caro poeta do século vinte
escrevo-te malpassadas linhas
para lembrar-te que não esqueço
teu poema espantado
e dizer-te que os tempos mudaram
meu poeta – para este tempo que te conto assim:
sob a chuva chapinha o bicho os pés na enxurrada
deserta a rua
por detrás dos grossos vidros escuros do apartamento
olhos vermelhos de espanto espiam
o bicho em seu caminho fuçando latas de lixo
de dentro dos salões apagados
dedos angustiados
teclam teclas coloridas
segue o bicho seu trêfego caminhar
[pausa o tempo no tempo de buscar]
estraçalha o silêncio um estampido
luzes se acendem
janelas e portas se abrem
a chuva cessa
buzinam os carros
correm as gentes
chega o camburão
jogam dentro dele o corpo do bicho
suspiram donzelas pelas janelas
[e donzelas nas janelas – meu poeta –
são o escracho deste meu tempo
de bites e bytes]
porque o bicho não era bicho
- espantado poeta do século vinte –
o bicho era apenas
um pobre preto da periferia
termino meus malpassados versos
- caro poeta – dizendo-te que teu tempo
ao meu tempo se mistura
sendo o mesmo tempo em tintas outras
mais negras – poeta – mais negras
12.7.2023
(Ilustração: Judit Reigl - Les Huns - 1964; foto de André Morin)
Ouça esse poema, na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, num destes endereços:
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O poema de Manuel Bandeira, O BICHO, pode ser lido neste endereço:
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