8 de mai. de 2025

sinete

 


um pensamento que veio e se foi

é pluma ao vento – metáfora idiota –

que alimenta o verso

que voa ao vento

leve como o lento

pensamento

na busca da poesia escondida



louca a vida assim decidida

ao balanço da rede

na noite de muita sede

quando no ponto fixo do desastre

das chuvas de verão

o clima esquenta

e o cérebro se desorienta



o pensamento pula de categoria

para o espaço que não existe

e tudo quanto persiste

ensandece e sua

ao calor da pele nua



vento que não veio

é vento que não virá

sobe o desatino de viver

baixa o sonho de sofrer



balança o galho da roseira

não solta pétalas

a flor que já morreu



protege o ninho

o eterno passarinho

que reside no meu peito

por ele voo à toa e sem jeito

de achar o rumo certo

mesmo longe de mim

mesmo perto do meu fim



sou a folha ao vento

[outra metáfora meio besta

que meu estro detesta]

sofro apenas

todas as penas

de quem odeia as paredes

que separam os casais



sofro apenas

todas as penas

de achar que são inúteis

camas que não gemem mais

ao peso dos casais



no despejo das dores

de todos os amantes

não seja o peso do tempo

nas asas loucas do vento

o motivo de sofrimento

de cada jabuti na floresta

que cada enlace vire festa

[mesmo que abraço de jabuti]

e seja o tempo que já vivi

breve lembrança que marca a testa

leve ruga de preocupação



quando o mendigo chuta o cão

que o protege da faca do ladrão

o passo que cruza o paço

marca o caminho do laço

que enforca o assassino



sabemos todos que o sino

que repica na catedral

cada dia todo o ano

para festejar o enforcamento

alerta para o eterno sinal

que tem o coração humano

desde o seu nascimento

- a marca que o impele

a amanhar sempre o mal




2.2.2025

(Ilustração: escultura de Hans Bellmer  - The doll, c.1939)

5 de mai. de 2025

reversão






houve um tempo em que se odiava o frio

e sonhava-se com as tardes quentes de verão



hoje o verão que se nos afogueia também nos mata

e viramos moscas varejeiras em túmulos podres

nas belas tardes que de belas só têm o espectro solar



o temporal que se segue ao forno ligado

traz destruição e morte

e não apaga o sentimento de que o dedo do capeta

está espetado em nossa carne



diz-se que são tempos de extremos

e não há nada que se possa fazer



dizem que o ser humano

queimou a vela do mundo

pelos dois lados

e onde havia calor o calor exacerbou todas as possiblidades

e onde havia frio o frio enregelou todas as consciências



esburacamos terras e mares em busca do que nos move e aquece

e agora não temos como nos mover e vamos ficar tão aquecidos

que não haverá máquina de gelo que nos mantenha vivos



transformamos ouro e a prata e os minérios todos

em bilhões de objetos que entulham os mares

matam os peixes e poluem as águas que bebemos

transformamos em pó as florestas que nos davam respiro

e agora o respiro que temos é o da morte lenta pelos extravasamentos do planeta

que se vinga de nós e tenta se livrar de nós e tenta não morrer em nossas mãos

e por isso nos mata

lenta e sossegadamente o planeta nos mata

para renascer um dia talvez ainda mais belo e mais poderoso que hoje

sem esta raça estúpida que o destrói e se destrói – o ser humano



ah

as tardes quentes de verão

ah

as noites frias de inverno



praias e rios e muitas águas

chocolate quente e histórias antigas



tudo isso será passado

tudo isso se consumiu no desenfreado consumismo

a que nos levou a estupidez do capitalismo



18.2.2025

(Ilustração: François Boucher: fishing in China)

2 de mai. de 2025

quando se manda um conde tomar no cu

 





Tua dignidade, onde está, meu senhor, onde?

No cu do conde,

onde teu avô se esconde?.



Conde, condessa,

barão, baronesa,

príncipe, princesa,

tudo

título de nobreza

dado por quem?

hem? hem? por quem?

por um deus cagão

vestido de roupão

de seda?

ou por um deus pregado

e coroado

de espinho,

sem pena de passarinho,

num triste madeiro?



senhor conde, senhora condessa,

sois, mesmo, herdeiros

de que sangue mais ameno

que azul

de metileno?

o que tem nas veias o barão?

licor de alcatrão?

o que tem na cabeça

essa nobreza?

chifres de ouro?

e o conde, e o cu do conde?

tem menos pregas o cu do conde?



ah! essa nobreza que se esconde,

se esconde onde?

no porão cheio de ratos

ou dentro de lava-jatos

de gasolina azul?



quando se come um conde,

cru ou assado,

com o dedo cruzado

em talheres de ouro,

pode haver maior desdouro

que não lhe respeitar as ventas?



que conde, que nada,

apenas rapadura maltratada

de heranças imbecis;

carne nobre é carne de boi,

dependurada

em ganchos de ouro no açougue

sem glória,

sem história,

de tempos servis;



teu preço em ouro, senhor conde,

onde se esconde, senhor conde,

no teu cu de conde

ou no teu vil porão de grandes castelos?



tua língua oculta, teu semblante vazio,

senhor conde, não cabem em chinelos

do teu desvario:

me diz, senhor conde, vergonha não há

em comer mortadela e arrotar vatapá?

em vestir esses trapos de sujas bandeiras

como se fossem reles trepadeiras

de unhas-de-gato?

brincando de rato, de chato,

coroas de lata,

falsos festins, luas de nada,

nem ouro nem lata.

nem punhal de prata,

teu anel de pedra-pome, onde

seu velho conde? onde?



na campina, um corcel;

no castelo, o bordel;

aqui, seu conde, aqui, ó,

cagando teu ouro,

teu tesouro,

não estou assim tão só:

há, para cada um só conde,

milhares e milhões de bocas

todas loucas, muito loucas,

para te comer, senhor conde,

e milhares de paus e pedras

para te foder, senhor conde,

e tu me perguntas onde?

ora, senhor conde, se me permites

(sim, tu concordas com tudo,

em teus trajes de veludo)

mando-te já, com espinho de mandacaru,

tomar bem no olho do conde,

bem no olho do teu cu.





15.12.2005

(Ilustração: Agnolo Bronzino - Portrait of Cosimo I de' Medici as Orpheus)





29 de abr. de 2025

quando eu morrer (adendo)

 



quando eu morrer

que espalhem minhas cinzas

ao vento da tarde

ao pé de uma árvore – uma jabuticabeira talvez –

que ao pó voltarei

porque do pó sou e somos todos feitos

– uma das poucas verdades bíblicas –

pois tudo quanto quero é que por mim

ninguém se lamente nem reze

nem maldiga o quer que tenha feito

– esqueçam-me – é tudo quanto peço

esqueçam-me

– a vida é apenas a chama de uma vela

que um dia se extinguiu e nada – nada mais

[fique talvez um ou outro verso – talvez –

porém nem com isso eu me importarei

já que estarei morto e serei pó e chama extinta]



29.11.2024

(Ilustração: Pablo Picasso - nature morte aux oursins, 1946)

26 de abr. de 2025

penumbrismo

 



que não se estranhe o penumbrismo de meus versos

a culpa de visões tenebrosas está no mundo em que vivo

no mundo em que vivemos todos



violência – esse o paradigma do ser humano

violência que se normatiza

violência que se matiza

em cores boreais

desde o beco escuro da maldade de cada um

a fincar no peito do outro o punhal de prata

a cravar no peito do outro a bala de prata

até a ponta do míssil teleguiado que erra a trajetória

e mata e mata e mata

com gélida indiferença

e com toda a oculta crença

de quem de longe o lançou

o presente de adultos e velhos

e o futuro de crianças e jovens



não há sol

não há luz

não há dó

nos olhos atrás dos tronos

nos olhos atrás das cadeiras giratórias

o véu negro da ganância

cobre os tapetes macios

dos escritórios envidraçados



os tronos giram e giram as cadeiras

dos que mandam e dos que executam

e giram as armas que eles acionam

com o simples apertar de uma tecla vermelha



o presidente

o primeiro-ministro

o ditador de plantão

os generais de estrela na testa

todos eles se solidarizam

com o penumbrismo da dor

todos eles olham o mundo

e veem auroras boreais

apenas auroras boreais

coloridas e belas auroras boreais

no brilho das bombas que lhes dão poder



jogam com corpos destroçados

o xadrez da mais valia

e cada morto conta

conta muitos dólares a mais

na sua conta bancária



se há penumbrismo nos meus versos

que se calem os monstros

que se antolhem os generais

que se acorrentem os donos da guerra

que fechem atrás das grades

todos os assassinos

todos os violentadores

todos os torturadores

[e também todos os poluidores]



e então da penumbra de meus versos

hão de brotar arco-íris

e hão de dançar sobre a terra

as verdadeiras auroras boreais



e quando puder enfim contemplar

essas verdadeiras auroras boreais

e quando passada enfim a tormenta

puder contemplar esses arco-íris da paz

eu calarei para sempre

eu calarei para nunca mais

o penumbrismo de meus versos





28.3.2025

(Ilustração: Antoine Caron -1521-1599 -: Les Funérailles de l'Amour)




Ouça esse texto na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, nestes endereços:

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23 de abr. de 2025

pensamentos


meu pensamento – pássaro esfogueado

que bate as asas por universos desconhecidos

e tece no espaço o desejo ansiado

de que encontre um dia os enredos entretecidos

nos meandros de minhas sinapses partidas



- não me importa que não leiam o que escrevo

meus versos são pães enegrecidos

queimados em fornos ultra aquecidos

depois de amassados e acrescidos do levedo

que flui de miasmas de minha mente



importa apenas que os imagine e crie

como biscoitos que se dissolvem na terra

e não que cada um deles inicie

dentro de mim a derradeira guerra



sou um deus decaído no mais profundo

de todos os infernos já imaginados

corro morro abaixo como cão imundo

que não se livra das sarnas do mundo

nem das feridas das estradas

gemendo e ladrando a cada espinho

que rasga minhas carnes insufladas

de ausências de paz e de carinho


vejo nas telas toda a minha vida

mas não encontro dentro de mim mesmo

qualquer expressão comovida

que não jogue comigo um jogo a esmo


tudo quanto penso me deixa cada vez mais perdido

como se tivesse sido sempre este velho fodido



[como se o que sempre fui fosse este velho fodido]




22.12.2024

(Ilustração: Charles Mellin - caritas romana, c.1628)

20 de abr. de 2025

pelos becos

 



passo a passo à noite pelos becos vazios

sou eu a miar à toa como os gatos vadios



faminto e abandonado cão sabujo

sou eu a remexer os sacos do lixo mais sujo



como um caronte sem rumo e desesperado

sou eu a pescar no rio podre o peixe envenenado



como um anjo azul de asas transparentes

sou eu a beijar a boca da puta sem dentes



esse mergulho na noite que há dentro de mim

só depende de que não encontre o fim

no entorno da madrugada na cidade perdida

onde o sol não nasce nem cura a ferida

que abriu dentro de meu peito estas duas partes


- um sonho inútil e a tola esperança de que as artes

que cães e gatos vadios usam para sobreviver

possam fazer minha vontade de vida renascer





17.12.2023

(Ilustração: Max Rovira - Coeur dans la nuit)


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 https://youtu.be/Hc4JKfp1qOQ?si=6ZVQFxbNP9HKQlJL


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https://open.spotify.com/episode/17NbujuNyf30WONFFSkoLG?si=3OKHk_2jT-eOUSHKEX1ppw

17 de abr. de 2025

paradoxo

 





se algum dia

eu desaparecer em Paris

não me procurem

em Paris

− eu nunca estive em Paris



se algum dia eu desaparecer

procurem-me no topo de uma nuvem

no fundo de uma fossa marítima

no foguete a caminho da lua



se algum dia

eu desaparecer em Paris

procurem-me nesses lugares

e também em outros

onde nunca estive

− nem nunca estarei

[ou melhor: esqueçam-me]



10.12.2024

(Ilustração: Odilon Redon - o carro de Apolo, c. 1910)

11 de abr. de 2025

palavra perdida

 



diz o sábio que só sabe

que nada sabe

finge o poeta a dor sentida

e são ambos – filósofo e poeta –

dois fingidores da realidade

em busca do que há de mistério

entre o céu e a terra



todo o mistério que há na vida

numa palavra se encerra

mas essa palavra está perdida

nas cinzas do tempo e dos vulcões

e não há qualquer possibilidade

de que sábio ou poeta a encontrem



morrem ambos em derrisões e veleidade

– solitários e ignaros seres humanos –

como todos os demais seres humanos

que não são sábios nem poetas

não sonham sonhos profanos

nem têm ambições de estetas



só com o saber que nada sabe

só com o fingir da dor que sente

poderá a vida – o mistério total –

ser enfim vivida

pelo sábio e pelo poeta

num planeta onde não haja

nem o bem nem o mal



[será humano

demasiado humano

apenas o saber que nada se sabe

e sentir o verso de emoção sempre fingida]





12.1.2025

(Ilustração: Piet Mondrian - Composition with Red
Yellow and Blue: 1935-1942)