13 de out. de 2024

para meu irmão

 




meu irmão cosia panos

para homens tronchos

que andavam nus

na cidade fálica de três pontas

e na cidade vagínica de varginha

- isso lá nos idos de minas das minas gerais



meu irmão era espírita

de carteirinha e de centro de recebimento

dos espíritos perdidos nas duas cidades

citadas acima

meu irmão sofreu um avc e nenhum espírito

[nos espíritos ele tinha fé de que curavam

mazelas do corpo e do espírito – por mais estranho

que fosse toda essa crença – pelo menos para mim]

nenhum espírito – de gente ou de porco – curou

a manquitolagem da perna com que ele ficou



mas meu irmão – que cosia ternos e era espírita –

era um bom sujeito – fazia caridade e sempre que podia

[- ele sempre podia -] distribuía uma palavra de consolo

a quem quer que ao centro espírita acorria

atrás de alento para as mazelas da vida



eu no entanto não coso panos

coso palavras – e mal as alinhavo

pensando fazer poesia

nem sou crente de espíritos

nem sou crente de deuses

cirzo e recirzo os meus versos

nos panos brancos de telas e entretelas

alguns versos são ternos

[não os ternos de meu irmão]

e pretendendo sejam eternos

tornam-se apenas espíritos de porco

a cutucar algum leitor distraído

que ande nu pelas ruas

não das cidades vagínicas e fálicas de minas

mas da cidade de nome de santo

que se santifica nas águas de um rio podre

- o jordão das mágoas das entranhas estranhas

de poetas que sonham sobolos rios babilônicos

por favelas nunca dantes e nunca jamais

irrigadas de bem quereres

perdidas em seus manguezais

- e eu nem sei se sou mesmo esse poeta

que penso ser

e invejo os ternos todos cosidos por meu irmão

que caminha hoje por entre seus amados espíritos

e não vem nunca me dar uma palavra de consolo

ou uma mãozinha quando tento

pregar um maldito botão numa camisa





23.10.2023

(Ilustração: meu irmão Samuel e sua filha Fátima 
com minha mãe e uma de minhas filhas; fot de família)

10 de out. de 2024

para marielle

 



pele negra

do negror de áfricas e bahias

das ruas e favelas de todos os brasis

o futuro nos olhos negros

a saberes de política

a saberes de políticos

mulher de mulher entendida

inimiga pública

número um

de todos os machos inconformados

de todos os políticos malcriados



matá-la é preciso



e as balas que explodiram em seu corpo

desenharam flores vermelhas

sem precisar abrir-lhes a porta do automóvel

e espalharam essas flores pelo mundo

que ela conquistaria

que ela construiria

com seu olhar de futuro

com seu olhar de mulher negra

mulher que da vida já quase tudo sabia

m

ma

mar

mari

marie

mariel

mariell

marielle

o teu nome está nas ruas

em todas as ruas

por onde passeie o desejo de paz

o teu nome está nos olhos

de todos os negros

de todos os brancos

de todos os que colorem o mundo

com a cor de suas peles

- despeço-me de ti

marielle

como tenho me despedido

de muitos futuros



11.3.2019

7 de out. de 2024

para alaíde costa




quero ouvir alaíde costa

quero abraçar alaíde costa

quero dançar – de novo –

com alaíde costa



[sim – uma noite dancei com alaíde costa

conversamos um pouco

uma situação inusitada: final de uma peça de teatro

em que lá estava a cantora – que não cantou –

e todos no palco para dançar e conversar com os atores

e lá estava eu dançando e conversando com alaíde costa

não sabia bem o que dizer

mas devo ter dito alguma besteira – era jovem –

e rimos os dois – não me lembro bem –

só lembro que queria ouvir alaíde costa]



eu sempre ouvi a voz maviosa de alaíde costa

a voz suave de pássaro canoro [nem me envergonho

da metáfora idiota] de alaíde costa

a preta que cantou bossa nova

– e a bossa nova branca dos mocinhos de ipanema

não a acolheu porque ela era preta e suburbana



hoje eu acho – acho nada – tenho certeza –

[quando ela está com 89 anos]

de que alaíde costa é a billie holliday brasileira

assim como a lady day é a alaíde costa lá dos gringos



eu não quero morrer ouvindo alaíde costa

– eu quero é viver até os 89 anos – ou muitos mais –

ouvindo sempre ouvindo alaíde costa





27.3.2024

(Ilustração: Alaíde Costa em 1970, durante 
o Festival Universitário de Música Popular Brasileira; 
foto: Arquivo Público do Estado de São Paulo)


4 de out. de 2024

idiossincrasias

 




deixem-me a mim

com minhas idiossincrasias



deixem-me a mim

com minhas pequenas manias



pois só vivendo assim

cheio de algumas idiotias

é que consigo ter tempo

para as minhas poesias

antes que venha o vento

que desafia os dias

e traga o total desalento



minha insistente e renitente reclusão

não é nunca solidão

é apenas uma rima pobre

de alguém que com ela não sofre



se até hoje comigo não me desavim

não quero com ninguém encrencar

peço a todos paciência

ao meu agora mais lento desenrolar



se meu cérebro já não guarda tanta ciência

deixem-me a mim

o ato de meus versos declamar

pois só tenho agora a minha voz

para desatar todos os nós

da pouca vida que me resta



se vocês acham que não presta

a triste poesia que em meus versos destilo

saibam que com eles é que eu resisto

e reafirmo sempre - mesmo sem estilo -

que viver e sobreviver para mim é isto:



a pluma de um verso livre no final de um poema





30.9.2024

(Ilustração: Tristan Corbière - auto caricatura)


Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, nestes endereços:

- you tube:


- podast:

1 de out. de 2024

Para Adélia Prado

 





Não sei se me leminsko

Ou se me drummondeio.

Talvez apenas me embandeire,

Para soltar um bem mineiro brado:

Uai, gente, ela é... Adélia Prado!





27.6.2024

(Ilustração: Adélia Prado; foto da internet, sem indicação de autoria)

28 de set. de 2024

Palimpsesto de esperança

 



A droga que injeto em minhas veias todos os dias

É a vida.

A droga que cheiro em carreiras loucas por ruas tortas

É a vida.

A droga que queimo no meu cachimbo da paz a cada hora

É a vida.

A droga que bebo de bar em bar para afastar o tédio

É a vida.



Masculiniza-me a droga da vida para os saltos e sobressaltos do mundo.

Feminiliza-me a droga da vida para os desentorpecimentos de minha mente.

Movido que sou pela droga da vida não queimo o pavio da vela pelos dois lados.



Então eu vos pergunto – oh meus irmãos de estrada – por onde caminhais?

Que estrelas do espaço sideral guia vossas vontades de sangue?

Por que vos matais a vós mesmos a cada respingo de chuva ácida?

Por que vos matais a vós mesmos nos campos de batalha?

Por que vos matais a vós mesmos em cada beco sujo por motivo fútil?

Quais são as vossas encruzilhadas e os vossos descuidados dissídios?



Não coloquemos coroa de flores no túmulo do soldado desconhecido.

Não ergamos estátuas a generais nem a pseudo-heróis de sujas batalhas.

Não cultivemos a mão armada que se ergue por fúria ou preconceito.

Abracemos a volta dos desertores e espalhemos flores atrás de seus passos.

Apenas a poderosa droga da vida corra como sangue por nossas veias.

A vida. Ah, a vida!

Celebremo-la.

Cantemo-la.

Dancemo-la.

Que se espalhem pelos caminhos os nossos risos - não as nossas lágrimas.

Que depois de cada curva não estejam a nos espreitar os espectros dos assassinos.

Que haja depois de cada pedra que machuca nossos pés um tapete de folhas verdes e botões de flores e sementes das árvores que nos darão os frutos do mais que ansiado respeito à vida.



Assim penso eu – o ingênuo poeta desses tempos de tormentos e espantos.

Assim penso eu – ó meus quase irmãos de compartilhadas crenças – como um desabafo de esperança que escreva uma nova história no palimpsesto de cada pele que cobre nossos corpos.



15.3.2024

(Ilustração: Oskar Kokoschka:Dolomite Landscape)



25 de set. de 2024

paisagens da minha mente

 




desoladas paisagens da minha mente

por onde flutuam como nuvens de fumaça

meus fatigados anseios e eu sou o demente

que ainda desenha um futuro e traça

a linha do horizonte como limite

dos passos trôpegos a pisar caminhos de areia



no silêncio dessas paisagens o canto triste

de um pássaro que não mais semeia

a árvore do fruto mais cobiçado

a árvore que daria ao olhar que anseia

um pouco mais de amplitude

um pouco mais de juventude



22.12.2022

(Ilustrção: Dorr Bothwell - Máquina da memória, 1947)

22 de set. de 2024

os miseráveis

 




o nojo que se sente

pelas ruas de são paulo

esse fedor de urina e merda

não vem esse fedor de urina e merda

das bundas do povo da rua

são nojeiras que descem

das mansões de luxo da elite

- rios de urina e merda –

- rios ricos de ouro e prata –



a merda que sai da bunda dos miseráveis

é merda gestada nas bocarras ridentes

de bilionários insensíveis – que não pagam impostos

de governantes comprados – que só pensam nos ricos

dos políticos corruptos – que só fazem obras superfaturadas



o cheiro podre da urina dos miseráveis

nasce nas garrafas de vinhos romanée-conti grand cru

bebidos sobre tapetes persas de apartamentos de 600 metros quadrados

nos chamados bairros nobres da cidade que naufraga

que naufraga na urina e na merda mais rica do mundo

mijadas e cagadas em latrinas banhadas no ouro dos rios amazônicos



não culpe portanto – meus amigos e amigas - os miseráveis

pela imundície que sangra seus narizes e arrepia sua pele



o que sangra o pobre é a faca afiada

do desprezo

o que sangra o pobre é a faca dourada

da insensibilidade



a mesma faca afiada que corta o pescoço das aves que engordam o foie gras

a mesma faca dourada que passa no croissant fartas porções de caviar



eles – os poderosos – comem comidas poderosas

eles – os poderosos – bebem bebidas poderosas

e os miseráveis todos das ruas da cidade

cagam e mijam essas comidas e bebidas poderosas

que nunca cheiraram e nunca provaram



resta a eles – aos miseráveis das ruas da cidade –

a folha de alface murcha da lixeira do restaurante de luxo

a folha de alface murcha sonhada como endívias em cremes de ouro

resta a eles – aos miseráveis das ruas da cidade –

o osso do peru de natal da classe média

o osso do peru da classe média roído como carne do boi wagyu

resta a eles – aos miseráveis das ruas da cidade –

o resto de coca-cola azeda no fundo da garrafa jogada no meio-fio

o resto de coca-cola azeda bebida como uísque 12 anos



o caviar - o vinho – a alface murcha – o osso roído – a coca-cola

não importa quem bebe

não importa quem come

se tudo vira merda

a merda eterna que pelas paredes de mármore de carrara

das mansões dos poderosos



portanto – meus amigos e minhas amigas –

relevem o cheiro de urina e merda

das ruas da cidade

que o cheiro podre não vem da bunda dos miseráveis

o cheiro podre das ruas da cidade – de todas as cidades –

vem da bocarra infame dos engolidores de dólares

que só engordam nossos fígados

para comê-los como canibais

nos banquetes e orgias das bolsas de valores



são eles a urina que mijam os miseráveis pelas ruas

são eles a bosta que cagam os miseráveis pelas ruas



3.1.2024

(Ilustração: Gustave Doré - Dudley Street Seven Dials, 1872)

19 de set. de 2024

os corvos

 




será sempre mais belo

o poema que não escrevi



será sempre mais doce

a fruta que não comi



o passo marcado no pó do caminho

não sabe o destino que escolhi



incertezas

apenas incertezas desfolham

cada gesto que o tempo encolheu



penso ser o navio encalhado

o calhau na hélice do futuro



se a rosa que perfuma

cai ao vento da fortuna

permaneço a marca no fundo do rio



imanente é o tempo

– sempre ele –

que tenho para viver



deixo na rosa o sonho

colho do espinho a esperança



– que seja eu o seixo na estrada

– que seja eu o vale que renasce

depois da tempestade



ossos pelo caminho

são o que restou

– não os cobri de lágrimas

e não os quero sob a terra

– testemunhem apenas

– testemunhem –

os poemas que não escrevi

os frutos que não colhi

os destinos que não escolhi

e que não os biquem

os corvos de sempre



10.1.2024

(Ilustração: Andrea Kowch, 1986)











16 de set. de 2024

o tempo, sempre ele

 



 enredou-me o tempo em suas malhas

(não que seja isso algo excepcional)

– o tempo a todos envolve em suas tralhas

e elas são o que são – nem bem nem mal –

 

passamos a envelhecer como tudo

o que existe no mundo e isso é natural

 

mesmo que não pareça – até as pedras

envelhecem no rolar inexorável do tempo

 

na natureza tudo se transforma e medra

em outras formas – já disse algum sábio

 

somos todos escravos do momento

que – se nunca conseguimos capturar –

do nascimento ao ocaso a vida transcorre

e tudo – tudo que possamos imaginar –

muda / desgasta-se / torna-se pó / morre

 

 

2.12.2022

(Ilustração: figura da internet, sem indicação de autoria)

 

13 de set. de 2024

o poeta que habita em mim

 




o poeta que habita em mim

tem arroubos de genialidade que eu – um pobre ser humano –

teria – por ser tímido – pruridos de confessar

mas tem também zurros horrendos de burros velhos

que eu – um tantinho orgulhoso de minhas leituras –

não ousaria jamais emitir



o poeta que habita em mim

escreve poemas de me que orgulho quando os leio

mas também produz bobagens tais

que só não os rasgo e jogo fora porque ele não deixa

e ainda se ri da minha cara com o riso louco dos escarnecedores



o poeta que habita em mim

escreve às vezes lições de vida que transcendem meu entendimento

mas também destroça meus sentidos

com lacrimosas estâncias de românticos imberbes



o poeta que habita em mim

canta hosanas a deuses e sábios com o frescor de liras romanas

mas também esquece muitas vezes o bom-mocismo

e chafurda em carnalidades de bordéis de beira de estrada



o poeta que habita em mim

parece haver vivido vidas tão antigas quanto a babilônia

ter singrado mares em navios corsários

ter mergulhado em pântanos atrás de tesouros inexistentes

ter rezado missas em picos nevados

ter atravessado desertos em lombos de dromedários

e ter feito guerras improváveis em reinos impossíveis



o poeta que habita em mim

derrama azeite quente nas minhas feridas

coloca icebergs que afundam navios dentro de meu peito

corrige meus estertores de cada dia

alucina com meus sonhos e gargalha com meus pesadelos



o poeta que habita em mim

terça espadas com meus sentimentos todos

e como um espadachim de luz e trevas

conduz meus passos lentos e meus versos tortos

para o topo de uma vida que eu gostaria de ter vivido



18.11.2023

(Ilustração: Fernando Santos: Bocage e as Ninfas, 1929

10 de set. de 2024

o oco do meu peito

 





palindrômica palavra de três letras apenas

falo do oco que preenche o meu peito

nele cabem da minha vida todas as penas

e ainda sobram as dores que rejeito

que escorrem como lava de vulcão

e queimam cada fibra do meu coração





24.5.2024

(Ilustração: Gustav Klimt - tragédia, 1897





7 de set. de 2024

o nojo

 



no prato

um rato

já morto

na boca

a louca

morbose

vomito

a dose

do rato

no prato

desejo

o beijo

sofrido

o espanto

do santo

no grito

eu frito

a mágoa

deságuam

nos olhos

dos alhos

dos tempos

dos ventos

das rimas

das primas

as danças

as tranças

no prato

o garfo

escárnio

chorar

e amar

no mar

à luz

ferida

na boca

do rato

o pus

eu bebo

e cedo

tropeço

não caio

despeço

em maio

à lua

tão nua

o verso

diverso

de tudo

do luto

desejo

o beijo

maldito

retido

fedido

vontade

maldade

a morte

senhora

ao norte

agora

de novo

apenas

as penas

o rato

no prato





2.4.2023

(Ilustração: Eric Lacombe - dark abstract portraits) 





4 de set. de 2024

o gato

 




adotou-me um gato

chamado torquato

de direito meu dono

faz de mim gato-sapato

perturba meu sono

come no meu prato

e nunca descansa

à noite pula a janela

para sua folgança

foge quando quer

e a pelagem amarela

volta de uma cor qualquer

de tanta sujeira

às vezes dorme fora

em alguma pirambeira

regressa à luz da aurora

miando como um louco

para eu lhe abrir a porta

esse gato não come pouco

porque a ele não lhe importa

ficar gordo já que passa

o dia inteiro pelos cantos

a dormir e ronronar

e à noite ir para a praça

e entre outros gatos tantos

uma bela gata encontrar

com dengos e miados

a noite inteira namorar

só de manhã regressar



essa é a vida do gato

chamado torquato

que de mim faz gato-sapato

mas não fico incomodado

porque esse gato tão safado

é um gato muito amado





29.11.2023

(Ilustração: Carolyn Paterson)



 

 

 

 

1 de set. de 2024

o deus de baruch espinosa

 

 


despetalei até a última pétala a rosa vermelha do meu ódio

arranquei e mastiguei com os dentes famintos de cão de rua

daquela flor amarga e triste a corola nua

para sentir-me enfim dono de novo de meus sentimentos



ainda que restasse na boca o gosto que não passará jamais

de que nada posso fazer contra todas as injustiças do mundo

mesmo que meus latidos roucos contra as armas e as guerras

fossem ouvidos não seriam em tempo algum levados em conta

pois a fúria assassina que mora na mente humana

desde tempos imemoriais

cria a cada momento em cada canto do mundo a vontade insana

de destruir e de matar



os deuses que a humanidade criou sempre foram cruéis e assassinos

mas quando todos eles se uniram numa só vontade divina

o rio lates se encheu de cérberos com potentes caninos

para levar a morte e a destruição a toda e qualquer esquina

e nunca mais o ser que se diz humano conseguiu se livrar

dessa sua louca vontade de destruir e matar



quando despetalo em mim a rosa vermelha do meu ódio

sinto-me menos humano e nem por isso mais divino

ao contrário mais me aproximo das alturas de um pódio

onde os predadores afiam suas garras nos troncos

para se alimentar de sangue seu mais puro desatino

e saltam para o buraco negro onde guardam seus roncos

as bestas-feras de duas pernas que povoam toda a terra

as bestas-feras que exaltam as armas e amam a guerra





30.3.2023

(Ilustração: Johannes Hendrikus Moesman - self-portrait)







29 de ago. de 2024

novas memórias

 




cruzei contigo o rubicão das memórias

– meu inefável amigo de asas de metal –

juntos caminhamos pelos campos de nuvens

juntos refizemos riachos de águas arrepiantes



somos – eu e você – os pés que buscavam alegrias

somos – eu e você – os sonhos que povoaram

nas noites frias de um inverno que não acabava

as angústias de tempos e desejos incontidos



hoje o rubicão de nossas travessias aladas

está recolhido ao centro da terra seca

como secas estão minhas memórias de outrora

quando voávamos acima das montanhas

e construíamos nossas vidas nas asas

de metal e sonho do seu paulistinha



29.1.2024

(Ilustração: Vitório Pereira Resende, 
a quem são dedicadas essas novas e sempre memórias; 
foto sem data)

26 de ago. de 2024

nostalgia

 





releio meus poemas antigos

pejados muitos deles de erotismo

encontro em seus versos abrigos

para meu atual pessimismo



penso em como era feliz e sabia que o era

ainda que percalços houvera

mas tinha no seu corpo o porto seguro

a abrigar meu passado e meu futuro



vazio hoje me encontro – vazio de mim

vazio de ti e sem qualquer esperança

de despejar algum dia esse vazio enfim

numa taça de desejo e de bonança



abandonado aos humores de minha má sorte

e pelos humores que não mais pulsam dentro de mim

esse desalento me faz pensar na morte

ainda que minha vida esteja longe do fim



sou – amada de tantos prazeres agora impossíveis –

o náufrago em mim mesmo no deserto da falta de desejo

se meus enleios por teu corpo pareciam incoercíveis

mortos estão hoje sem esperança de qualquer lampejo





27.6.2023

(Ilustração: Maria Bashkirtseva - autumn)

23 de ago. de 2024

nós humanos

 




às vezes me pego pensando: o que sou?

quem eu sou?

indígena, preto, pardo, branco, amarelo, incolor?

olho-me no espelho: sou bonito ou sou feio?

tenho cabeça, tronco e membros – como todo ser humano

seja homem, mulher ou qualquer sexo,

seja preto, branco, amarelo, pardo, incolor, colorido.

penso, sonho, sorrio, choro, amo, odeio,

sou solidário às vezes

indiferente outras vezes

bonzinho ou maldoso, olho torto para umas pessoas,

olho com amor para outras e até mesmo com tesão

beijo, abraço, faço amor, como, bebo, tomo banho,

tenho pele, ossos, pelos, cabelos,

fico doente de vez em quando,

falo besteiras e também verdades

e só tenho uma certeza nesta vida: vou morrer

- infelizmente para mim, claro –

assim como todos os demais seres vivos que habitam

esse nobre e belo e instável e terrífico e tantas outras coisas mais

planeta

e nele vivemos todos e nele sonhamos todos e nele morremos todos

então quando penso no que eu sou ou quem eu sou

sei apenas que sou humano

e não sei por que – sendo todos humanos – nós que

pensamos, sonhamos, sorrimos e temos na cabeça um cérebro

e somos diferentes de todos os demais seres vivos deste planeta

onde há lugar para todos viverem

onde há lugar para todos sobreviverem

onde há lugar para todos conviverem

eu não sei e nunca saberei por que

precisamos matar uns aos outros

em nome de riscos no mapa [as fronteiras]

em nome de deus ou de deuses que nunca vimos

em nome de ideias e ideologias estúpidas e reducionistas

em nome de coisas tão estúpidas

quanto pretensas diferenças entre nós



nós – os seres humanos – que criamos e inventamos tantas coisas

tantas – que não cabem num poema

que não cabem num livro

que não cabem numa biblioteca

que não cabem em lugar algum

mas cabem em nosso cérebro

esse cérebro que pensa e sonha e cria

nós – os seres humanos – que temos esse cérebro

que é a máquina mais perfeita da natureza

nós – os seres humanos – ainda somos tão bárbaros

que ainda não criamos nem inventamos uma verdadeira civilização





2.11.2023

(Ilustração: Marc Chagall - le paradis)

20 de ago. de 2024

nona sinfonia





Beethoven detona na noite o meu tédio

o vinho barato desce como néctar

o sonho flutua de novo no meu cérebro

o sangue que corre em mim fica mais puro

aromas de futuro emergem de meu peito



Beethoven detona na noite o desalento

a vida ganha impulsos de novidade

ninfas de tempos da inocência emergem

como gotas de bálsamo nos olhos secos

e o canto perdido encontra o pássaro

e o pássaro voa nas asas da música



Beethoven explode em mim novos desejos

no canto final da nona sinfonia





28.4.2023


(Ilustração: Kristina Milakovic, Beethoven)

17 de ago. de 2024

mendicidade

 



houve um tempo em que eu achava

que a felicidade fosse

a sobremesa de arroz-doce

com bastante canela em pó polvilhada

feita por minha mãe no fogão a lenha

e eu andava pelos matos e pelas ruas tortas

sempre descalço a me enfiar em qualquer brenha

atrás de passarinhos e frutas nas hortas

às vezes proibidas e muitas vezes inacessíveis

e isso era o que me fazia feliz

sem pensar que eram inatingíveis

os sonhos que sonhava acordado



a tal felicidade estava ali no colchão de palha

estava ali no jogo de futebol bem pegado

na pipa que mais alto voava e na malha

do tempo que se perdia esperando o vento

e foi o tempo perdido pensando na felicidade

que me deu a certeza de que tudo o que tento

em minha busca insana é na verdade

o encontro de mim comigo mesmo

no final de um poema escrito a esmo

onde não há nada além do que minha mendicidade



14.12.2022



(Ilustração: Edward Burne Jones - King Cophetua and the Beggar Maid)


VOCÊ PODE OUVIR ESTE POEMA, NA VOZ DO AUTOR, ISAIAS EDSON SIDNEY, NESTES ENDEREÇOS:

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