13 de fev. de 2025

faca em brasa

 



como uma faca em brasa cortando um naco de manteiga

escrevo meus versos

guardo para outros poetas a sutileza e a maciez de palavras doces

e quando os leio e penso que devia escrever assim

logo concluo que esse mundo em que vivo não permite

que amacie meus versos em concerto de piano e violino



prefiro os tambores rudes de troncos de baobás

crestados pelo fogo das savanas africanas



no couro da minha pele há palimpsestos de priscas eras

marcas de dentes de máquinas de servidão

somatizo o sonho inalcançável de igualdades desejadas

desdenho o fogo morto das fábricas de chocolate suíço

viajo em navios de piratas para afundar torpedeiros russos

transporto a água benta que não apaga as dores de hiroshima

colho na floresta amazônica o resto de bálsamo

que os caciques dos ianomami juraram

que limparia do mercúrio as águas dos seus rios



trafego em ruas e avenidas de nova iorque e paris

torcendo o escapamento de minha ferrari para dentro dos narizes

dos capitalistas que se ajoelham diante dos altares do consumismo



inutilmente



perpasso cada passo pela guerra de cada canto

pela fome de cada favela

pelo grito de cada feminicídio

pelo arrocho de cada preconceito

pela fé azeda de quem não confia na ciência



desenho em minha mente um garrote vil

para os garimpeiros

para os caçadores

para os madeireiros

para todos aqueles que cagam em nossos rios

para todos aqueles que poluem nossos ares

para todos aqueles que semeiam a dor da fome pelo mundo

para todos aqueles que batem os tambores da guerra



exorcizo cada ser humano que a peste da violência matou

carregando ombro a ombro com os povos do xingu

o tronco mágico para a dança ritual do quarup



a faca em brasa de meus versos corta a manteiga do desespero

de cada ser humano que o poço da desigualdade engole

e não encontra no fundo do prato qualquer possibilidade

de que um dia os meus dedos percorram a borda do copo de vinho

e o cristal cante um canto de esperança para humanidade



6.3.2024

(Ilustração: Hieronymus Bosch)







Nenhum comentário:

Postar um comentário