20 de dez. de 2025
UMA ESCRITORA COM NOME DE GATO E UM POEMA
Os gateiros temos a mania de nos procurar nas redes sociais, de colecionar nomes de famosos que também são gateiros, de estar sempre atentos a qualquer texto, poema, livro etc. que se refira a gatos. Tenho, inclusive, num dos meus blogs (o “trapiche de bagatelas”), um item dedicado aos gatos que, de forma, vamos dizer, um tanto pernóstica, denomino de “ailurofilia” (amor por gatos). Acima dessa mania de gatos, no entanto, está meu amor pela poesia, pela literatura, pelos livros.
Sim, leio muito. Autores do mundo inteiro. Já li livros traduzidos por ela, que é o motivo desta minha crônica: Margarida Vale de Gato, escritora, poeta e tradutora portuguesa.
Imaginei: alguém com esse nome deve ser gateira.
Busquei em suas biografias, disponíveis na internet, alguma referência a gatos. Nada. Pedi ao chat GPT uma pesquisa, usando como justificativa um poema em que ela faz referência explícita a gatos, chamado “Cat people”. Nada. E ainda levei “bronca” do chat GPT, ao me lembrar que ao escrever um poema que fala de gatos não quer dizer que a autora seja gateira (ou ailurófila)!
No entanto, nada me tira da cabeça que, com esse nome, Margarida Vale de Gato não seja uma gateira. A bronca do chat GPT me levou a analisar com ainda mais detalhes o tal poema, “Cat people”, que transcrevo a seguir:
Curiosa a tribo que formamos, sós
que somos sempre e à noite pardos,
fuzis os olhos, garras como dardos,
mostrando o nosso assanho mais feroz:
quando me ataca o cio eu toda ardo,
e pelos becos faço eco, a voz
esforço, estico e, como outras de nós,
de susto dobro e fico um leopardo
ou ando nas piscinas a rondar –
e perco o pé com ganas sufocantes
de regressar ao sítio que deixei
julgando ser mais fundo do que antes.
A isto assiste a morte, sem contar
as vidas que levei ou já gastei.
Não vou falar sobre a exímia arte poética da autora, o que é evidente a qualquer leitor de capacidade mais aguçada para a poesia. Também não vou comentar o erotismo elegante que perpassa principalmente os dois quartetos, ressaltado por palavras cuidadosamente escolhidas, como “assanho”, “cio” que, associadas ao mundo felino das gatas, reforçado por “a voz esforço, estico”... “como um leopardo”, me provocou arrepios pelvianos. E sou obrigado a concordar com o chat GPT: quando lhe lembrei que há uma animalidade felina no soneto, ele me esclareceu, de forma que fiquei até pensando, de um modo meio absurdo e assustador, que uma inteligência artificial pode ter sensibilidade poética, que, sim, há três elementos no poema que costumam aparecer em textos de escritores que convivem com gatos (e misturo abaixo as observações da IA com as minhas), como as seguintes expressões:
1. “fuzis os olhos”, ou seja, o brilho noturno do olhar felino, a súbita verticalização das pupilas que dá ao predador a capacidade de distinguir seu objeto de caça;
2. “de susto dobro”, típico da gata, que é dos felinos, melhor caçadora que o macho, com o arcar do corpo de forma instintiva, para aumentar seu volume e, com isso, intimidar qualquer possível predador;
3. “as vidas que levei ou já gastei”, um traço que tradicionalmente se atribui aos gatos, de sobrevivência a várias vidas, ou a várias vicissitudes da vida.
A aguda observância da vida dos gatos, ou mais precisamente, das gatas, num poema de extrema beleza e de sutilezas felinas, não faz, é claro, de Margarida Vale de Gato uma gateira, mesmo com esse lindo sobrenome (ou apelido, como dizem os portugueses). Mas faz de mim, seu leitor, não só desse poema, mas de muitos outros, um seu fã ainda mais ardoroso, porque posso sonhar e imaginar que, por trás da grande escritora e tradutora, esconde-se também uma gateira como eu e muitos outros escritores e artistas que já se deixaram retratar em companhia de seus gatos, ou já se declararam explicitamente gateiros. E eu me lembro, especialmente, como exemplo, de Balthasar Klossowski, conhecido como Balthus, o rei dos gatos. Se não encontrei nenhuma foto dela com seu gato ou gata de estimação, não deixarei de esperar que um dia isso ainda aconteça.
Afinal, os gateiros temos assim uma espécie de sete vidas de esperança de sempre encontrar outros admiradores ou apaixonados por gatos, nas mais sutis indicações, nem que seja apenas no sobrenome ou apelido de uma grande poeta.
2.12.2025
(Ilustração: Geza Faragy - slim woman with a cat)
17 de dez. de 2025
noites de outrora
trago das noites de outrora
o cheiro das lobas
impregnado na memória
do meu olfato agonizante
não há nesse cheiro qualquer mistério
que não seja o próprio mistério
de um tempo de espessas magias
de um tempo que – sei agora –
era apenas de desencantos
por beijos jogados no abismo
por promessas perdidas no ostracismo
onde medraram entre pedregulhos
de sentimentos improváveis
semeados por mãos insensíveis
na busca de carícias inúteis
26.9.2025
(Ilustração: Edvard Munch - noite na rua Karl Johan; 1892)
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poema - noites de outrora
14 de dez. de 2025
lua na janela
a lua espiou pela janela
e escondeu-se entre nuvens
de vergonha a palpitar
quando te viu nua e mais bela
que todo o seu esplendor lunar
deixou cair no entanto um breve raio
para atiçar-me tanto amor
que nos jogos de sombra e luz
entre a nudez envergonhada da lua
que tenta concorrer com a tua
escolho o laço de teus braços em cruz
eu – um novo deus crucificado
voo do céu ao inferno em cada espasmo
e nos prazeres mais ateus
morro e ressuscito em cada orgasmo
nas asas de luz dos arroubos teus
pela janela a cada noite que a lua passeia
traz sempre diferente o seu semblante
e ao ver que a cada noite nosso amor se renova
de enciumada e ressentida lua cheia
muda de repente para minguante
e depois para a triste e solitária lua nova
24.4.2025
(Ilustração: Chantron Alexander - Danae)
11 de dez. de 2025
lua morta
quando os
lábios que
beijavam
outros lábios
beijam agora
o vento
e fecham-se ao
silêncio de
uma noite sem luar
bate no peito um
frêmito
de passos ocos
de fantasmas que
caminham por
estradas de
pedras toscas
sem olhar
para trás
[proibido o retorno]
só o abismo e a solidão do abismo
e então
onde
tudo que era
cor e luz
para os
beijos
de lábios rubros
vira o beco onde
se agrupam mais
e mais
os fantasmas
- abantesmas tresloucados
a rugir à lua
a quebrar o
ruído dos
passos ocos
nos dentes
de fera
o desejo morto
insepulto
que
não
devia
nunca
ter
ressurgido
ao grunhido
do vento
à luz
da lua
para sempre
morta morta morta
28.11.2025
(Ilustração: Odile de Schwilgué: lune et mars)
8 de dez. de 2025
inúteis poemas
às vezes penso
quão inúteis os meus poemas
versos e mais versos que não aliviam
as minhas desesperanças
nem abalam corações e mentes
penduricalhos – apenas penduricalhos
de uma vida – margem de rios
em pororoca – que se esboroa
tento reconstruir com meus poemas
as pontes naufragadas
nos rios de minhas lágrimas
e os traços tortos desses esboços
servem somente aos meus sonhos
como raios tênues de esperanças mortas
muitas vezes penso
quão vazios os meus poemas
– inúteis como a própria vida
que carrego – casco endurecido
de um jabuti sem rumo –
per una selva oscura
tantas vezes penso e repenso
quão toscos os meus poemas
– calhaus que as águas levam
para os poços profundos
das cachoeiras
de minhas frustrações
então a certeza
– se a vida me empobreceu
também meus versos
ficaram mais pobres
[não que fossem nobres]
reflexo do que tenho vivido
consequência inevitável
– o que é mais provável –
de tudo que tenho sofrido
8.8.2025
(Ilustração: escultura de Bruno Catalano - Les Voyageurs;
Marselha, França)
5 de dez. de 2025
febril insanidade
escapa-me o pensamento
pelas gretas da memória
e vaga por becos escuros
das ligações neurais
para buscar mundos oníricos
no entremeio
de versos e reversos
por entre os espaços
de um e e outro
mundo de sonhos
penso que
por isto sou poeta:
para enganar-me
a mim
e a meus neurônios
na febril insanidade
de fazer poesia
28.11.2025
(Iluatração: Cândido Portinari: dom Quixote; 1956)
2 de dez. de 2025
eu e meu gato
no microcosmo quântico de minha solidão
para que minha voz
não seja tragada pelo silêncio
converso com meu gato
ronrono para ele
ele ronrona para mim
e entendemo-nos assim
se ele me pede ração
dou-lha
se ele me pede água
dou-lha
se ele me pede carinho
dou-lho
sinto-me então um douto poeta lusitano
a usar essas estranhas formas pronominais
mas isso é o de menos em nossa relação
entre mim e meu gato ou entre meu gato e mim
ronrona a solidão de carinhos silenciosos
e pequenas trocas – também silenciosas – e desejos inconfessados
invejo-lhe a rapidez com que se enrodilha e dorme
em cima de meu peito
ao lento baloiçar da rede
em mornas tardes de mormaço e preguiça
[ah! que delicioso lusitanismo esse baloiçar!]
sim – espreguiçamo-nos silenciosamente
espelhando-nos alheios ao mundo feio lá de fora
porque mundo feio lá de fora enrijece nossos sentimentos
e queremos ser fluidos um com o outro
[se é que você que me lê me entende]
não sei se de mim tem ele alguma inveja
embora leia às vezes em seus olhos claros
uma ou outra admoestação
humano como sou [essa obviedade bem humana]
deve achar-me apenas um provedor
e nada mais do que isso
um provedor não só de sua subsistência
mas também de leves e lentas carícias por seu pelo eriçado
[penso eu que os gatos
que vivem ao lado de humanos
só toleram essa companhia em troca
de uma boa dose diária de afagos]
discreto sempre em sua felinidade
jamais se revolta ou se manifesta contra minhas manias
nem eu – discreto sempre em minha humanidade –
jamais implico com as manias dele
– que manias temo-las ambos aos montes
aceitamo-nos assim
tacitamente um para outro
ronronado e miando
humanizando-se ele
felinizando-me eu
se se pode chamar a isso de receita
que seja exemplo para os humanos lá de fora
que é essa a forma que encontramos
de conviver civilizadamente
em nosso microcosmo quântico
não temos medo de buracos negros
que engulam de repente nossas afabilidades
não temos medo de explosões ou big-bangs
que venham do mundo lá de fora
para romper o mágico silêncio
de nossa compartilhada solidão
[talvez seja isso
felicidade
mas nem eu nem ele
temos tal certeza]
10.9.2025
(Ilustração: foto do autor: gato Theo, agosto de 2024)
29 de nov. de 2025
delírio
quando te despes para mim
a vida se mostra em sua potência
- todos os sóis do universo se apagam
e as constelações todas se colapsam
num imenso buraco negro
ali – naquele quarto imundo
de hotel vagabundo
tudo o que existe se resume
no teu corpo desnudo diante de mim
sou eu o senhor de todos os mundos
o deus de poderes supremos
que num dia de inspiração
criou o universo apenas para viver
este momento de delírio
quando tu te despes para mim
13.11.2025
(Iluatração: August Riedel)
26 de nov. de 2025
cançoneta de verão
são onze e meia da noite
e não quero dormir tão cedo
o gato na minha cama
dorme o sono de todos os gatos
receio a insônia que pode vir
depois de um dia de calor intenso
não sei o que quero
não sei o que penso
talvez o verão mais quente que o normal
traga tempestades inconsequentes
no meu quarto diminuto
apenas a música que me chega
pelas ondas hertzianas
meu pensamento voa
busca sombras de vento
ouço apenas a canção insana
de tristes lamentos
que parecem latidos
da garganta de um cão
prevejo sonhos que viram pesadelos
e ouço melodias que arrepiam os pelos
dos meus braços sem abraços
já tão cansados de sonhos baços
que não levam a lugar nenhum
ronrona o gato na minha cama
bate a insônia no meu peito
do fundo da noite a canção
que devia vir de algum ponto
de uma aurora ainda estrelada
são notas despejadas
pelas pedras de uma estrada
por onde caminham peregrinos
que se misturam aos assassinos
são todos seres inúteis
soltam fogos fúteis
cantam canções inconsúteis
nesse momento eu quero
que todos sintam
o que sempre senti
no meu grito para o infinito
- quanta falta faz a Rita Lee
2.2.2025
(Ilustração: Paulo Terra, Pedro Terra e Eraldo Mourana
- mural na Vila Mariana, São Paulo, SP)
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poema - cançoneta de verão
23 de nov. de 2025
canções ou poemas
não sei se o que componho são canções
não sei se o que escrevo são poemas
canções ou poemas – pouco importa
não canto a vida como a vida devia ser cantada
[não sou cantor de passos perdidos]
não poetizo o estranhamento de poetar
[não sou poeta de rios perdidos]
canto ou revelo em meus versos primitivos
o desencanto de um mundo que se esboroa
como se esboroaram todos os mundos
de todos os poetas que me antecederam
[aliás nem sei bem se sou poeta]
quando escrevo essas linhas tortas
quando relembro algumas luas mortas
quando arrebento no meu peito todas as portas
o sangue de meus olhos fica nos meus olhos
os amores de minha vida ficam pelos caminhos
[pelos caminhos tortos por onde andei]
meus desgostos são meus e apenas meus
e a ninguém importa que eu os guarde
ou que eu os compartilhe com estrelas distantes
se o passado arreganha os dentes para mim
para ele também arreganho meus dentes
e tento fugir dos espinhos que estão rentes
aos caminhos por onde tropeço meus passos
tenho caído em tantos laços
tenho-me em enrocado em tantas raízes aéreas
tenho quebrado tantos sonhos em pedras polidas
tenho-me derriçado por tantas pirambeiras
que os ossos que me doem nesse desleixo de caminhar
só me doem quando paro e descanso
e quando paro e descanso – escrevo
escrevo o que me vem à memória esgarçada
talvez canções
talvez poemas
talvez apenas lamentos aos ventos
diatribes inúteis que amenizam meu caminhar
para um fim que não desejo – é claro –
inexorável – inexoravelmente
6.9.2025
(Ilustração: Valquíria Cavalcante)
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20 de nov. de 2025
abismos insondáveis
enchi de vazios os espaços vazios de minha solidão
passeei pelos interstícios de sentimentos implausíveis
naveguei pelas profundezas de mágoas e desesperos
para chegar a um porto inundado por águas podres e peixes mortos
meu cérebro cansado das sinapses desconjuntadas
por torpezas que não cometi
por pecados com que sonhei
por escapes e descaminhos desesperados
quase entrou em curto-circuito
e os anseios de dias felizes afundaram de vez
nos vazios de meus abismos insondáveis
22.9.2025
(Ilustração: escultura de Albert György)
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