27 de fev. de 2023

reflexão sobre a vida

 



cultiva-se da vida o espanto

atribui-se tal milagre aos deuses

mas viceja o mistério hoje quanto

no tempo dos rituais de elêusis

 

as preces dos crentes caem no vazio

as teses dos cientistas mudam-se de tempo em tempo

e tudo o que sabemos é o fastio

dos astros no céu e dos átomos no seu lento movimento

em direção ao nada

 

enquanto isso a vida está aí

encantadora como um conto de fada

misteriosa como uma melodia de debussy

 



5.3.2021

Jacques-Émile Blanche (1861–1942), Claude Debussy, 1902,

24 de fev. de 2023

redes

 




quando me deito na minha rede

que não está presa a nenhuma parede

envolve-me o absoluto do universo

para compor com calma algum verso

que diga o que sinto e o que minto

entre os astros o que penso e pressinto

do tempo passado e do tempo futuro

e minhas mágoas então esconjuro

balançando entre o nada e o nada

nas minhas redes a mente apaixonada

pensando no agora que eu sou eu

na certeza que em mim resiste

de que viajo para um tempo que não existe

livre de um passado que já morreu



14.6.2022

(Ilustração: Cícero Dias - a espera, 1932)

21 de fev. de 2023

realidade crua e bruta

 






dizem a estrada da vida

como se a vida fosse um caminho cheio de curvas

um caminho cheio de obstáculos que nos leva para o alto

para uma plenitude de conhecimentos adquiridos pela experiência

e dizem mais

que faz o caminheiro o caminho ao caminhar



e eu fico pensando na estrada que há ou não há

se ela já existe ou se eu a construo com meus passos



e enquanto caminho por essa estrada que não sei se há ou não há

olho para trás de vez em quando e vejo que muitas vezes

depois de muito caminhar não saí do mesmo lugar

outras vezes estico para frente o meu olhar

e só vejo sombrio muro ou penhasco ou não vejo nada

mas continuo não sei se para a frente ou para trás

se rodo em círculo no meio do mato ou caminho para o precipício

sei apenas que tempo urge e me obriga a caminhar mesmo quando inertes

meus passos flutuam no espaço vazio de minhas indecisões



dizem a idade lhe dará a sabedoria

e hoje chego a uma idade em que devia trazer às costas um saco de sessenta quilos

da tal sabedoria

e me sinto ainda mais leve quanto a esse quesito do que me sentia quando jovem

porque naquele tempo de músculos ainda não testados

de olhos ainda não baços pela névoa do tempo

de cabeça e cérebros ainda virgens de todo o conhecimento que tenho hoje

eu me julgava realmente um sábio e o mundo cabia no bolso da minha camisa

hoje – quando o caminho que caminhei se cobre de pele e suor

se cobre de sangue e restos de mim – olho para o mundo

e relembro aquele filósofo grego que um dia disse

quanto mais sei mais sei que nada sei

e quero gritar para os idiotas que me diziam que seria sábio ao envelhecer

- quero agora em minhas costas um saco de sessenta quilos de sabedoria

quero agora entender a vida para dizer ao menos que ela não tem sentido algum

mas o grito escorre-me garganta abaixo

assim como meus passos vão morrendo pouco a pouco

sem que o caminho que dizem que eles – os meus passos –

teriam de ter construído

ganhe concretude ou qualquer espécie de linha ou trilha que possa chamar de caminho



se sou o nada como já disse o poeta – e não sei também se ele era sábio ou não

assim como o filósofo grego que nada sabia ao saber mais e mais –

(abro parênteses para dizer que aos poetas é dado o dom

de falar com elegância até do próprio inferno)

queria ter consciência desse nada

queria poder gritar para o abismo – eu sou nada

mas o abismo que eu contemplo não olha para mim

também não me responde

e só o brilho das estrelas que já morreram há milênios

permitem contemplar diante do nada e do abismo os meus olhos cansados



então para concluir essa já longa diatribe contra a vida

ou melhor – contra tudo o que disseram que a vida me ensinaria –

permitam – meus improváveis leitores e leitoras – que lhes diga

que a vida é a vida é a vida é a vida e nada mais

(e alguém também já disse isso)

ponto

(e talvez isso seja apenas mais uma bobagem)

ponto final



23.1.2022

(Ilustração: Escultura de  Francesco Queirolo
 - desilução ou liberação da decepção)

 

 

 

 

 

18 de fev. de 2023

quero beijar-te

 





no meio de uma tempestade de verão

carros boiando

luzes piscando e se apagando

gente gritando e se afogando

no meio desse pandemônio

de gritos e sussurros e desesperos

- quero beijar-te



no escurinho do cinema numa tarde de domingo

a sala lotada

a criançada comendo pipoca

fazendo algazarra

os pais amalucados pedindo silêncio

na tela a mocinha dizendo não ao noivo na hora do sim

- quero beijar-te



durante o congestionamento de uma tarde de sexta-feira

buzinas frenéticas

gente angustiada

a noite descendo trágica de seus tamancos mágicos

para assinalar o atraso ao encontro marcado

nos rostos desanimados o suor sem cerveja

- eu quero beijar-te



no cimo da mais alta montanha nevada

o mundo lá embaixo pegando fogo

numa luta sem ganhadores e sem perdedores

a neve e o frio a gelar nossos ossos

o abraço que pouco aquece mas entusiasma

- quero beijar-te



no silêncio do quarto de hotel quando há pouco te despiste

tu te aninhas em meus braços

minha pele na tua pele

meu ventre no teu ventre

teus seios achatados contra meu peito

o abraço quente do desejo despertado

teus braços em meu corpo enlaçados

meus braços a teu corpo agarrados

queimam-me teus olhos

queimam-te meus anseios

nesse momento de mundo estatelado

no segundo de angústia antes do ato programado

- quero beijar-te



e que fosse esse o último beijo

e que fosse esse o beijo fatal

eu te beijaria

e feliz morreria





3.10.2021

(Ilustração: Jack Vetriano - game on, 1999)







15 de fev. de 2023

ASSALTO

 


...de trás de um poste, do buraco de um esgoto, de trás de um pilar de viaduto, do vento, do nada, surge uma cara de anjo e surge a arma que ameaça, a luz de um punhal, o vermelho de uma bala, sem escapatória, ela surge, e a vida ali naquele momento é o papel higiênico que ele não tem para limpar a bunda na qual um cu aperta os esfíncteres e tem-se que dizer apenas calma, calma, calma, é a minha cabeça que pode explodir contra o vidro do carro, são meus os miolos que podem sujar definitivamente o estofamento do carro importado, com motor de muitos e não sei quantos cavalos e você não pode titubear, e você não pode esboçar o gesto de defesa diante da ordem, diante da ameaça eu vou atirar, eu vou atirar, o dinheiro, rápido, eu vou atirar, eu vou atirar, a voz baixa e abafada no seu ouvido esquerdo, a voz baixa e abafada a ciciar e confundir-se com o ronronar do motor em marcha mais que lenta, agora, naquele momento de agonia, eu vou atirar, rápido, o dinheiro, tio, o dinheiro, eu vou atirar, eu vou atirar, o refrão é um rap em seu ouvido esquerdo, eu vou atirar, eu vou atirar, é o que fica na sua cabeça, eu vou atirar, e o gesto deve ser lento ou rápido, você se pergunta, diante da urgência de viver até a curva da esquina ali na frente, só a curva ali na frente é o seu objetivo, a razão de ser de uma vida inteira, só a outra rua ali na frente, a cinquenta metros, a vida vale o que se tem no bolso, a vida vale o nada, a vida vale alguns papéis pintados, a vida vale cinquenta metros de asfalto negro, negra a arma que pode estar sob a camisa vermelha que realça a cara de anjo que ameaça atirar, eu vou atirar, tio, o dinheiro, eu vou atirar, me dá o dinheiro, o rap a martelar o seu ouvido esquerdo, calma, calma, eu só vou pegar o pouco que tenho para se transformar em muito na sua mão que não pode tremer, não trema, não trema, não atire, não atire, calma, como devo falar, como devo fazer o gesto de pegar, de pegar o dinheiro, o dinheiro, tio, eu vou atirar, de pegar o dinheiro e passá-lo, num gesto enfim tão natural de dar uma esmola, uma esmola para o pobre coitado de camisa vermelha e cara de anjo que se curva sobre uma arma que se esconde, que se esconde, que pode até mesmo não existir, o cara de anjo é o dono de cinquenta anos de sua vida, de toda a sua vida, o cara de anjo não quer matar, o cara de anjo quer apenas o papel pintado que muda de mãos, valendo tanto, valendo tanto, tão pouco e tão valioso, dinheiro, calma, calma, eu vou atirar, eu vou atirar... o rap... o rap... o cara de anjo pode atirar, eu vou atirar, tio, eu vou atirar, o farol, a embreagem que não aceita a primeira marcha, a buzina do carro de trás, não, não atire, calma, fique calmo, a exigência é sua e a ordem agora é sua, fique calmo, e o bueiro, o poste, a coluna do viaduto são apenas uma referência de nada, calma, o rato volta à sombra e o carro parte em disparada pelas ruas da capital que brilha em luzes de natal, saudando o novo milênio e você sabe que sobreviveu quando os cinquenta metros de asfalto negro aparecem no retrovisor... no retrovisor... no retrovisor...



30/11/2000

(Ilustração: Francisco de Goya - bandit murdering woman)



(Você pode ouvir esse conto, na voz do autor, neste link:


12 de fev. de 2023

quem ama

 




quem ama também mente

a realidade falseia

encontros e desencontros escamoteia

e quando de repente

vem à tona sua mentira

chora

implora

desespera e mente mais - ainda que a todos fira



porque o amor tem mil caras

e mil desejos muito além do objeto amado

não tem quem ama quaisquer aparas

às suas loucuras e ao que tem desejado



quem ama não deixa de amar

só porque arma tramoias e falsidades

para fugir da gaiola e do pesar

que é amar um só amor e suas infelicidades



11.1.2022

(Ilustração: Valquíria Cavalcante)


9 de fev. de 2023

que importa?





que importa a porra do mundo e sua falsidade

se não me chamo raimundo

nem tenho por nome qualquer andrade

sou o que sou assim talvez fodido

mas ergo a cabeça e assino o que tenho escrito

poemas toscos às vezes e às vezes sem sentido

cheios de chaves a que não dou qualquer explicação

não porque não queira o que quer que seja que tenha dito

assuma o mistério da poesia

mas porque não acho que haja mistério

em qualquer poema sério

que eu tenha escrito

mesmo que porcaria

e como já disse e repito

não sou andrade nem raimundo

e por isso o que eu acredito

é que todos devem se foder e com todos todo o mundo



28.5.2021

(Ilustração: Clovis Trouille - My Funeral, 1940)

6 de fev. de 2023

quatro estações do amor – inverno

 



morri ontem de manhã

ao abrir a janela para a luz

de um dia que se tornara noite



nos escaninhos de meu ser flutua

uma lua morta – uma lua nua –



morto estou para todas as paixões

depois dessa lua nua que morre

nos braços do dia que virou noite



na sua pele escrevi em rima pobre

versos dispersos e agora resta apenas

no leito frio a folha que me cobre



20.3.2021

(Ilustração: Catherine Abel - european winter)



3 de fev. de 2023

quatro estações do amor – outono

 



ao anoitecer do meu desejo deponho

a teus pés o verso torto com que eu te sonho



no espaço vazio das tuas pupilas claras

não há para mim nem luz nem sol se tu me declaras

que tem o meu amor trevas outonais



sou teu para sempre e em meu em leito de espinhos

chorarei pelas madrugadas por teus carinhos

mesmo que saiba que tu não me amaste jamais



20.3.2021

(Ilustração: Catherine Abel - autumn ruby)