16 de mai. de 2024

espera

 



vazios os dias de espera

quando não se sabe bem

o que se está esperando



vem o tédio da vida

vem o tédio da morte

não tem nenhum sentido a vida

não tem nenhum sentido a morte



apenas a angustiante espera





29.1.2024

(Ilustração: Almeida Júnior - Saudade 1899)

 

13 de mai. de 2024

escrutínio

 





venha o silêncio

sobre minhas palavras

e a cinza dos tempos

tempere meus versos



águas de nuvens negras

revelem flores insepultas

e do mandacaru viceje

fontes de luzes e cores

para que a noite enfim

me cubra de estrelas





14.1.2023

(Ilustração: Vincent Willem van Gogh - Noite Estrelada Sobre o Ródano )

10 de mai. de 2024

escrevo o que me dá na telha

 


escrevo o que me dá na telha

e se alguém me aconselha

a não ser tão urubu

mando logo tomar no cu

e sigo em frente

mesmo que me tente

voltar atrás e chutar

tudo que me dá azar



não tenho medo de deus

não tenho medo do capeta

de todos os gostos meus

gosto mesmo é de boceta

tenho pois a língua ferina

sem medo de palavrões



minha lira é fescenina

tocada pelos colhões

por isso sempre escrevo

o que me der na telha

se alguém me pentelha

desaforo não levo nem devo

devolvo na mesma hora



e se precisar de mais ação

boto o pau pra fora

bato com ele na mesa

mas só de mentirinha

porque muito embora

não tenha a língua presa

acabo sendo sempre da paz

e não importa o que se faz

dentro de um quarto de motel

somos todos livres para

atuar em qualquer papel

se acha que nada se compara

a dar o rabo por aí

dê bastante e faça bem-feito

que não serei eu aqui

que vá pôr algum defeito



gosto de putas e veados

sem qualquer distinção

e também de sapatão

me perdoem o palavrão

se chamo com esses nomes

o que não acho que é correto

é culpa desta língua solta

que não troca cu por reto

como disse agora há pouco



não tenho medo nenhum

de até mesmo soltar um pum

pois sou assim meio louco

de dizer o que eu digo

de escrever o que escrevo

olhando só pro meu umbigo

e pagando o que não devo

solto o verbo e não poupo a língua

não sou de morrer à míngua

se preciso falar um não

por conta de qualquer palavrão

que se foda cada dia o mundo

repito o poeta não sou Raimundo

nem como o prato pelas beiradas

meto o pé pelas estradas



esquartejo a prosa e o verso

e não tenho muita pressa

bebo vinho bebo pinga

e o palavrão que se apressa

sai redondo da minha língua

quando vou latindo à luz da lua

pela noite e à madrugada nua

soltando uivos soltando fogo

que a pinga me esquente

para o final desse jogo

que o vinho me alimente

para nunca deixar barato

nem ronco de valentão

nem chiado de rato

dou logo um chutão

vou adiante atrás de mim

buscando meu coração



sei de rezas do capeta

sei de pecados de deus

fodo alguma boceta

sem nenhuma treta

e de vez em quando

também fodo um cu

a vida vou levando

não debaixo dos panos

sem praga de urubu



conto perdas e danos

mas não passo recibo

fico na minha tribo

sem amolar ninguém

que aqui você não tem

quem dê asa a barata morta

não me venha com frescura

nem defendendo ditadura

escoro no pé qualquer porta

e arrombo a sacanagem

contra qualquer trolagem

de imbecil ou de boçal

que faça fofoca e fale mal

de quem eu gosto e admiro

porque embora sem carabina

armo o verbo e até dou tiro

na cabeça de nazista

como faço a qualquer fascista

que segue o Bolsonaro



minha vida tem passado

e não há nada de ignaro

que chute a bunda de idiotas

que falam e fazem merda

não sou de contar lorotas

mas da escova tiro a cerda

para pentear qualquer macaco

que atravesse o meu caminho



não dou trela e tiro o cavaco

entorto a chuva entorto o vento

e pego pelo colarinho

sem qualquer contratempo

os idiotas da coerência

pois não tenho paciência

para gente besta e mentirosa



se polícia bate à minha porta

meto o pé pelo beco escuro

viro verso ou viro prosa

e só quando estou seguro

de que nenhum perigo

ronda a vida que escolhi

cuspo o chumbo e prossigo

cantando como o bem-te-vi



encerro aqui essa treta

do jeito que comecei

sem falar de pau e de boceta

e de tantas coisas que eu sei

vou recolhendo este poema

não esquecendo o meu lema

com uns versos bem quebrados

do fundo d’alma tirados

e no fim um verso imundo

já que não sou urubu

nem como rabo de tatu

que vá todo mundo

tomar lá bem no fundo

bem no fundo do próprio cu



6.1.2024


(Ilustração: Georges Pichard: plume dans Q)

7 de mai. de 2024

escada rolante

 



 

no meio de teu caminho – a escada

 

seus degraus de aço levam para o alto

teus sonhos grudados

nos teus sapatos furados

 

a escada te leva para o alto

sempre

para o alto

até o salto

final

dos teus olhos baços

para o infinito

dos teus sonhos fúteis

para os laços

da superloja de produtos inúteis

 

22.9.2023
(Ilustração: Banksy - Jesus Christ with Shopping Bags)

4 de mai. de 2024

impressões - 2

 

 


52 pessoas morreram a seu lado

você ergue as mãos aos céus

agradece a deus só você ter-se salvado



no meu rosto o suor escorre

é noite escaldante em meu quarto

não bebi nada e estou de porre



levou a enchente do rio

a sua casa e tudo que você tinha

agarrada à árvore e tiritando de frio

com deus você não está sozinha



tenho dentro da noite pensamentos ateus

e o que penso não digo nem mesmo a mim

porque minha mente está livre de deus

e sou muito feliz assim



um deslizamento de terra matou milhares

deixou outros tantos sem seus lares

os dois velhinhos são assertivos

graças a deus é que estamos vivos



corrói-me a traça da descrença

enquanto curto minha solidão

mas sou assim desde nascença



vacina salva diz a campanha

levem ao posto os filhos seus

mas o pai o dente arreganha

meus filhos - entrego a deus



nego na minha noite insone

a negação de todos os idiotas

se soubesse tocar trombone

deixaria surdos esses patriotas





30.4.2024


(Ilustração: Georg Scholz -  Industriebauern)


Você pode ler esse poema,  na voz do autor, Isaias Edson Sidney, neste endereço de podcast:

https://open.spotify.com/episode/6Lp8xamL5vDePVWgDxHnBp?si=OYxOlmPPTh-7WZpff7w5yw

 

 

 

 

 

1 de mai. de 2024

MEMÓRIA DE UM RIO

 




Rio verde. Rio Verde. Pequena mancha negra descendo a correnteza. Redonda mancha negra sob a ponte. Um corpo azul embaixo da pequena e redonda mancha negra passando sob a ponte. O Rio Verde, que era mais verde que o verde das árvores à sua volta, torna-se, de repente, o rio negro das ilusões perdidas de um jovem cavalariço da Escola de Sargento das Armas que perdeu a montaria da vida na traição das águas calmas do verde rio Verde, em Três Corações, Minas Gerais, Brasil. E eu tinha apenas quinze anos, quatro anos antes de 1964.





9.9.98

(Ilustração: Três Corações e o Rio Verde; MG)