18 de nov. de 2024

quando morre um amigo querido

 





para wagner mourão brasil

(1945-2023)





no fundo do vale profundo soam os passos lentos

do meditabundo caminhante

rasgam-lhe os pés as rochas pontiagudas

sob as águas mansas do rio negro

sobejam espantos em seus olhos fundos

cercados de sombras das altas falésias

rochas lisas e amarelentas

corroídas em suas alturas imensas

pelos bicos de agourentas aves

em seus voos rasantes de rapinagem

seus gritos cortam o ar no antegozo do sangue fresco

do combalido caminheiro em si mesmo enrodilhado

nos sombrios pensamentos de vida e de morte

não há sombra que o acompanhe

queima-lhe a cabeça a brasa do sol a pino

e as águas turvas do rio negro não lhe são refrigério

o sangue dos pés leva-o a correnteza

para um tempo que não virá



solitário

a solidão arranca-lhe do peito os suspiros

que lhe sabem perdas do outrora

acumuladas há muito às perdas do agora

sofre o caminheiro a canícula do abandono

sofre o caminheiro a descrença da chegada

abraça-o apenas a pedra rude

o corpo pesado de fantasmas roça-lhe o espinheiro

caminha

apenas caminha

o rio é sua estrada e corre para o mar

o rio é seu martírio e ele – o enlutado caminheiro –

sabe que seu destino é não lá chegar

mas ele caminha – caminha carregando a solidão

devagar

bem devagar

caminha

no vale profundo

que será de ora em diante seu fiel companheiro





4.7.2023

(Ilustração: El Greco - the burial of the count of Orgaz, 1586-1588)

15 de nov. de 2024

possibilidade






há uma lua negra nas paisagens de minha mente

sigo pelos caminhos pitagóricos das hipotenusas

cobertos de urtigas que me arranham

de pedras rascantes que me ferem



serpenteio entre terremotos na busca de luzes que não brilham

imagino-me estrela vespertina a seguir o chifre da lua negra

na busca de mim mesmo nas trilhas dos meus vales profundos



talvez o vento pare por um instante

talvez o passo não pise a pedra

e o espasmo de espanto morra na garganta

talvez o tempo – sempre ele – traga a brisa

do amanhecer de uma nova tranquilidade





11.3.2023

(Ilustração> Chris Moêt - Under the Black Moon)

12 de nov. de 2024

porque vivo





entre as sinapses de meu cérebro

onde estão todos os meus pensamentos

por onde transitam todos os meus sonhos

construo lembranças que não vivi

esperanças que não mais existem

e momentos que somente a poesia

- essa estranha visitante de meu cérebro –

tece nos meandros de imaginações sofridas

nas tramas e urdiduras de meus desejos



é ali – entre as sinapses de meu cérebro –

que vivo a minha vida na maior parte do tempo

temendo e ardentemente desejando

que essas ligações misteriosas não se rompam jamais

que somente ela – a poesia – é capaz de fazer da minha vida

um constante pulsar de sonhos e emoções incontidas

e é por ela e para ela – a poesia – que vivo e sobrevivo





27.7.2024

(Ilustração: Angela Oooghe - swimming nude)

9 de nov. de 2024

pequena carta para manuel bandeira

 






caro poeta do século vinte

escrevo-te malpassadas linhas

para lembrar-te que não esqueço

teu poema espantado

e dizer-te que os tempos mudaram

meu poeta – para este tempo que te conto assim:



sob a chuva chapinha o bicho os pés na enxurrada

deserta a rua

por detrás dos grossos vidros escuros do apartamento

olhos vermelhos de espanto espiam

o bicho em seu caminho fuçando latas de lixo



de dentro dos salões apagados

dedos angustiados

teclam teclas coloridas

segue o bicho seu trêfego caminhar

[pausa o tempo no tempo de buscar]



estraçalha o silêncio um estampido



luzes se acendem

janelas e portas se abrem

a chuva cessa

buzinam os carros

correm as gentes

chega o camburão

jogam dentro dele o corpo do bicho



suspiram donzelas pelas janelas

[e donzelas nas janelas – meu poeta –

são o escracho deste meu tempo

de bites e bytes]

porque o bicho não era bicho

- espantado poeta do século vinte –

o bicho era apenas

um pobre preto da periferia



termino meus malpassados versos

- caro poeta – dizendo-te que teu tempo

ao meu tempo se mistura

sendo o mesmo tempo em tintas outras

mais negras – poeta – mais negras






12.7.2023

(Ilustração: Judit Reigl - Les Huns - 1964; foto de André Morin)


Ouça esse poema, na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, num destes endereços:

- no pocast:


- no you tube:


O poema de Manuel Bandeira, O BICHO, pode ser lido neste endereço:

6 de nov. de 2024

pedriscos de lua


luneiro sem eira nem beira

rapo o pé e entro em casa

sujo da poeira das estrelas

cansado de sonhos vãos


penso na solidão da lua

e sei que ela – a lua e sua solidão –

vai estar comigo durante a noite

de insônia ou de sonhos loucos


e porque sou luneiro de rua

e porque sou luneiro de cama e mesa

escrevo versos com pedriscos de lua


 

8.11.2023

(Ilustração:  Angelame - Pleine lune)

 

 

  

3 de nov. de 2024

Cantiga de amigo

 




Ah senhores, senhores da internet

Buscai o meu amado

Buscai-o por este vasto mundo

Perdido está o meu amado

Onde estará? Onde?



Ai senhores, senhores dos bites e bytes

Mandai notícias de meu homem

Dizem que hoje ninguém mais some

Neste vasto mundo de redes sociais

Onde estará ele? Onde?



Ai senhores, senhores das redes neurais

Dizei-me vós em qual porto,

em qual porto se esconde o meu amado?

Londres, Roma, Amsterdam?

Estará ele ainda vivo ou já morto?

Ai senhores, dai conta de meu amado

Não deixeis para amanhã

Buscai hoje o meu amado

Que nosso filho completa já seis meses

E ele não cumpriu o que foi tratado.



Ai senhores, senhores de todas as redes

Se o filho é meu é dele também

Precisa ser pela lei reconhecido e registrado

Pois foi esse entre nós o combinado.

Onde, onde está o meu amado?



- Embarcou ontem mesmo da Austrália

Para destino ignorado

Num navio petroleiro pirateado

Perdido está pelo oceano imenso

Não temos mais como rastrear

Seu celular está suspenso

Em todas as redes de telefonia



Ai senhores, senhores de todos os saberes

O que será de nosso filho sem futuro

Não tenho na vida mais prazeres

Que não seja pensar no meu amado

Que maus ventos não o prendam

Para sempre num rumo mal traçado

Não tem mais crédito meu celular

E só lhes posso escrever nessa tela

mais uma única palavra – obrigado!



Ai, flores, ai flores do verde pinho.

Se sabeis novas de meu amado,

Ai, meus deuses, onde ele está?



14.6.2024

(Ilustração: Alyssa Monks)


Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, nos seguintes endereços:

- podcast: 


- you tube:




31 de out. de 2024

peabiru

 




correm meus olhos pela planície

correm meus olhos pelo planalto

morrem minhas pupilas na cordilheira



ouso caminhar o caminho

onde outrora

caminharam muitos outros caminheiros

e o caminheiro de agora

traz na marcha o passo do nunca mais



colho nas pegadas da onça

esse tempo imenso que roça as pedras pontiagudas

[o tempo – bastardo filho do movimento –]

não sacia meu desejo de imanência

pelas trilhas que sobem montanhas

pelas trilhas que almejam o mar



caminha o andino faminto

caminha o tupinambá sem destino

longas são as trilhas do mar

estreitas as trilhas da cordilheira

levam todas – essas trilhas sem destino –

ao só destino de caminhar



se corro os olhos pelas planícies

minhas pupilas miram nevados picos

se corro os olhos pelos planaltos

minhas pupilas sonham com o sal do mar



e o mar que buscam os caminheiros

nem sempre salga a carne que comerciam

e a montanha

a que nem sempre chegam pés descalços

oferece ao caminheiro só o tempo de sonhar



o tempo – filho de prótons e planetas –

que consome as vidas e consome os pés

dos caminheiros de antanho e de agora

não guarda histórias nem guarda marcas

guarda mesmo só o destino de caminhar



23.6.2023

(Ilustração: índios no caminho do Peabiru; 
desenho de autoria não identificada)

28 de out. de 2024

patetice








nomeia o tolo sua vida

como sendo rica e completa

quando tudo em seu redor

parece coisa de pateta



7.6.2024

 (Ilustração: Al Margen - I'm so tired, I can't sleep)


25 de out. de 2024

pássaro da noite

 



doce o canto na noite do pássaro que passou

levando no bico o fruto da juventude

estranhos os sons da noite

violão em concerto

a vida desconsertada também em concerto / conserto?



o som da noite

o som da morte

o som do espanto



talvez um dia mude a sorte

talvez um dia o vento esquente

e o tempo de jabuticabas

seja o tempo de amar



ah! que seja o amor o espanto

das asas que erguem no voo o pássaro da noite

e que o pio da coruja ao longe

desafine para sempre as cordas do violão

assim como desafinadas estão

as cordas do meu velho coração

ferido pelo pássaro da noite



23.9.2023

(Ilustração: Andrea Kowch, 1986, simbolista)

22 de out. de 2024

pássaro arredio


 




dou-me conta de mim

quando do cérebro à mão

nasce um poema



dou-me conta de mim

quando o sonho de sinapses

vira palavras que você lê



e você [que não conheço

e talvez jamais venha a conhecer]

se dá conta de mim

ao ler o que escrevi

no delírio da noite sem fim



e isso se chama comunhão

e isso se chama comunicação

algo que o mistério da vida oculta

como a semente que se espalha na terra

e brota um dia de seu âmago

o forte abacateiro

cujo tronco se abre

para galhos e folhas e frutos

que irão alimentar depois

o pássaro arredio chamado felicidade



e você [que me lê e não me conhecia]

tem a breve ilusão de haver encontrado

entre mim e você

entre você e mim

nessa teia absurda

de palavras obtusas

o sentido todo da vida

o mistério enfim

do enlace impossível

entre dois seres humanos



e só então posso dizer

que finalmente

me dou conta de mim



24.2.2024

(Ilustração: Kurt Schwitters, 1939)

19 de out. de 2024

parece piada

  


por muitos anos ali me deitei

naquela espaçosa e tão bela rede

por dois firmes ganchos presa à parede



um dia a tiraram para lavar

sem me dar conta nela me joguei

me joguei como sempre sem pensar

e só recordo o susto que levei



nas costas os dois grandes calombos

não foram só lições que me ficaram

da vida as rasteiras que me aplicaram

guardo hoje a marca de todos os tombos







22.1.2023

(Ilustração: Jean-Baptiste Debret 
- sábio trabalhando em seu gabinete - 1827)



16 de out. de 2024

para minha mãe



queria hoje ter a fé dos desvalidos

para conversar de novo com minha mãe

mas mesmo sem qualquer metafísica

falo com ela todos os dias da minha vida



o eu menino que convive em mim

chora o choro infantil de cada dia

no colo de minha mãe que me acolhe

sou o frágil broto que não cresceu



olho para o tempo o tempo todo

sabendo que o tempo que tenho

é sempre o tempo que não tive

nem o tempo que nunca terei



quando tive o tempo com minha mãe

talvez não tenha tido toda a consciência

de que fulge o tempo feliz como o raio

que não luz duas vezes na mesma nuvem



não colhi todos os beijos que necessitara

nem me dei conta de que um dia

tudo quanto gostava teria um fim



hoje sou apenas a sombra que sonha

com meu passado como se fosse o futuro

sem a fé dos desvalidos de rever minha mãe



28.8.2024

(Foto de família: minha mãe e meus filhos)

13 de out. de 2024

para meu irmão

 




meu irmão cosia panos

para homens tronchos

que andavam nus

na cidade fálica de três pontas

e na cidade vagínica de varginha

- isso lá nos idos de minas das minas gerais



meu irmão era espírita

de carteirinha e de centro de recebimento

dos espíritos perdidos nas duas cidades

citadas acima

meu irmão sofreu um avc e nenhum espírito

[nos espíritos ele tinha fé de que curavam

mazelas do corpo e do espírito – por mais estranho

que fosse toda essa crença – pelo menos para mim]

nenhum espírito – de gente ou de porco – curou

a manquitolagem da perna com que ele ficou



mas meu irmão – que cosia ternos e era espírita –

era um bom sujeito – fazia caridade e sempre que podia

[- ele sempre podia -] distribuía uma palavra de consolo

a quem quer que ao centro espírita acorria

atrás de alento para as mazelas da vida



eu no entanto não coso panos

coso palavras – e mal as alinhavo

pensando fazer poesia

nem sou crente de espíritos

nem sou crente de deuses

cirzo e recirzo os meus versos

nos panos brancos de telas e entretelas

alguns versos são ternos

[não os ternos de meu irmão]

e pretendendo sejam eternos

tornam-se apenas espíritos de porco

a cutucar algum leitor distraído

que ande nu pelas ruas

não das cidades vagínicas e fálicas de minas

mas da cidade de nome de santo

que se santifica nas águas de um rio podre

- o jordão das mágoas das entranhas estranhas

de poetas que sonham sobolos rios babilônicos

por favelas nunca dantes e nunca jamais

irrigadas de bem quereres

perdidas em seus manguezais

- e eu nem sei se sou mesmo esse poeta

que penso ser

e invejo os ternos todos cosidos por meu irmão

que caminha hoje por entre seus amados espíritos

e não vem nunca me dar uma palavra de consolo

ou uma mãozinha quando tento

pregar um maldito botão numa camisa





23.10.2023

(Ilustração: meu irmão Samuel e sua filha Fátima 
com minha mãe e uma de minhas filhas; fot de família)

10 de out. de 2024

para marielle

 



pele negra

do negror de áfricas e bahias

das ruas e favelas de todos os brasis

o futuro nos olhos negros

a saberes de política

a saberes de políticos

mulher de mulher entendida

inimiga pública

número um

de todos os machos inconformados

de todos os políticos malcriados



matá-la é preciso



e as balas que explodiram em seu corpo

desenharam flores vermelhas

sem precisar abrir-lhes a porta do automóvel

e espalharam essas flores pelo mundo

que ela conquistaria

que ela construiria

com seu olhar de futuro

com seu olhar de mulher negra

mulher que da vida já quase tudo sabia

m

ma

mar

mari

marie

mariel

mariell

marielle

o teu nome está nas ruas

em todas as ruas

por onde passeie o desejo de paz

o teu nome está nos olhos

de todos os negros

de todos os brancos

de todos os que colorem o mundo

com a cor de suas peles

- despeço-me de ti

marielle

como tenho me despedido

de muitos futuros



11.3.2019

7 de out. de 2024

para alaíde costa




quero ouvir alaíde costa

quero abraçar alaíde costa

quero dançar – de novo –

com alaíde costa



[sim – uma noite dancei com alaíde costa

conversamos um pouco

uma situação inusitada: final de uma peça de teatro

em que lá estava a cantora – que não cantou –

e todos no palco para dançar e conversar com os atores

e lá estava eu dançando e conversando com alaíde costa

não sabia bem o que dizer

mas devo ter dito alguma besteira – era jovem –

e rimos os dois – não me lembro bem –

só lembro que queria ouvir alaíde costa]



eu sempre ouvi a voz maviosa de alaíde costa

a voz suave de pássaro canoro [nem me envergonho

da metáfora idiota] de alaíde costa

a preta que cantou bossa nova

– e a bossa nova branca dos mocinhos de ipanema

não a acolheu porque ela era preta e suburbana



hoje eu acho – acho nada – tenho certeza –

[quando ela está com 89 anos]

de que alaíde costa é a billie holliday brasileira

assim como a lady day é a alaíde costa lá dos gringos



eu não quero morrer ouvindo alaíde costa

– eu quero é viver até os 89 anos – ou muitos mais –

ouvindo sempre ouvindo alaíde costa





27.3.2024

(Ilustração: Alaíde Costa em 1970, durante 
o Festival Universitário de Música Popular Brasileira; 
foto: Arquivo Público do Estado de São Paulo)


4 de out. de 2024

idiossincrasias

 




deixem-me a mim

com minhas idiossincrasias



deixem-me a mim

com minhas pequenas manias



pois só vivendo assim

cheio de algumas idiotias

é que consigo ter tempo

para as minhas poesias

antes que venha o vento

que desafia os dias

e traga o total desalento



minha insistente e renitente reclusão

não é nunca solidão

é apenas uma rima pobre

de alguém que com ela não sofre



se até hoje comigo não me desavim

não quero com ninguém encrencar

peço a todos paciência

ao meu agora mais lento desenrolar



se meu cérebro já não guarda tanta ciência

deixem-me a mim

o ato de meus versos declamar

pois só tenho agora a minha voz

para desatar todos os nós

da pouca vida que me resta



se vocês acham que não presta

a triste poesia que em meus versos destilo

saibam que com eles é que eu resisto

e reafirmo sempre - mesmo sem estilo -

que viver e sobreviver para mim é isto:



a pluma de um verso livre no final de um poema





30.9.2024

(Ilustração: Tristan Corbière - auto caricatura)


Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, nestes endereços:

- you tube:


- podast:

1 de out. de 2024

Para Adélia Prado

 





Não sei se me leminsko

Ou se me drummondeio.

Talvez apenas me embandeire,

Para soltar um bem mineiro brado:

Uai, gente, ela é... Adélia Prado!





27.6.2024

(Ilustração: Adélia Prado; foto da internet, sem indicação de autoria)

28 de set. de 2024

Palimpsesto de esperança

 



A droga que injeto em minhas veias todos os dias

É a vida.

A droga que cheiro em carreiras loucas por ruas tortas

É a vida.

A droga que queimo no meu cachimbo da paz a cada hora

É a vida.

A droga que bebo de bar em bar para afastar o tédio

É a vida.



Masculiniza-me a droga da vida para os saltos e sobressaltos do mundo.

Feminiliza-me a droga da vida para os desentorpecimentos de minha mente.

Movido que sou pela droga da vida não queimo o pavio da vela pelos dois lados.



Então eu vos pergunto – oh meus irmãos de estrada – por onde caminhais?

Que estrelas do espaço sideral guia vossas vontades de sangue?

Por que vos matais a vós mesmos a cada respingo de chuva ácida?

Por que vos matais a vós mesmos nos campos de batalha?

Por que vos matais a vós mesmos em cada beco sujo por motivo fútil?

Quais são as vossas encruzilhadas e os vossos descuidados dissídios?



Não coloquemos coroa de flores no túmulo do soldado desconhecido.

Não ergamos estátuas a generais nem a pseudo-heróis de sujas batalhas.

Não cultivemos a mão armada que se ergue por fúria ou preconceito.

Abracemos a volta dos desertores e espalhemos flores atrás de seus passos.

Apenas a poderosa droga da vida corra como sangue por nossas veias.

A vida. Ah, a vida!

Celebremo-la.

Cantemo-la.

Dancemo-la.

Que se espalhem pelos caminhos os nossos risos - não as nossas lágrimas.

Que depois de cada curva não estejam a nos espreitar os espectros dos assassinos.

Que haja depois de cada pedra que machuca nossos pés um tapete de folhas verdes e botões de flores e sementes das árvores que nos darão os frutos do mais que ansiado respeito à vida.



Assim penso eu – o ingênuo poeta desses tempos de tormentos e espantos.

Assim penso eu – ó meus quase irmãos de compartilhadas crenças – como um desabafo de esperança que escreva uma nova história no palimpsesto de cada pele que cobre nossos corpos.



15.3.2024

(Ilustração: Oskar Kokoschka:Dolomite Landscape)



25 de set. de 2024

paisagens da minha mente

 




desoladas paisagens da minha mente

por onde flutuam como nuvens de fumaça

meus fatigados anseios e eu sou o demente

que ainda desenha um futuro e traça

a linha do horizonte como limite

dos passos trôpegos a pisar caminhos de areia



no silêncio dessas paisagens o canto triste

de um pássaro que não mais semeia

a árvore do fruto mais cobiçado

a árvore que daria ao olhar que anseia

um pouco mais de amplitude

um pouco mais de juventude



22.12.2022

(Ilustrção: Dorr Bothwell - Máquina da memória, 1947)

22 de set. de 2024

os miseráveis

 




o nojo que se sente

pelas ruas de são paulo

esse fedor de urina e merda

não vem esse fedor de urina e merda

das bundas do povo da rua

são nojeiras que descem

das mansões de luxo da elite

- rios de urina e merda –

- rios ricos de ouro e prata –



a merda que sai da bunda dos miseráveis

é merda gestada nas bocarras ridentes

de bilionários insensíveis – que não pagam impostos

de governantes comprados – que só pensam nos ricos

dos políticos corruptos – que só fazem obras superfaturadas



o cheiro podre da urina dos miseráveis

nasce nas garrafas de vinhos romanée-conti grand cru

bebidos sobre tapetes persas de apartamentos de 600 metros quadrados

nos chamados bairros nobres da cidade que naufraga

que naufraga na urina e na merda mais rica do mundo

mijadas e cagadas em latrinas banhadas no ouro dos rios amazônicos



não culpe portanto – meus amigos e amigas - os miseráveis

pela imundície que sangra seus narizes e arrepia sua pele



o que sangra o pobre é a faca afiada

do desprezo

o que sangra o pobre é a faca dourada

da insensibilidade



a mesma faca afiada que corta o pescoço das aves que engordam o foie gras

a mesma faca dourada que passa no croissant fartas porções de caviar



eles – os poderosos – comem comidas poderosas

eles – os poderosos – bebem bebidas poderosas

e os miseráveis todos das ruas da cidade

cagam e mijam essas comidas e bebidas poderosas

que nunca cheiraram e nunca provaram



resta a eles – aos miseráveis das ruas da cidade –

a folha de alface murcha da lixeira do restaurante de luxo

a folha de alface murcha sonhada como endívias em cremes de ouro

resta a eles – aos miseráveis das ruas da cidade –

o osso do peru de natal da classe média

o osso do peru da classe média roído como carne do boi wagyu

resta a eles – aos miseráveis das ruas da cidade –

o resto de coca-cola azeda no fundo da garrafa jogada no meio-fio

o resto de coca-cola azeda bebida como uísque 12 anos



o caviar - o vinho – a alface murcha – o osso roído – a coca-cola

não importa quem bebe

não importa quem come

se tudo vira merda

a merda eterna que pelas paredes de mármore de carrara

das mansões dos poderosos



portanto – meus amigos e minhas amigas –

relevem o cheiro de urina e merda

das ruas da cidade

que o cheiro podre não vem da bunda dos miseráveis

o cheiro podre das ruas da cidade – de todas as cidades –

vem da bocarra infame dos engolidores de dólares

que só engordam nossos fígados

para comê-los como canibais

nos banquetes e orgias das bolsas de valores



são eles a urina que mijam os miseráveis pelas ruas

são eles a bosta que cagam os miseráveis pelas ruas



3.1.2024

(Ilustração: Gustave Doré - Dudley Street Seven Dials, 1872)