30 de set. de 2025

resiliência

 



eles cortam a árvore

– ela volta a crescer



eles matam a árvore

– ela volta a brotar



eles devastam a floresta

– ela volta mais verde



eles queimam a floresta

– ela espera que o tempo esfrie a terra

na sua calma de séculos de resiliência

e um dia a floresta está lã de novo pujante



mas isso nossos olhos não verão

– será tarde demais!



13.8.2025

(Ilustração: Paul Cézanne - forest, circa 1902-1904)

 

27 de set. de 2025

que tal o impossível?

 



que tal se sumíssemos

com os todos os veículos que poluem e matam



que tal se construíssemos

somente casas térreas com jardins na frente



que tal se abríssemos

somente ruas e avenidas de álamos e mangueiras



que tal se sumíssemos

com todos os ladrões e corruptos



que tal se convencêssemos

os possíveis assassinos de que a vida é única



que tal se festejássemos

todos os dias com festas e carnavais



que tal se nadássemos

em rios sinuosos de águas límpidas



que tal se navegássemos

por oceanos livres de óleo e plástico



que tal se salvássemos

do fogo e da serra todas as florestas



que tal se tivéssemos

uma sociedade livre e sem desigualdades



que tal se eliminássemos

de uma vez por todas o capitalismo



que tal se pudéssemos

se pudéssemos

se pudéssemos

.

.

.


e que tal se ouvíssemos

sempre e sempre a música de Itamar Assmpção





31.8.2025

(Ilustração: br.freepik.com/Direitos reservados)

24 de set. de 2025

ponto final

 





durante toda a nossa vida

cultivamos

muitos pontos

de interrogação

e também

muitas reticências



até que um dia

escolhemos colocar

um enorme

ponto de exclamação

numa encruzilhada

de rumos perdidos



quando na verdade

devíamos ter a coragem

de transformar

esse enorme ponto de exclamação

em ponto final





9.12.2024

(Ilustração: Viktor Vasnetsov - cavaleiro na encruzilhada)

21 de set. de 2025

pequenas coisas

 







pequenas coisas que eles nos tiraram e pelas quais choramos

– a nesga de céu que ficou atrás de mais um prédio

– o arrulhar da rolinha – sem a árvore para o ninho

– a calma do entardecer – engolido pelas buzinas

– o sono e os sonhos entre estrelas – pelas luzes esmaecidas

– e até o tempo de esperar por um amor com uma flor nos lábios



são essas e muitas outras pequenas coisas que eles nos tiraram

e tão sutilmente o fizeram que nem percebemos

e quando nos demos conta por elas choramos e nos entristecemos



e enquanto choramos e nos entristecemos pelas pequenas coisas que perdemos

não nos demos conta – oh! humanos sem memória! – destas que nos tiraram

– igualdade

– justiça

– liberdade

e outras tantas e tão grandes que há tanto tempo já eles nos surrupiaram

que de grandes ficaram pequenas no rio de nosso esquecimento





13.8.2025

(Ilustração: escultura de Albert György)









18 de set. de 2025

novas velhas cançonetas de amor

 








1.

o tanto de coisas

que temos em comum

traz-me a suspeita

de que um dia

- quem sabe?

eu peça ao vento

um beijo teu



2.

um dia olhei fundo

no mais fundo dos teus olhos

- lembrei-me de Nietzsche



3.

talvez eu queira

que me dês tuas mãos

para que eu possa apertá-las

como apertaria uma nuvem



4.

no meio da tarde

pensei em ti

será esse um sinal

de que há rosas

no meu jardim?



5.

não quero sonhar contigo

porque o sonho atraiçoa-me

quero apenas a cabeça livre

sobre um travesseiro de plumas



6.

quando penso em ti

vejo sombras na parede

e então sei

que não estou sonhando



7.

sigo pela rua sozinho

e meus passos tropeçam

nos sonhos que sonho

sonhando que tu existes



8.

há meu desejo de ser feliz

e há teus caminhos aleatórios

escolho esperar que voltes

no próximo raio de lua



9.

compartilho contigo

meus dias que virão

olhas apenas

para meus dias

perdidos no tempo



10.

sei que és espanto e sonho

sabes que sou vento e abraços

caminhamos assim

dois velhos amantes

que ainda não se amaram





18.6.2025

(Ilustração: escultura de Étienne Pirot - La conversation - Havana, Cuba)





15 de set. de 2025

medos infantis






penso e repenso e tento me lembrar

se tive medos infantis

se em noites de frio ou lua cheia

se em noites de raios e trovões

tive pesadelos que toda criança tem



e tento lembrar se nessas noites de terror

a quem recorria

– ou melhor –

se havia alguém a quem recorrer

além de minha mãe



– talvez um pai –



não

não me recordo de nenhuma noite

de terror

de pesadelo

de raios e trovões

em que tivesse o apoio

em que tivesse o carinho

em que tivesse o abraço

e o regaço

– de um pai



o silêncio do chamado por ele

– o pai

povoou minhas noites

povoa agora minhas lembranças



mesmo que pareça

um bebê chorão retardado

no tempo e no espaço

tomo afinal consciência

de que a falta daquele abraço

de que a falta daquele braço

não há tempo que os redima





31.3.2025

(Ilustração: desenho de John Kenn Mortensen: creepy childhood monsters)

12 de set. de 2025

eu paulistano

 



nasci em São Paulo aos 20 anos

numa manhã de janeiro

(o ano não importa)

juntamente com meu companheiro

um irmão quase gêmeo de meus desenganos



dois caipiras na grande cidade

com poucos rumos a trilhar

somente na bagagem a vontade

de viver

de trabalhar

de estudar



passamos – como sempre acontece

com quem aqui chega e nada conhece –

perrengues mil e muita dificuldade

só não passamos fome porque achamos emprego

e eu até entrei na faculdade



se foi difícil esse engatinhar

não tem sido fácil aqui continuar



meu companheiro de nascimento

cresceu asas e voou logo para outras plagas

e eu aqui vivo 
e não sei 

se entre mais alegrias do que sofrimento

lambendo minhas crias e minhas chagas



daquela manhã distante de janeiro

- quando aos 20 anos aqui nasci –

guardo na retina o instante primeiro

quando esta cidade eu vi

se com ela durante anos e anos cresci

não posso deixar de dizer

que apesar de tudo não sei viver

longe da são paulo em que aos 20 anos nasci





8.7.2025

(Ilustração: São Paulo, Avenida São João,  c. 1965)


9 de set. de 2025

eu e meu nome

 





decomponho em números o meu nome

2 letras I

2 letras S

2 letras A

e as três letras formam o antropônimo ISA

– o nome de meu primeiro alumbramento

[não o alumbramento do poeta

– eu tinha apenas 7 anos –

nada sabia do Recife – nada sabia de alumbramentos]



e daí – eu pergunto

e daí – nada – eu mesmo respondo

são números e coincidências da vida

nada dizem esses números

também nada diz o antropônimo ISA

nem de minha vida nem de meu futuro já passado



o tempo – sempre ele – o maldito tempo

naufragou em rios negros de ilusões

todos os meus futuros e já passados sonhos

naufragou em abraços vazios

todos os meus amores



– ah! esses amores!

tive-os até mais do que imaginara

amores bons e calmos como brisa de outono

amores tempestuosos como um tango argentino

amores duradouros como os arbustos da serra

e até amores inúteis e fúteis

como as lágrimas que por eles derramei

– não me detive por eles

não me penitenciei por eles

e hoje bebo uma taça de vinho por seus naufrágios

e penso na solidão de que me lambuzaram

– esses amores todos –

desespero-me apenas por não os ter na memória

para ver e rever as águas revoltas

que os rolaram montanha abaixo



não importa mais

vivo e sobrevivo

na minha angústia de spleen do século XIX

[tão fora de meu tempo de bites e bytes]



se recorro à memória [e ela me trai

como me traíram os muitos amores]

e se a esses amores

tento voltar de vez em quando

é que me reservo a mim

aquele tanto de masoquismo

[de masoquismo amargo]

que todo poeta deve cultivar



e eu que carrego um nome de letras repetidas

e eu que carrego todo um mar de solidão

desse masoquismo tresloucado

bebo com prazer

gota a gota e cada gota

de todo o seu amargor




13.8.2025

(Ilustração: escultura de Daniel Popper)

6 de set. de 2025

cidade perdida

 


há uma cidade perdida dentro de mim

somente dentro de mim

porque a verdadeira cidade de minhas lembranças

não mais existe nem está perdida

apenas não é mais a cidade que permanece dentro de mim



suas ruas tortas

suas praças mortas

suas árvores secas

suas casas baixas

são só a inspiração para versos de uma saudade

que também está perdida dentro de mim



e não mais faz sentido essa saudade

depois de tanto tempo

apenas sentimento fingido como fingida está a névoa do tempo

que pressinto mais do que sinto fazer estragos na minha memória



se subo ruas e ladeiras de antanho

recrio a inexistência dessa cidade perdida no fundo de mim

e não sou feliz nem infeliz

apenas um poeta tolo a escrever versos para uma saudade idiota



5.3.3024

(Ilustração: Volpi)


3 de set. de 2025

chuva de verão




despenca em meu peito

uma chuva de verão

da nuvem da solidão

fertilizando o eito

onde brotam as flores

negras de paixão

e tirando do leito

o rio das minhas dores





4.3.2024

(Ilustração: Vincent van Gogh - La Pluie, 1889)