30 de nov. de 2016

lá fora um gato vadio




(Edvard Munch - Man and Woman)





lá fora um gato vadio

miava à lua cheio de agonia

o vento batia no sino

e o som suave espalhava-se pelas árvores

o bêbado tossia e tropeçava

nas pedras da rua

ruídos e roncos de motores

ao longe nas quebradas e becos

alongava-se a sombra de raros vagabundos

e a cidade guardava o sono agitado

de seus tensos habitantes



no leito já frio os amantes

olhavam-se enfim com desespero

e o gato frustrado miava

lá fora para a lua escondida




19.11.2016

29 de nov. de 2016

babava coca-cola



(Dino Valls - La Nave de los Locos)







babava coca-cola

como um poeta concretista

cuspia caroços de azeitona

como um judeu do velho testamento

olhava torto para os companheiros

como se quisesse exorcizar alguns demônios

arrotava pão de queijo

como um mineiro de sete lagoas

cantava uma melopeia sem sentido

como um gaúcho laçando boi

cheirava pó de arroz

como um carioca da zona sul

peidava picadinho de couve

como um guri da zona leste

falava mal do governo

como um motoqueiro sem destino

dançava um tango arretado

como se nadasse no rio da prata

tocava a sanfona de sete baixos

como um nordestino em são paulo

pescava e fritava um pirarucu

como pintasse um quadro de picasso

sonhava sonhos impossíveis

como se cavalgasse o rocinante

perdeu-se na baba de coca-cola

como todo poeta um dia

sonhou perder-se e era

enfim e nos finalmentes

a sombra de sua própria sombra


19.11.2016

24 de nov. de 2016

o poeta





(Luiz Aquila)





não

não é o poeta apenas um fingidor



é também o poeta um pensador

que pensa tão profundamente

todas as dores do mundo

que se torna às vezes um sofredor

mesmo que as dores sentidas

sejam dores fingidas

fingidas há tanto tempo

que trazem marcas de vidas e ventos

e acabam dores tecidas

nos moinhos d’água e nos cata-ventos

dos morros arrostados pelas borrascas



não sofre à toa o poeta em seu fingimento

não canta à toa o poeta em seu atingimento

de cordas profundas e vagos sentimentos

pensa e descobre o destino

pensa e alivia os arranhões dos espinhos

e das pedras do meio dos caminhos



não

não é o poeta um fingidor apenas



vaga vário ao vento

segregado

degredado

do mundo

o pensamento





do poeta fingidor

do poeta pensador

do poeta sofredor



12.11.2016

22 de nov. de 2016

desesperança

(Rothko - mural section- black on maroon - 1959)





embora a primavera caminhe para a metade

é frio e ventoso o tempo como se ainda fosse inverno

a lua mal chega às flores do jardim

e as noites sem lua exigem quartos fechados

assim também o poeta assombra as ruas e caminha ao vento

frio em seus lamentos

sonolento em seus passos lentos

como se ainda vivesse o tempo de outrora

temendo os dias que ainda virão

tremendo à lembrança de amores mortos

sua primavera escura traduz-se em cantos

que ao vento e à chuva parecem lágrimas

são doces anseios que se afogaram

nos rios cheios de verões passados

anseios agora ultrapassados e negados

pela permanência do vento frio

que promete tornar escuros até os dias de sol

dos tempos límpidos dos verões vindouros



6.11.2016

17 de nov. de 2016

sabiá







(Di Magalhães - sabiá-laranjeira)





ó meu sabiá

por que cantas tantas vezes



teu trinado trinca as trancas de meu peito

e do coração desfeito entorna o vento

que traz do passado os cantos de outrora



ó meu sabiá

teu canto desde a aurora

acorda as cordas travadas desse instrumento

que há tempos bate em compasso lento

como se teu trinado de agora

trouxesse do passado os cantos de outrora



há na vida e na lembrança dos seres

que se dizem humanos

momentos de paixão e de estranhamentos

sepultados no fundo da lembrança

deixa-os lá meu caro sabiá

não os traga de volta por favor

que não há dor maior a lamentar

que esta de sempre lembrar

o que já há muito se esqueceu



teu trinado pela tarde afora

traz de volta o que um dia

num momento outrora

foi aquilo que se chamou felicidade

e por ter sido tão fugaz em seu tempo lento

é que em dor se transformou com o passar do tempo



e o vento que sopra vindo do leste

que faz vibrar as cordas do coração

e as folhas de tua pitangueira

que vento é este meu sabiá

que vento triste no trinado do anoitecer



cala o teu bico meu pássaro tardio

que a vida que escorre pelas minhas mãos

é a mesma vida que viaja

no trinado de teu canto

pelo lusco-fusco do dia que cai

pelo lusco-fusco da vida que se vai



oh meu sabiá




11.11.2016


15 de nov. de 2016

respeito



(Rob Gonsalves)








prepara teus filhos para a vida

e para o mundo

não com doutrinas de deuses mortos

não com conselhos de sábios inúteis

não com ciências de objetivos duvidosos

prepara teus filhos para o mundo

dando-lhes a noção exata de sua humanidade

que exige que todos à volta os respeitem

e que eles a todos em torno de si também respeitem

deixa depois que sigam sua estrada

pisando nas pedras e nos espinhos

que os seus pés escolherem

não os teus pés nem os teus anseios

o mundo à volta deles será funesto

se de teus olhos e de teus ouvidos

não despregarem eles os seus próprios olhos e ouvidos

deixa que carreguem suas mochilas

que ouçam seus ídolos e cantem suas músicas

descubram seus erros e persigam seus sonhos

e marquem com cada passo o peso do seu próprio corpo

na areia fina da praia deserta

ou na pedra dura da montanha inóspita

deixa-os enfim criar seu próprio espaço no mundo

como tu mesmo o fizeste

quando ainda jovem juraste

respeito a ti

respeito à vida


respeito ao mundo 



29.10.2016






9 de nov. de 2016

deuses mortos



(A. não identificado)







tudo o que vem de deus e seus asseclas

tem cheiro de rato morto



no porão da consciência humana

deus tece pesadelos para escravizar seus seguidores



não há janelas nem claraboias

que iluminem a mente de um deísta



cegos e idiotas são todos aqueles

que leem livros sagrados

e acreditam em suas palavras



não no inferno queimam os infiéis

mas nas ventas do deus vingador

que ergue espadas estúpidas

para degolar seus opositores



na crença de paraísos perdidos

perde-se a humanidade transformada

em seres monstruosos



matam-se por hóstias ou por blasfêmias

e o cheiro de rato morto

sai da boca de deus misturado

às fezes dos pecadores enforcados



se existisse

deus seria um velho cagão

cego por glaucoma

a bradar de ódio contra todos os homens e todas as mulheres

impotente para destruir a humanidade que criou

a rugir como um leão sem juba

para o infinito de galáxias que se criam aos punhados

dentro do buraco negro de seu divino cu



mas deus não existe e eu posso dizer tudo isso

para a ira dos deístas que não se conformam

com a morte precoce de suas ilusões

não há infernos

não há paraísos

existe apenas o ódio mortal dos deístas

e sua furibunda e nauseabunda crença


3.11.2016


4 de nov. de 2016

Trova - Como o tempo, o amor cresceu





(Lucien Freud; something has changed me)

“Tempore crevit amore”


Ovídio





Com o tempo, o amor cresceu,

Cresceu e amadureceu:

No dia em que floresceu,

No mesmo dia morreu.





29.10.2016

3 de nov. de 2016

não gosto de cães



(Tiago Hoisel)





não gosto de cães

e eles não gostam de mim

fora isso

sou um cara igual a todos

sem mistérios

sem descrenças outras

que aquelas com que a vida

nos presenteia



os meus passos pisam

as mesmas pegadas

que pelos caminhos deixaram

outros seres como eu

na curta história da humanidade



os deuses do passado

tornaram-se em cães amestrados

a latir inutilmente para o futuro

um futuro bizarro e sem conotações

apenas um futuro



os pelos de meu rosto eriçam-se

a cada estrondo de morte

que permeia a galáxia onde nos toleramos



sou o que fui

e fui o que nunca serei



o vento das estrelas sopra os meus cabelos

e o cheiro de carniça

vem de trás de cada treliça

que separa e segrega



há esperança no entanto



há esperança

enquanto ladrarem molossos na escuridão

enquanto plantarem as vinhas nas encostas

enquanto se quebrarem as algemas nos dedos médios



não nos iludamos no entanto

caros companheiros da tragédia da vida

riamos até que ela aceite ser de novo comédia

e passeemos com dante em busca de beatriz

por todos os infernos que nos prometem

os pretensos e pretensiosos donos

desse mundo sem eira nem beira



não

não gosto de cães

e eles me detestam



29.10.2016