como uma faca em brasa cortando um naco de manteiga
escrevo meus versos
guardo para outros poetas a sutileza e a maciez de palavras doces
e quando os leio e penso que devia escrever assim
logo concluo que esse mundo em que vivo não permite
que amacie meus versos em concerto de piano e violino
prefiro os tambores rudes de troncos de baobás
crestados pelo fogo das savanas africanas
no couro da minha pele há palimpsestos de priscas eras
marcas de dentes de máquinas de servidão
somatizo o sonho inalcançável de igualdades desejadas
desdenho o fogo morto das fábricas de chocolate suíço
viajo em navios de piratas para afundar torpedeiros russos
transporto a água benta que não apaga as dores de hiroshima
colho na floresta amazônica o resto de bálsamo
que os caciques dos ianomami juraram
que limparia do mercúrio as águas dos seus rios
trafego em ruas e avenidas de nova iorque e paris
torcendo o escapamento de minha ferrari para dentro dos narizes
dos capitalistas que se ajoelham diante dos altares do consumismo
inutilmente
perpasso cada passo pela guerra de cada canto
pela fome de cada favela
pelo grito de cada feminicídio
pelo arrocho de cada preconceito
pela fé azeda de quem não confia na ciência
desenho em minha mente um garrote vil
para os garimpeiros
para os caçadores
para os madeireiros
para todos aqueles que cagam em nossos rios
para todos aqueles que poluem nossos ares
para todos aqueles que semeiam a dor da fome pelo mundo
para todos aqueles que batem os tambores da guerra
exorcizo cada ser humano que a peste da violência matou
carregando ombro a ombro com os povos do xingu
o tronco mágico para a dança ritual do quarup
a faca em brasa de meus versos corta a manteiga do desespero
de cada ser humano que o poço da desigualdade engole
e não encontra no fundo do prato qualquer possibilidade
de que um dia os meus dedos percorram a borda do copo de vinho
e o cristal cante um canto de esperança para humanidade
6.3.2024
(Ilustração: Hieronymus Bosch)
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