9 de nov. de 2024

pequena carta para manuel bandeira

 






caro poeta do século vinte

escrevo-te malpassadas linhas

para lembrar-te que não esqueço

teu poema espantado

e dizer-te que os tempos mudaram

meu poeta – para este tempo que te conto assim:



sob a chuva chapinha o bicho os pés na enxurrada

deserta a rua

por detrás dos grossos vidros escuros do apartamento

olhos vermelhos de espanto espiam

o bicho em seu caminho fuçando latas de lixo



de dentro dos salões apagados

dedos angustiados

teclam teclas coloridas

segue o bicho seu trêfego caminhar

[pausa o tempo no tempo de buscar]



estraçalha o silêncio um estampido



luzes se acendem

janelas e portas se abrem

a chuva cessa

buzinam os carros

correm as gentes

chega o camburão

jogam dentro dele o corpo do bicho



suspiram donzelas pelas janelas

[e donzelas nas janelas – meu poeta –

são o escracho deste meu tempo

de bites e bytes]

porque o bicho não era bicho

- espantado poeta do século vinte –

o bicho era apenas

um pobre preto da periferia



termino meus malpassados versos

- caro poeta – dizendo-te que teu tempo

ao meu tempo se mistura

sendo o mesmo tempo em tintas outras

mais negras – poeta – mais negras






12.7.2023

(Ilustração: Judit Reigl - Les Huns - 1964; foto de André Morin)


Ouça esse poema, na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, num destes endereços:

- no pocast:


- no you tube:


O poema de Manuel Bandeira, O BICHO, pode ser lido neste endereço:

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