi padrasto no lugar do que não houve

deixemo-los também

que os sentimentos diversos a cada um devotado

não merecem mais qualquer julgamento

cumpriram o que deviam ter cumprido

para que eu seja o que sou

nada mais

fujamos dos mortos

fujo dos mortos

não porque os tema ou porque não os cultue

fujo deles como se foge da sombra ao cair da tarde

estão lá como a sombra e não há o que fazer para nos livrarmos deles

deixemo-los e sigamos

desnudo-me então para ti dos trapos que foram os fatos de minha vida

a vida pobre na infância – padrão de minha classe social

num país em que só os abastados têm a comemorar os presentes de natal

inúteis lembranças

como serão inúteis quaisquer sentimentos de piedade improvavelmente despertados

não

deixemos a pobreza para os pobres e aos pobres toda a recompensa

de pensar que ganharão o reino dos céus

desnudo para ti minhas profissões

professor talvez a mais honrada

que tudo me deu num momento e tudo me tirou no momento seguinte

mérito e demérito de ensinar e nada aprender

que não seja apenas a impossibilidade de civilizar

não

não vale a pena nem mesmo que se apequene a já tão pequena alma que carrego

se vou despir-me

que não seja das poucas não misérias inqualificáveis

que a vida me serviu como pratos quentes e que eu descobri gelados

que não me dispa de minhas poucas certezas

e de minhas inquantificáveis incertezas

não posso tampouco despir-me da minha absoluta descrença

em tudo quanto cheire a metafísica

ou a deuses tísicos a zombar da pequenez humana

portanto

se queres ver-me nu

espera que seja eu apenas a sombra que passou e não deixou rastros

e verás que tudo que fui

tudo que sou

e tudo que ainda possa ser

torna-se nada porque nada

absolutamente nada

vale ou terá valido o esforço de minha vida

e assim

nu

nadificado

nuditizado

desqualificado

deixarei que as flores que vierem a nascer de minhas cinzas

tenham apenas um leve perfume da descrença absoluta



ah sim

acrescento um post scriptum

nesse meu retrato desnudo em preto e branco

não são essas minhas palavras

não são esses meus versos loucos

o meu testamento

que a vida que corre em minhas veias

tem ainda muito a correr e sofrer





6.10.2016

8 de out. de 2016

charada



(A. não identificado)







a vida que sonhamos viver

zomba da vida que vivemos

no jogo entre ter e ser

somos nós que sempre perdemos






5.10.2016

7 de out. de 2016

sexo e política





(Jan SADELER -Une orgie avant le déluge- 17siecle - Musee du Louvre)



deixem-me compor

os versos mais lúbricos

não queiram sancionar

e confundir

meus anseios de amor e sexo

com todo o turbilhão

da luta de classes

do ódio ao burguês

e às injustiças do mundo

escondo no gozo

os gritos de guerra

encravo nos orgasmos

o espanto dos miseráveis

e sonho com um mundo

de gozos e taras e igualdades

em que da bunda gorda

de cada burguês que chutarmos

brote assim de repente

a brisa que levanta

a saia das mulheres

deixem-me pois

compor os meus delírios

de ventres abertos

e pernas torneadas

ao mesmo tempo decompor

do pútrido charco

da luta sem fim

os desmandos e desastres

de cada burguês

no fim dos seus tempos



17.9.2016


6 de out. de 2016

ingenuidade




(Van Gogh - Marguerite Gachet ao piano)





a vida parece a bagatela

tocada assim de leve ao piano

quando se começa a gostar dela

no palco vazio já caiu o pano




4.10.2016

5 de out. de 2016

os caminhos estão gastos




(Valquíria Cavalcante)






os caminhos estão gastos

com as marcas dos meus pés

meus pés estão cheios de calos

com as marcas dos caminhos

olho ao redor

não vejo mais os meus companheiros

estão quase todos mortos

e os que não estão mortos

estão distantes



minha vida parece feita de miasmas

um fogo-fátuo que se estiola

sem ter de fato brilhado algum dia



as paredes da minha casa têm manchas

de bolor e de tinta carcomida pelo tempo



o canto do sabiá lá fora

no começo da manhã

parece triste e sem sentido

no meio de tantos edifícios feios e cinzentos



as manhãs de outubro

que traziam o cheiro da primavera

nos pingos da chuva

são apenas manhãs sem brilho e sem esperança



gostava de ouvir músicas antigas

quando era jovem

e essas músicas agora são tão mais antigas

que perderam todo o sentido

agora são antigas

as músicas de quando eu era jovem

e ninguém mais as assobia

ou cantarola

pelas madrugadas fundas

de noites estreladas



carrego nos ombros meu pessimismo

e não sou nem um pouco

qualquer coisa do tipo

palmatória do mundo

o tempo pesa sim

sem que o possa culpar de meus males

sempre o tive como aliado

jogava o seu jogo

agora que ele me abandona

pelos caminhos de areia grossa

que ainda tenho diante dos olhos

busco em vão que meus passos

ainda deixem pegadas ao lado

das urzes e das pedras

que ainda cante o tempo e a vida

isso apenas acende um pouco o sol

de manhãs cada vez mais raras



inútil a busca por companheiros mortos

inútil o encontro com companheiros vivos

a ninguém será dado assistir

aos meus funerais



a madrugada que se esvai

não traz de volta as manhãs de outubro

quando um dia fui eu mesmo

a subir a lenta e longa ladeira

da minha casa para a praça de meus folguedos

para a praça onde nasciam a cada dia e cada noite

a esperança de um amor

e a utopia do sonho inútil

só o que me resta a fazer

é aconchegar-me às cobertas

dormir até que o sol a pino

anuncie o começo do entardecer



4.10.2016

4 de out. de 2016

lirismo antigo




(Vladimir Yurkin)





para lembrar a tepidez de tua alcova

recorro a versos de lirismo antigo

de lirismo velho e mal comportado

e escrevo este poema

quase uma cantiga d’amor



fui feliz entre teus braços

rolando sobre alfombras macias

fazendo amor em alcatifas de veludo

balbuciando palavras de lirismo de antanho

ao mordiscar de leve o bico dos teus seios



fui feliz entre tuas coxas

adentrando profundidades inconcebidas

gemendo os teus gemidos

alucinando tuas alucinações

ao percorrer teus úmidos caminhos



na tua alcova de alfombras e alcatifas

veludos de ventre e cochichos macios

minha boca em tua boca

meu sexo em teu sexo

veludos de ventre

veludosos vãos e escaninhos



endívias em doce azeite

à língua faminta oferecidas



pela alcova de veludos e alcatifas

apascenta estrelas o pastor com seu cajado



ocultas-me e revelo-te

dialeticamente antropofágicos

entredevoramo-nos como serpentes



coitos em valhacoutos veludosos

ventres liricamente livres

movimentos de aríetes e marés

dobras de cobras e pelúcias

cornos de lua e anfractuosidades

plenilúnio de bocas e bocas

preamares de anseios e gemidos

na tua alcova de alfombras e alcatifas

escorre a lava e da cinza o pó

o nada

e o lirismo besta a lembrar que ainda te amo



22.9.2016