16 de out. de 2024
para minha mãe
queria hoje ter a fé dos desvalidos
para conversar de novo com minha mãe
mas mesmo sem qualquer metafísica
falo com ela todos os dias da minha vida
o eu menino que convive em mim
chora o choro infantil de cada dia
no colo de minha mãe que me acolhe
sou o frágil broto que não cresceu
olho para o tempo o tempo todo
sabendo que o tempo que tenho
é sempre o tempo que não tive
nem o tempo que nunca terei
quando tive o tempo com minha mãe
talvez não tenha tido toda a consciência
de que fulge o tempo feliz como o raio
que não luz duas vezes na mesma nuvem
não colhi todos os beijos que necessitara
nem me dei conta de que um dia
tudo quanto gostava teria um fim
hoje sou apenas a sombra que sonha
com meu passado como se fosse o futuro
sem a fé dos desvalidos de rever minha mãe
28.8.2024
(Foto de família: minha mãe e meus filhos)
13 de out. de 2024
para meu irmão
meu irmão cosia panos
para homens tronchos
que andavam nus
na cidade fálica de três pontas
e na cidade vagínica de varginha
- isso lá nos idos de minas das minas gerais
meu irmão era espírita
de carteirinha e de centro de recebimento
dos espíritos perdidos nas duas cidades
citadas acima
meu irmão sofreu um avc e nenhum espírito
[nos espíritos ele tinha fé de que curavam
mazelas do corpo e do espírito – por mais estranho
que fosse toda essa crença – pelo menos para mim]
nenhum espírito – de gente ou de porco – curou
a manquitolagem da perna com que ele ficou
mas meu irmão – que cosia ternos e era espírita –
era um bom sujeito – fazia caridade e sempre que podia
[- ele sempre podia -] distribuía uma palavra de consolo
a quem quer que ao centro espírita acorria
atrás de alento para as mazelas da vida
eu no entanto não coso panos
coso palavras – e mal as alinhavo
pensando fazer poesia
nem sou crente de espíritos
nem sou crente de deuses
cirzo e recirzo os meus versos
nos panos brancos de telas e entretelas
alguns versos são ternos
[não os ternos de meu irmão]
e pretendendo sejam eternos
tornam-se apenas espíritos de porco
a cutucar algum leitor distraído
que ande nu pelas ruas
não das cidades vagínicas e fálicas de minas
mas da cidade de nome de santo
que se santifica nas águas de um rio podre
- o jordão das mágoas das entranhas estranhas
de poetas que sonham sobolos rios babilônicos
por favelas nunca dantes e nunca jamais
irrigadas de bem quereres
perdidas em seus manguezais
- e eu nem sei se sou mesmo esse poeta
que penso ser
e invejo os ternos todos cosidos por meu irmão
que caminha hoje por entre seus amados espíritos
e não vem nunca me dar uma palavra de consolo
ou uma mãozinha quando tento
pregar um maldito botão numa camisa
23.10.2023
(Ilustração: meu irmão Samuel e sua filha Fátima
com minha mãe e uma de minhas filhas; fot de família)
10 de out. de 2024
para marielle
pele negra
do negror de áfricas e bahias
das ruas e favelas de todos os brasis
o futuro nos olhos negros
a saberes de política
a saberes de políticos
mulher de mulher entendida
inimiga pública
número um
de todos os machos inconformados
de todos os políticos malcriados
matá-la é preciso
e as balas que explodiram em seu corpo
desenharam flores vermelhas
sem precisar abrir-lhes a porta do automóvel
e espalharam essas flores pelo mundo
que ela conquistaria
que ela construiria
com seu olhar de futuro
com seu olhar de mulher negra
mulher que da vida já quase tudo sabia
m
ma
mar
mari
marie
mariel
mariell
marielle
o teu nome está nas ruas
em todas as ruas
por onde passeie o desejo de paz
o teu nome está nos olhos
de todos os negros
de todos os brancos
de todos os que colorem o mundo
com a cor de suas peles
- despeço-me de ti
marielle
como tenho me despedido
de muitos futuros
11.3.2019
7 de out. de 2024
para alaíde costa
quero ouvir alaíde costa
quero abraçar alaíde costa
quero dançar – de novo –
com alaíde costa
[sim – uma noite dancei com alaíde costa
conversamos um pouco
uma situação inusitada: final de uma peça de teatro
em que lá estava a cantora – que não cantou –
e todos no palco para dançar e conversar com os atores
e lá estava eu dançando e conversando com alaíde costa
não sabia bem o que dizer
mas devo ter dito alguma besteira – era jovem –
e rimos os dois – não me lembro bem –
só lembro que queria ouvir alaíde costa]
eu sempre ouvi a voz maviosa de alaíde costa
a voz suave de pássaro canoro [nem me envergonho
da metáfora idiota] de alaíde costa
a preta que cantou bossa nova
– e a bossa nova branca dos mocinhos de ipanema
não a acolheu porque ela era preta e suburbana
hoje eu acho – acho nada – tenho certeza –
[quando ela está com 89 anos]
de que alaíde costa é a billie holliday brasileira
assim como a lady day é a alaíde costa lá dos gringos
eu não quero morrer ouvindo alaíde costa
– eu quero é viver até os 89 anos – ou muitos mais –
ouvindo sempre ouvindo alaíde costa
27.3.2024
(Ilustração: Alaíde Costa em 1970, durante
o Festival Universitário de Música Popular Brasileira;
foto: Arquivo Público do Estado de São Paulo)
4 de out. de 2024
idiossincrasias
deixem-me a mim
com minhas idiossincrasias
deixem-me a mim
com minhas pequenas manias
pois só vivendo assim
cheio de algumas idiotias
é que consigo ter tempo
para as minhas poesias
antes que venha o vento
que desafia os dias
e traga o total desalento
minha insistente e renitente reclusão
não é nunca solidão
é apenas uma rima pobre
de alguém que com ela não sofre
se até hoje comigo não me desavim
não quero com ninguém encrencar
peço a todos paciência
ao meu agora mais lento desenrolar
se meu cérebro já não guarda tanta ciência
deixem-me a mim
o ato de meus versos declamar
pois só tenho agora a minha voz
para desatar todos os nós
da pouca vida que me resta
se vocês acham que não presta
a triste poesia que em meus versos destilo
saibam que com eles é que eu resisto
e reafirmo sempre - mesmo sem estilo -
que viver e sobreviver para mim é isto:
a pluma de um verso livre no final de um poema
30.9.2024
(Ilustração: Tristan Corbière - auto caricatura)
Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, nestes endereços:
- you tube:
- podast:
1 de out. de 2024
Para Adélia Prado
Não sei se me leminsko
Ou se me drummondeio.
Talvez apenas me embandeire,
Para soltar um bem mineiro brado:
Uai, gente, ela é... Adélia Prado!
27.6.2024
(Ilustração: Adélia Prado; foto da internet, sem indicação de autoria)
28 de set. de 2024
Palimpsesto de esperança
A droga que injeto em minhas veias todos os dias
É a vida.
A droga que cheiro em carreiras loucas por ruas tortas
É a vida.
A droga que queimo no meu cachimbo da paz a cada hora
É a vida.
A droga que bebo de bar em bar para afastar o tédio
É a vida.
Masculiniza-me a droga da vida para os saltos e sobressaltos do mundo.
Feminiliza-me a droga da vida para os desentorpecimentos de minha mente.
Movido que sou pela droga da vida não queimo o pavio da vela pelos dois lados.
Então eu vos pergunto – oh meus irmãos de estrada – por onde caminhais?
Que estrelas do espaço sideral guia vossas vontades de sangue?
Por que vos matais a vós mesmos a cada respingo de chuva ácida?
Por que vos matais a vós mesmos nos campos de batalha?
Por que vos matais a vós mesmos em cada beco sujo por motivo fútil?
Quais são as vossas encruzilhadas e os vossos descuidados dissídios?
Não coloquemos coroa de flores no túmulo do soldado desconhecido.
Não ergamos estátuas a generais nem a pseudo-heróis de sujas batalhas.
Não cultivemos a mão armada que se ergue por fúria ou preconceito.
Abracemos a volta dos desertores e espalhemos flores atrás de seus passos.
Apenas a poderosa droga da vida corra como sangue por nossas veias.
A vida. Ah, a vida!
Celebremo-la.
Cantemo-la.
Dancemo-la.
Que se espalhem pelos caminhos os nossos risos - não as nossas lágrimas.
Que depois de cada curva não estejam a nos espreitar os espectros dos assassinos.
Que haja depois de cada pedra que machuca nossos pés um tapete de folhas verdes e botões de flores e sementes das árvores que nos darão os frutos do mais que ansiado respeito à vida.
Assim penso eu – o ingênuo poeta desses tempos de tormentos e espantos.
Assim penso eu – ó meus quase irmãos de compartilhadas crenças – como um desabafo de esperança que escreva uma nova história no palimpsesto de cada pele que cobre nossos corpos.
15.3.2024
(Ilustração: Oskar Kokoschka:Dolomite Landscape)
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25 de set. de 2024
paisagens da minha mente
desoladas paisagens da minha mente
por onde flutuam como nuvens de fumaça
meus fatigados anseios e eu sou o demente
que ainda desenha um futuro e traça
a linha do horizonte como limite
dos passos trôpegos a pisar caminhos de areia
no silêncio dessas paisagens o canto triste
de um pássaro que não mais semeia
a árvore do fruto mais cobiçado
a árvore que daria ao olhar que anseia
um pouco mais de amplitude
um pouco mais de juventude
22.12.2022
(Ilustrção: Dorr Bothwell - Máquina da memória, 1947)
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22 de set. de 2024
os miseráveis
o nojo que se sente
pelas ruas de são paulo
esse fedor de urina e merda
não vem esse fedor de urina e merda
das bundas do povo da rua
são nojeiras que descem
das mansões de luxo da elite
- rios de urina e merda –
- rios ricos de ouro e prata –
a merda que sai da bunda dos miseráveis
é merda gestada nas bocarras ridentes
de bilionários insensíveis – que não pagam impostos
de governantes comprados – que só pensam nos ricos
dos políticos corruptos – que só fazem obras superfaturadas
o cheiro podre da urina dos miseráveis
nasce nas garrafas de vinhos romanée-conti grand cru
bebidos sobre tapetes persas de apartamentos de 600 metros quadrados
nos chamados bairros nobres da cidade que naufraga
que naufraga na urina e na merda mais rica do mundo
mijadas e cagadas em latrinas banhadas no ouro dos rios amazônicos
não culpe portanto – meus amigos e amigas - os miseráveis
pela imundície que sangra seus narizes e arrepia sua pele
o que sangra o pobre é a faca afiada
do desprezo
o que sangra o pobre é a faca dourada
da insensibilidade
a mesma faca afiada que corta o pescoço das aves que engordam o foie gras
a mesma faca dourada que passa no croissant fartas porções de caviar
eles – os poderosos – comem comidas poderosas
eles – os poderosos – bebem bebidas poderosas
e os miseráveis todos das ruas da cidade
cagam e mijam essas comidas e bebidas poderosas
que nunca cheiraram e nunca provaram
resta a eles – aos miseráveis das ruas da cidade –
a folha de alface murcha da lixeira do restaurante de luxo
a folha de alface murcha sonhada como endívias em cremes de ouro
resta a eles – aos miseráveis das ruas da cidade –
o osso do peru de natal da classe média
o osso do peru da classe média roído como carne do boi wagyu
resta a eles – aos miseráveis das ruas da cidade –
o resto de coca-cola azeda no fundo da garrafa jogada no meio-fio
o resto de coca-cola azeda bebida como uísque 12 anos
o caviar - o vinho – a alface murcha – o osso roído – a coca-cola
não importa quem bebe
não importa quem come
se tudo vira merda
a merda eterna que pelas paredes de mármore de carrara
das mansões dos poderosos
portanto – meus amigos e minhas amigas –
relevem o cheiro de urina e merda
das ruas da cidade
que o cheiro podre não vem da bunda dos miseráveis
o cheiro podre das ruas da cidade – de todas as cidades –
vem da bocarra infame dos engolidores de dólares
que só engordam nossos fígados
para comê-los como canibais
nos banquetes e orgias das bolsas de valores
são eles a urina que mijam os miseráveis pelas ruas
são eles a bosta que cagam os miseráveis pelas ruas
3.1.2024
(Ilustração: Gustave Doré - Dudley Street Seven Dials, 1872)
19 de set. de 2024
os corvos
será sempre mais belo
o poema que não escrevi
será sempre mais doce
a fruta que não comi
o passo marcado no pó do caminho
não sabe o destino que escolhi
incertezas
apenas incertezas desfolham
cada gesto que o tempo encolheu
penso ser o navio encalhado
o calhau na hélice do futuro
se a rosa que perfuma
cai ao vento da fortuna
permaneço a marca no fundo do rio
imanente é o tempo
– sempre ele –
que tenho para viver
deixo na rosa o sonho
colho do espinho a esperança
– que seja eu o seixo na estrada
– que seja eu o vale que renasce
depois da tempestade
ossos pelo caminho
são o que restou
– não os cobri de lágrimas
e não os quero sob a terra
– testemunhem apenas
– testemunhem –
os poemas que não escrevi
os frutos que não colhi
os destinos que não escolhi
e que não os biquem
os corvos de sempre
10.1.2024
(Ilustração: Andrea Kowch, 1986)
16 de set. de 2024
o tempo, sempre ele
(não que seja isso algo excepcional)
– o tempo a todos envolve em suas tralhas
e elas são o que são – nem bem nem mal –
passamos a envelhecer como tudo
o que existe no mundo e isso é natural
mesmo que não pareça – até as pedras
envelhecem no rolar inexorável do tempo
na natureza tudo se transforma e medra
em outras formas – já disse algum sábio
somos todos escravos do momento
que – se nunca conseguimos capturar –
do nascimento ao ocaso a vida transcorre
e tudo – tudo que possamos imaginar –
muda / desgasta-se / torna-se pó / morre
2.12.2022
(Ilustração: figura da internet, sem indicação de autoria)
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13 de set. de 2024
o poeta que habita em mim
o poeta que habita em mim
tem arroubos de genialidade que eu – um pobre ser humano –
teria – por ser tímido – pruridos de confessar
mas tem também zurros horrendos de burros velhos
que eu – um tantinho orgulhoso de minhas leituras –
não ousaria jamais emitir
o poeta que habita em mim
escreve poemas de me que orgulho quando os leio
mas também produz bobagens tais
que só não os rasgo e jogo fora porque ele não deixa
e ainda se ri da minha cara com o riso louco dos escarnecedores
o poeta que habita em mim
escreve às vezes lições de vida que transcendem meu entendimento
mas também destroça meus sentidos
com lacrimosas estâncias de românticos imberbes
o poeta que habita em mim
canta hosanas a deuses e sábios com o frescor de liras romanas
mas também esquece muitas vezes o bom-mocismo
e chafurda em carnalidades de bordéis de beira de estrada
o poeta que habita em mim
parece haver vivido vidas tão antigas quanto a babilônia
ter singrado mares em navios corsários
ter mergulhado em pântanos atrás de tesouros inexistentes
ter rezado missas em picos nevados
ter atravessado desertos em lombos de dromedários
e ter feito guerras improváveis em reinos impossíveis
o poeta que habita em mim
derrama azeite quente nas minhas feridas
coloca icebergs que afundam navios dentro de meu peito
corrige meus estertores de cada dia
alucina com meus sonhos e gargalha com meus pesadelos
o poeta que habita em mim
terça espadas com meus sentimentos todos
e como um espadachim de luz e trevas
conduz meus passos lentos e meus versos tortos
para o topo de uma vida que eu gostaria de ter vivido
18.11.2023
(Ilustração: Fernando Santos: Bocage e as Ninfas, 1929
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10 de set. de 2024
o oco do meu peito
palindrômica palavra de três letras apenas
falo do oco que preenche o meu peito
nele cabem da minha vida todas as penas
e ainda sobram as dores que rejeito
que escorrem como lava de vulcão
e queimam cada fibra do meu coração
24.5.2024
(Ilustração: Gustav Klimt - tragédia, 1897
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7 de set. de 2024
o nojo
no prato
um rato
já morto
na boca
a louca
morbose
vomito
a dose
do rato
no prato
desejo
o beijo
sofrido
o espanto
do santo
no grito
eu frito
a mágoa
deságuam
nos olhos
dos alhos
dos tempos
dos ventos
das rimas
das primas
as danças
as tranças
no prato
o garfo
escárnio
chorar
e amar
no mar
à luz
ferida
na boca
do rato
o pus
eu bebo
e cedo
tropeço
não caio
despeço
em maio
à lua
tão nua
o verso
diverso
de tudo
do luto
desejo
o beijo
maldito
retido
fedido
vontade
maldade
a morte
senhora
ao norte
agora
de novo
apenas
as penas
o rato
no prato
2.4.2023
(Ilustração: Eric Lacombe - dark abstract portraits)
4 de set. de 2024
o gato
adotou-me um gato
chamado torquato
de direito meu dono
faz de mim gato-sapato
perturba meu sono
come no meu prato
e nunca descansa
à noite pula a janela
para sua folgança
foge quando quer
e a pelagem amarela
volta de uma cor qualquer
de tanta sujeira
às vezes dorme fora
em alguma pirambeira
regressa à luz da aurora
miando como um louco
para eu lhe abrir a porta
esse gato não come pouco
porque a ele não lhe importa
ficar gordo já que passa
o dia inteiro pelos cantos
a dormir e ronronar
e à noite ir para a praça
e entre outros gatos tantos
uma bela gata encontrar
com dengos e miados
a noite inteira namorar
só de manhã regressar
essa é a vida do gato
chamado torquato
que de mim faz gato-sapato
mas não fico incomodado
porque esse gato tão safado
é um gato muito amado
29.11.2023
(Ilustração: Carolyn Paterson)
1 de set. de 2024
o deus de baruch espinosa
despetalei até a última pétala a rosa vermelha do meu ódio
arranquei e mastiguei com os dentes famintos de cão de rua
daquela flor amarga e triste a corola nua
para sentir-me enfim dono de novo de meus sentimentos
ainda que restasse na boca o gosto que não passará jamais
de que nada posso fazer contra todas as injustiças do mundo
mesmo que meus latidos roucos contra as armas e as guerras
fossem ouvidos não seriam em tempo algum levados em conta
pois a fúria assassina que mora na mente humana
desde tempos imemoriais
cria a cada momento em cada canto do mundo a vontade insana
de destruir e de matar
os deuses que a humanidade criou sempre foram cruéis e assassinos
mas quando todos eles se uniram numa só vontade divina
o rio lates se encheu de cérberos com potentes caninos
para levar a morte e a destruição a toda e qualquer esquina
e nunca mais o ser que se diz humano conseguiu se livrar
dessa sua louca vontade de destruir e matar
quando despetalo em mim a rosa vermelha do meu ódio
sinto-me menos humano e nem por isso mais divino
ao contrário mais me aproximo das alturas de um pódio
onde os predadores afiam suas garras nos troncos
para se alimentar de sangue seu mais puro desatino
e saltam para o buraco negro onde guardam seus roncos
as bestas-feras de duas pernas que povoam toda a terra
as bestas-feras que exaltam as armas e amam a guerra
30.3.2023
(Ilustração: Johannes Hendrikus Moesman - self-portrait)
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29 de ago. de 2024
novas memórias
cruzei contigo o rubicão das memórias
– meu inefável amigo de asas de metal –
juntos caminhamos pelos campos de nuvens
juntos refizemos riachos de águas arrepiantes
somos – eu e você – os pés que buscavam alegrias
somos – eu e você – os sonhos que povoaram
nas noites frias de um inverno que não acabava
as angústias de tempos e desejos incontidos
hoje o rubicão de nossas travessias aladas
está recolhido ao centro da terra seca
como secas estão minhas memórias de outrora
quando voávamos acima das montanhas
e construíamos nossas vidas nas asas
de metal e sonho do seu paulistinha
29.1.2024
(Ilustração: Vitório Pereira Resende,
a quem são dedicadas essas novas e sempre memórias;
foto sem data)
26 de ago. de 2024
nostalgia
releio meus poemas antigos
pejados muitos deles de erotismo
encontro em seus versos abrigos
para meu atual pessimismo
penso em como era feliz e sabia que o era
ainda que percalços houvera
mas tinha no seu corpo o porto seguro
a abrigar meu passado e meu futuro
vazio hoje me encontro – vazio de mim
vazio de ti e sem qualquer esperança
de despejar algum dia esse vazio enfim
numa taça de desejo e de bonança
abandonado aos humores de minha má sorte
e pelos humores que não mais pulsam dentro de mim
esse desalento me faz pensar na morte
ainda que minha vida esteja longe do fim
sou – amada de tantos prazeres agora impossíveis –
o náufrago em mim mesmo no deserto da falta de desejo
se meus enleios por teu corpo pareciam incoercíveis
mortos estão hoje sem esperança de qualquer lampejo
27.6.2023
(Ilustração: Maria Bashkirtseva - autumn)
23 de ago. de 2024
nós humanos
às vezes me pego pensando: o que sou?
quem eu sou?
indígena, preto, pardo, branco, amarelo, incolor?
olho-me no espelho: sou bonito ou sou feio?
tenho cabeça, tronco e membros – como todo ser humano
seja homem, mulher ou qualquer sexo,
seja preto, branco, amarelo, pardo, incolor, colorido.
penso, sonho, sorrio, choro, amo, odeio,
sou solidário às vezes
indiferente outras vezes
bonzinho ou maldoso, olho torto para umas pessoas,
olho com amor para outras e até mesmo com tesão
beijo, abraço, faço amor, como, bebo, tomo banho,
tenho pele, ossos, pelos, cabelos,
fico doente de vez em quando,
falo besteiras e também verdades
e só tenho uma certeza nesta vida: vou morrer
- infelizmente para mim, claro –
assim como todos os demais seres vivos que habitam
esse nobre e belo e instável e terrífico e tantas outras coisas mais
planeta
e nele vivemos todos e nele sonhamos todos e nele morremos todos
então quando penso no que eu sou ou quem eu sou
sei apenas que sou humano
e não sei por que – sendo todos humanos – nós que
pensamos, sonhamos, sorrimos e temos na cabeça um cérebro
e somos diferentes de todos os demais seres vivos deste planeta
onde há lugar para todos viverem
onde há lugar para todos sobreviverem
onde há lugar para todos conviverem
eu não sei e nunca saberei por que
precisamos matar uns aos outros
em nome de riscos no mapa [as fronteiras]
em nome de deus ou de deuses que nunca vimos
em nome de ideias e ideologias estúpidas e reducionistas
em nome de coisas tão estúpidas
quanto pretensas diferenças entre nós
nós – os seres humanos – que criamos e inventamos tantas coisas
tantas – que não cabem num poema
que não cabem num livro
que não cabem numa biblioteca
que não cabem em lugar algum
mas cabem em nosso cérebro
esse cérebro que pensa e sonha e cria
nós – os seres humanos – que temos esse cérebro
que é a máquina mais perfeita da natureza
nós – os seres humanos – ainda somos tão bárbaros
que ainda não criamos nem inventamos uma verdadeira civilização
2.11.2023
(Ilustração: Marc Chagall - le paradis)
20 de ago. de 2024
nona sinfonia
Beethoven detona na noite o meu tédio
o vinho barato desce como néctar
o sonho flutua de novo no meu cérebro
o sangue que corre em mim fica mais puro
aromas de futuro emergem de meu peito
Beethoven detona na noite o desalento
a vida ganha impulsos de novidade
ninfas de tempos da inocência emergem
como gotas de bálsamo nos olhos secos
e o canto perdido encontra o pássaro
e o pássaro voa nas asas da música
Beethoven explode em mim novos desejos
no canto final da nona sinfonia
28.4.2023
(Ilustração: Kristina Milakovic, Beethoven)
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