30 de jan. de 2023

quatro estações do amor – verão

 



toco as areias ferventes dos teus seios

escorrego pelas tuas escarpas abissais

cheiro teu umbigo como adão assustado

sugo teus sumos encachoeirados

o teu ventre liso – rósea flor dos ventos –

é a estrela que guia os perdidos caminheiros

para o abismo de mares pré-cabralinos

no encontro de águas e algas e liquens

prenunciam-se erupções marinhas e maremotos

sou teu visitante sem jaça que antes de naufragar

lança-se a ti sem medo de teus mares bravios

esses mares que já engolfaram os navios

de tantos piratas saídos de versos de camões

sei no entanto os teus caminhos e tuas marés

e neles – nos caminhos e nos riscos – afundo os pés

aceito as regras do jogo que tu me propões

- serei para ti o intrépido navegante grego

a beijar todos os dias a flor do teu desassossego



20.3.2021

(Ilustração: Catherine Abel)

27 de jan. de 2023

quatro estações do amor – primavera

 



talvez a caverna se abra em flor

o espanto se transforme em borboleta

voe o desejo pela pele pelada e os pelos

todos arrepiem como a flor em roseta

os dedos nas trilhas que levam

ao pecado original do espanto e do gozo

e os sulcos dos teus lábios em volta do talo

da flor enquanto ressoam em mim os sinos

que vêm do fundo das florestas e dos prados

os teus gemidos transidos enlouquecidos

- brotam faíscas dos teus olhos fechados




20.3.2021

(Catherine Abel - life begins to grow around her again)

24 de jan. de 2023

quando velho

 







se chove

não sai de casa



se faz sol

não sai de casa



se faz calor

não sai de casa



se faz frio

não sai de casa



quando velho

não sai de casa



7.10.2021

(Ilustração: Leonardo da Vinci - autorretrato)

21 de jan. de 2023

quando tudo deu errado

 





sabe quando tudo dá errado

é quando sento e choro

e busco um pouco do que tenho sonhado

e encontro apenas tudo quanto deploro



a vida revela surpresas

e isso é apenas um truísmo

que se diz diante de incertezas

quando se olha para o abismo



não – o abismo não te olha de volta

o aro de luz que brilha sobre tua cabeça

não te torna santo nem tuas asas solta

antes que teu sonho no abismo despareça



quando tudo já deu errado

tudo quanto tinha que dar

a lágrima por ter falhado

só ao abismo vai nos levar



8.9.2022

 (Ilustração: Al Margen)

18 de jan. de 2023

quando estou só

 





quando estou só

completamente sozinho

comigo mesmo

resume-se o mundo aos caprichos

do meu cérebro

leva-me ele por caminhos e abismos

de ambições opostas de incompreensões

nos sonhos delirantes de poder

aos pesadelos rastejantes de humilhações

traz-me a solidão do desbravamento

de espinhos cravados no meu passado

e de flores entreabertas de futuros impossíveis



entre o sonho e a pedra

o raio de um sol que explodiu há milênios

revela mistérios de mim mesmo

mumificados nos interstícios de minhas sinapses

como orquídeas resgatadas ao explodir de vulcões

levadas pelos ventos tropicais para dentro de troncos podres



17.9.2021

 (Ilustração: Vincent van Gogh - farmhouse, Provence)

14 de jan. de 2023

ah oui paris

 






ah oui

paris

que je la vu

dans l’écran du cinéma

ah paris

onde eu fui feliz

sem nunca ter ido lá

je sais que le temps ici

são tempos de silêncio em noites sem lua

quando a morte ronda a rua

e nada pulsa de alegria

nem aqui

nem ali

chaque nouvelle poesie

que brotava da lágrima seca que abria

buracos negros nos quadrados soturnos

era a triste poesia para os olhos dos ratos noturnos

que brilhavam sob a luz azul

de velas brancas sob o céu de paris

mas era apenas o meu país

afundando num imenso paul

je m’embrasse dans la nuit

et je t’embrasse dans l’espace

sentindo no pescoço o aperto do laço

esperando apenas que me enlace

o beijo da morte

a morte no seu lento passo

nesse tempo de mala sorte

nesse tempo de bites e bytes

quando por days and nigths

ainda troam surdas as dinamites

da primeira guerra mundial

pelas ruas de paris

canta o galo uma noite feliz

ao pé da cova rasa de meu país

declamam os loucos poemas de baudelaire

sonha o general nas asas da panair

je ne sais rien de rien mon amour

quando o tempo fecha sobre o tour

de turistas gregos no cristo redentor

beijo os seios de brigitte bardot

na tela de cinema do interior

e só o que quero de ti

mon amour pour toujours

que esqueças o tempo perdido em paraty

em festas literárias

e que da pele do teu tambor

brotem batidas menos ordinárias

para que o canto deste triste país

tenha esperança em vez de pavor

e eu possa dizer para ti

que dançaremos um dia sur le ciel de paris

sim mon amour sob o céu de paris

sob o céu de paris

o céu de paris

ah paris

onde um dia fui feliz

dans l’écran du cinéma

feliz em paris

mois même oui mois

heureux à paris

ouvindo o piano de satie

sem nunca ter ido lá



1.11.2021


(Ilustração: Camille Pissarro: Le Boulevard Montmartre, fin de journé)

 

 (Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, neste link: 

https://open.spotify.com/episode/4XpwJt4cyKDflt90WcNjrP?si=4a7beaecf9be4253)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

12 de jan. de 2023

quando é ser feliz

 




quando escrevo o último verso

de um poema – eu sou feliz



quando suspiro ao vento

ao ver o mocinho aos beijos com a mocinha

na novela da televisão – eu sou feliz



quando viro o copo e sorvo

a última gota do vinho – eu sou feliz



quando converso ao telefone com você

e rio-me de suas loucuras – eu sou feliz



quando corro atrás de meu neto

para bater em sua bunda numa brincadeira

que tem sempre a volta entre risadas – eu sou feliz



quando aspiro o perfume da flor do manacá

na tarde quente de vento parado – eu sou feliz



quando penso em vidas loucas e futuros

que não sei se despencarão das nuvens – eu sou feliz



eu sou feliz assim nesses momentos

de que a vida anda recheada apesar de tudo

porque a felicidade é isto – momentos

momentos e nada mais que momentos



7.7.2020

(Ilustração: Harry Holland: skyfly)



9 de jan. de 2023

primavera adiada

 



quando se proibiram abraços e beijos

não por motivo de uma vontade qualquer

mas por algo invisível e mortal

engolimos a seco os nossos beijos

e guardamo-los todos em gavetas

jamais planejadas ou desejadas



abstraímos em nossos próprios braços

os abraços congelados e enregelados

em geleiras desconhecidas

até mesmo de nossas possibilidades de alegria



estão lá os nossos beijos e abraços

num canto obscuro de nossos desejos

documentos de um arquivo morto

de nuvens que esperam

um sopro de vento para choverem de novo



na verdade o que esperam é mesmo

um vendaval de rios aéreos

capaz de alagar as ruas e as cidades

romper as muralhas

fertilizar as planícies



e quando o sol do estio esquentar o peito

acender de novo as fogueiras

soltar rojões

iluminar os espaços

para os desenlaçados beijos e abraços

preencherem de novo a madrugada

e como lírios do brejo renascerem

para a grande festa da primavera adiada




19.4.2021

(Ilustração: Georg Pauli)







6 de jan. de 2023

preguiça

 





amargamente refiro-me àquele velho cansaço da vida

de que muitos falam

quando a famigerada e desgastada metáfora da estrada da vida

torna-se cada dia mais curta

mais curta

mais

e o horizonte à frente – outra bobagem que sempre usamos

para nos referir ao futuro – parece mais opaco aos olhos esmaecidos

de ver o que não queríamos

de enxergar o que poucos enxergam

mesmo no meio da neblina do tempo

– ai! quão difícil escapar do lugar-comum! –

o cansaço da vida? – ora o sinto – ora o pressinto

sofrível o sofrimento que causa

já que a ninguém mais comove esse falso truísmo

na boca dos velhos caminheiros

mas minha amargura não dura

mais do que a secura de minha garganta e a tosse consequente para engolir

essa bobagem de cansaço da vida

essa desculpa de suicidas – e eu tive há muitos e muitos anos (e choro

e lamento todos os dias por isso) uma irmã querida que se matou

(fato de que não falo nem comigo mesmo – porque dói e dói muito)

e abro agora essa exceção com a promessa

de que nunca mais vou tocar nesse assunto

para dizer que ela – minha amada irmã – se matou

não por cansaço da vida mas por razões absurdas que ela em si encontrou



quero finalizar portanto

este arremedo de poema

afirmando (de forma arrogante e peremptória) que

nem para desculpas de suicidas ele – o cansaço da vida – serve

por isso vou dar-lhe um bom chute para longe

para bem longe

e dizer simplesmente que a verdade mais verdadeira dentro de mim

é que estou apenas curtindo neste momento

uma puta de uma preguiça

uma puta de uma

pregui

pre

(ou talvez apenas uma puta)





28.3.2022

(Ilustração: Johannes Moreelse - Heraclitus)




3 de jan. de 2023

preguiça de viver





uma vontade imensa de não fazer absolutamente nada

tampouco escrever este poema cheio de insegurança e má vontade

transpor do meu peito para o vento uma saudade espalhada

deitar talvez numa rede e sonhar com o campo olhando a cidade



permitir que se amontoe em minha memória opaca

a poeira do tempo e o mofo de toda uma vida sem sentido

porque o mundo todo se transformou numa grande cloaca

neste momento em que nem viver comigo tem valido



e se há música no ar limpo da tarde que lentamente se esvai

dentro do meu peito o coração bate cada vez mais lento

como a garoa que no fim do dia molha meus olhos quando cai

aguçando dentro de mim a preguiça de viver da qual sou detento





20. 10. 2022

(Ilustração: Marc Chagall)

30 de dez. de 2022

preguiça [com variações]

 





1.

preguiça, bendita sois

que me fazeis deixar

tudo pra depois



2.

preguiça, bendita

sois: fazeis deixar

tudo pra depois



3.

preguiça: que sois

bendita, a deixar

tudo pra depois



4.

preguiça, que sois

bendita a fazer

que me deixe a ser

tudo pra depois



28.2.2022

(Ilustração: Cícero Dias - autorretrato - 1930)

27 de dez. de 2022

prazeres

 




quero o teu prazer - que ele flua

do interior de tuas sinapses cerebrais

à pulsação de todos os músculos vaginais

enquanto transcendem à noite nua

enlaçados abraços em gozos lassos

e no elanguescer de mais um instante

o doce prazer de abraçares meus abraços

como se fossem nossas carnes o som flutuante

que canta e ilumina o palco de nossas vidas

onde nascem de nossos orgasmos alamedas floridas



9.8.2022

(Ilustração: Frida Castelli)

24 de dez. de 2022

porto seguro

 








teu corpo – dádiva florescente para meus anos tardios

ainda que macerado pelo tempo que escorreu por entre tuas pernas

despeja anseios não declarados de paciência e paz

nos entremeios de um caminho que se estreita



teu corpo – tranquiliza-me o percorrer teus desvios

responde aos toques de alfazema de futuros ignorados

depõe em meus olhos o espanto de descobertas

e o instinto renovado de permanências e imanências



teu tranquilo tremor de porto seguro para meus poucos arroubos

faz arder a sarça de fogo que as chuvas de verões passados apagaram

e de novo o tempo acende o futuro e o espasmo de vulcões adormecidos



sou por teu corpo o caminheiro que um dia se perdera

e na tua entrega de lago de lua cheia navega em busca de si mesmo

para alcançar enfim paz das flores que só vicejam no inverno



27.8.2021

(Ilustração: Adrien-Jean Le Mayeur de Merpres)









21 de dez. de 2022

porre

 




esta noite tomo um porre

lambendo a baba que escorre

de dentro do meu peito como lava

esquecido da ambição da palavra

que preenche o espaço entre a morte

e a possibilidade de achar um norte



5.5.2021

(Ilustração: desenho de Goya)

18 de dez. de 2022

poema-desabafo

 




qualifiquei-me para a vida quando nasci

com cabeça

tronco

e membros

e um cérebro que pensa

e um cérebro que sonha

e um cérebro que imagina e cria

a vida no entanto sempre me desqualificou

mesmo não sendo totalmente preto

[se o fosse seria muito pior]

mesmo tendo estudado em bom colégio

[não fosse isso o futuro seria futuro de preto]



mesmo tendo me formado numa grande universidade

[não fosse isso teria caído na fossa do subemprego]

a vida me desqualificou sempre mesmo assim

porque saí da pobreza e se a pobreza não saiu de mim

foi porque só ganhei o suficiente para viver

e não me curvei àquilo que acham que gente como eu deva ser



a sociedade branca e elitista não perdoa

quem ultrapassa linhas traçadas pela injustiça e pelo preconceito

mede-se a si mesma pela média da média da estupidez

e tem olhares de esguelha e desdém aos que deviam ser párias

não suporta – essa gente de nariz que não pode tomar chuva –

que alguém que não seja de suas hostes conviva no mesmo restaurante

se não for o atendente ou o garçom cheio de mesuras servis

médico ou professor – acinte total



enfim não basta que me qualificasse na vida

[e eu o fiz a duras penas – caminhando sempre com minhas próprias pernas]

era preciso ser humilde aos olhos dos bandidos engravatados

e não sujar com minha altivez de pobre impoluto

seus salões caiados de branco e ornados no mau gosto do ouro roubado

era preciso fingir não perceber o olhar de desdém

que eles sempre tinham e sempre têm para uma fatiota que não seja de grife

para um sapato que apenas a aparência tenha da nobreza do couro

era preciso saber o nome das divas da ópera e a elas oferecer o chá da tarde

e até mesmo tocar ao piano uma valsa troncha de chopin

[logo eu que da música tenho apenas o ouvido para ouvir]

era preciso – mesmo que de forma sutil e sem salamaleques – lamber botas

e chupar como doce o amargo desprezo também sutil de cérebros de porcos

e chafurdar de vez em quando na mesma lama onde crescem suas contas bancárias



mas a vida não me qualificou para nada disso e muito mais de jogo de cintura

e de bajulações a indivíduos desprezíveis que das letras conhecem o horóscopo do dia

que de filosofia compartilham a crença do dístico das notas de dólar

porque o seu deus se cobre de verde e está confinado e devidamente adorado

na senha de uma conta secreta nos bancos suíços e de negócios escusos em paraísos fiscais

paraísos de cujos benesses se julgam novos adões e novas evas

paraísos onde promovem suas festas irrigadas a sangue de cocaleiros da bolívia

e onde dançam tangos proibidos com prostitutas dos estúdios de cinema de hollywood

a essas confraternizações só teria eu – o desqualificado – acesso como mestre de cerimônia

ou cantor de músicas sertanejas de chapelão e cinturão de fivela de prata falsificada



não

a vida não me qualificou para isso

minha cintura foi sempre mais rígida do que a moral dessa gente

o meu pescoço duro e meu olhar de o que estou fazendo aqui sempre me condenaram

as patifarias não chegaram a mim

temiam-me ou desprezavam-me para tais

era aquele que não devia estar onde estava

era aquele que não tremia diante da autoridade patronal

que se julga dona de corpos e mentes

era aquele que de vez em quando chutava uma canela

mesmo que tivesse de pagar o preço por tal ousadia



assim qualificado e desqualificado vivi

assim qualificado e desqualificado sobrevivi

não tenho da vida nada mais a cobrar nem à vida devo algum centavo de minha miséria

fui e sou o que sempre fui e o que agora sou

meio trânsfuga

meio idiota

meio-sempre-qualquer-coisa-que-nunca-chegou-a-lugar-nenhum

mas achei sempre o lugar dentro de mim do qual não abro mão

o lugar que não é a latrina de ouro e prata cheia de merda

dessa sociedade podre que se exaure no cheiro nauseabundo

de suas próprias fezes

porque isso é o que me faz ter um mínimo de orgulho de ser humano

e não a besta coberta de ouro que não sabe de que é feito o capim que come



11.7.2022

(Ilustração: Alberto Magri - Menocchio)









15 de dez. de 2022

poema sentimental

 




nem sempre voltamos

para os braços de nossos amigos e amigas



nem sempre voltamos

para os braços de nossos irmãos e irmãs



nem sempre voltamos

para os braços de namoradas ou namorados



nem sempre voltamos

para os braços de nossos noivos ou noivas



nem sempre voltamos

nem mesmo para os braços e abraços de nossos cônjuges



mas para os braços de nosso pai

mas para os braços de nossa mãe

sempre

sempre voltamos



porque são braços eternos

eternos braços abertos

para os nossos abraços de filhas e filhos

mesmo quando nós os filhos e as filhas nos perdemos

por caminhos nunca por eles traçados

por caminhos nunca por eles desejados



por isso quando os braços de filhos e filhas se cruzam sobre si mesmos

ficam os braços abertos de pais e mães e de mães e pais eternamente molhados

no vazio do vazio de mares vermelhos e neste vazio para sempre angustiados



30.12.2021

(Ilustração: Piet Mondrian - o moinho vermelho, 1910)

12 de dez. de 2022

ESPELHOS QUEBRADOS

 


 

... reviro os bolsos, todos, da calça, do velho e puído paletó, da camisa, tiro até a cueca, me sinto um idiota ali parado no meio do quarto, nu, procurando o inefável, o que não podia ter perdido, o seu bilhete, aquele que daria um fim em minha vida de miserável e começaria uma nova trajetória, ora bolas, que besta, que fim que nada, que trajetória de vida ia eu querer com aquela bosta de bilhete, que não dizia nada, absolutamente nada, nem uma promessa, nem um desejo, apenas aquelas palavras secas, duras, sem pontuação, sem nenhuma emoção, que bobagem, agora estou querendo emoção em palavras de um simples bilhete, pego as roupas espalhadas pelo chão, levo-as até o banheiro e jogo tudo no cesto, continuo ali, pelado e pensando, pensando em como fui idiota, em como me deixei manipular, ando de um lado para o outro e de repente me vejo no espelho do guarda-roupas, ridículo, nu, barrigudo, pelancas por todo o corpo e eu choro, não sei por que eu choro ainda, tantas e tantas vezes eu choro por aquele maldito bilhete, aquelas palavras que não saem de minha cabeça, e a imagem do espelho treme quando eu abro a porta do velho armário, que range um pouco, e estala, e range e estala, e então o espelho se parte, em mil pedaços, e eu me contemplo em cada pedaço ali no chão, um olho, um joelho, a boca torta, o pé ferido com um pequeno caco do velho espelho multiplicado, a dor estampada em cada pedaço de mim, e eu penso como será complicado para eles juntar os cacos de um defunto nu, gordo e nu, velho e nu, e eu penso no tal bilhete que um dia ela deixou no bolso do meu velho e puído paletó, e eu lembro o bar, o velho bar do centro da cidade, a despedida, o chope, o chope que desceu amargo, o olho que só vê o velho paletó já meio puído na manga, o olho que olha em volta, meio tímido, meio envergonhado, e tudo ali é muito velho, os garçons são tão velhos quanto as paredes pintadas com gravuras da década de vinte, as cadeiras, até a comida deve ser a mesma que servia Oswald de Andrade e os modernistas quando aprontavam por ali, nas suas bebedeiras, e eu vejo a mim mesmo entre eles, refletido no espelho do velho bar, espelho que um dia um deles, talvez Oswald, Mário, quem sabe? ou até o velho maestro, um deles, um deles trincou ao lançar um copo, por quê? ninguém sabe, ninguém sabe nem de mim nem de outros como eu, velho e só, e ele, o espelho quebrado, ficou ali para sempre, testemunha de meu fracasso, e penso que estou ali naquele velho espelho, entre Oswaldo e Menotti, que estúpido, não sou tão velho, embora esconda as cãs num velho e sujo boné, então eu me lembro que ela havia deixado um bilhete, apenas um bilhete no bolso do velho e puído paletó, há quanto tempo mesmo? não sei, apenas a lembrança dela me afogueou o sexo, o plexo, a dor que subiu do ventre para a barriga e alcançou o coração, uma pontada, apenas uma pontada e a cabeça agora lateja, eu estou aqui, no velho, muito velho quarto da minha velha pensão de quinta, eu sei que não devia lembrar, eu sei que não devia estar chorando assim, no meio de tantos cacos de um espelho quebrado, mas o bilhete, o bilhete que eu trazia há mais de trinta anos no bolso de meu paletó, no bolso revirado do meu velho e inefável paletó puído...



(Ilustração:  Britto Velho)

9 de dez. de 2022

Poema indesejável








Cristo morreu. Dizem que era um deus.

Mas morreu. Não importa como: morreu!



Buda era profeta. Dizem que poderoso.

Mas morreu. Não importa como: morreu!



Galileu Galilei escapou da inquisição.

Mas morreu. Não importa como: morreu!



Zumbi dos Palmares lutou por seu povo

Mas morreu. Não importa como: morreu!



Frida Khalo sofreu e pintou seu sofrimento.

Mas morreu. Não importa como: morreu!



Hemingway foi à guerra. Enfrentou a tirania.

Mas morreu. Não importa como: morreu!



Martin Luther. Foi a voz poderosa dos negros.

Mas morreu. Não importa como: morreu!



Fidel Castro libertou seu povo. Parecia eterno.

Mas morreu. Não importa como: morreu!



Morreram deuses e morreram sábios.

Morreram o coveiro e o menino de rua.

Morre a atriz e morre o ator. Não importa a fama.

Morreram!

Morrerá amanhã a rainha da Inglaterra.

Morreremos todos. Morreremos!

E a Terra – que gira em torno do Sol há... quanto tempo? –

Morrerá também. E o Sol. E as estrelas. E o Universo

Morrerá talvez num buraco negro.

Sabe-se lá por quê.

Morre-se. E é só isso a vida.




21.5.2021

(Ilustração: Gustave Courbet - A Burial at Ornans)

7 de dez. de 2022

poema fatal

 





quando de repente escrevo

que tudo quanto lhe devo

são meus ais

e todos os meus versos não são mais

do que esperanças ocas

– muito poucas –

só as que deixam marcas nas estradas vazias

por onde caminho todos os dias

é porque nesse instante transcrevo

nas três folhas de um trevo

o poema fatal

que começa assim

- sou para você o eterno mal

enquanto você corrói por dentro de mim

a minha carne apodrecida e sem sal



6.11.2021

(Ilustração: Zdzisław Beksiński)

3 de dez. de 2022

o vazio em minha vida

 





abriu-se um espaço

em minha vida

preso estou num laço

onde nada acontece

o vazio total abre em mim a ferida

de nada sentir

de nada pressentir

não tenho mais fome nem sede

apenas me enleio nos fios de uma rede

que a bruma entretece

para me pregar como peixe-espada

apenas um troféu na parede

sem qualquer possibilidade de reagir



por esse vazio não tenho vontade de nada

nem de amar

nem de chorar

nem de pensar

muito menos caminhar

pois meus passos

ficaram tortos

edipianamente amarrados

como se meus sentimentos

estivessem macerados

como folhas de alecrim

dados todos como mortos

e não houvesse por eles

dentro de mim

mais quaisquer lamentos

tampouco quaisquer tormentos





29.11.2022

(Ilustração: Edward Hopper)