2 de fev. de 2018

Pequena crônica sobre uma tradução





Gosto de traduzir alguns textos, principalmente poesia, sem compromisso. De forma praticamente bissexta. Quando descubro algum poema francês ou espanhol, não muito longo, que mexe com minha sensibilidade e provoca meus instintos de tradutor. Meu amigo Wagner, no entanto, é que é um craque. Quando preciso de um texto com uma boa tradução, desafio-o. E recebo de volta algumas pérolas, que publico no Trapiche dos Outros. Às vezes, um detalhe, uma palavra, um verso que não se enquadra no ritmo certo provocam longas discussões e debates e tentativas entre mim e Wagner, por mensagens de computador, já que ele mora atualmente no Rio e eu em São Paulo. Meus palpites são sempre muito pontuais, já que é ele o tradutor, e a ele cabe quase sempre o mérito final da empreitada, cuidadoso como é, principalmente com a metrificação. Eu acabo me preocupando mais com a semântica. Nosso último desafio foi o poema abaixo, de Raymond Queneau (França, 1903 - 1976). É um poema divertido, que o aproxima do poema-piada do Oswald de Andrade. É curto e não menos cheio de pequenas armadilhas semânticas e invenções do autor. Cheio de subentendidos. Deu um pouco de trabalho. Apresento a vocês o original, a tradução do Wagner e a minha versão sacana, bem sacana, como uma brincadeira (talvez de mau gosto para com o poeta) a que não resisti:



POÈME POUR LA POSTÉRITÉ, de Raymond Queneau



Ce soir,

Si j’écrivais un poème

pour la postérité?

fichtre

la belle idée

je me sens sûr de moi

j’y vas

et à la postérité

j’y dis merde et remerde

et reremerde

drôlement feintée

la postérité

qui attendait son poème

ah mais




POEMA PARA A POSTERIDADE , tradução de Wagner Mourão Brasil:




Esta noite, 

se eu escrevesse um poema 

para a posteridade? 

Caramba 

que boa ideia

sinto-me seguro de mim mesmo

aqui vou eu 

e à posteridade 

eu digo merda grandemerda 

e grandissimamerda 

bem-humoradamente eu enganei 

a posteridade 

que aguardava por seu poema



e como!



E eis a minha tradução sacana:



POEMA PARA OS CARAS DO FUTURO (minha versão):



Esta noite

e se eu fizesse um poema

para os manos do futuro?



porra

que ideia fudida



eu sou mais eu

e assim digo pros caras

vão à merda

duas vezes à merda

três vezes à merda



tirei o maior sarro

dos bostas do futuro

que esperavam sua rima



e aí?



(Ilustração: Giorgio de Chirico; Le Muse Inquietanti ~ 1916)


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