passa o dia tirando xerox
espalhando folhas mortas
pelas mesas do escritório
almoça hambúguer com coca-cola
depois do almoço trepa na moto
sai pelas ruas levando envelopes
e mais folhas mortas
por outras firmas e outros endereços
a cidade comeu seu cérebro
ouve rap no fone de ouvido
aquelas letras longas e loucas
de negros rappers ricos do harlem
bajula o porteiro do prédio onde mora
para ele receber à noite a pizza calabresa
e deixar entrar (às vezes) a putinha da esquina
(quando sobra algum dinheiro)
paga no bordel a cada quinze dias
(um luxo!)
cinquenta reais por um boquete
porque é só um boquete que cabe no salário
se vira na punheta que é mais barata
quando o desejo aperta na cueca
encontra a turma no baile funk
onde esbanja talento no meio do salão
com piruetas que lhe valem de vez em quando
poder pegar nos peitinhos de uma menina
no portão do cemitério ali perto
o boné torto na cabeça assim de lado
marca a tribo que sai do baile junta
e abre todas as noites as pernas pra polícia
a cara no muro
o joelho tremendo
que as mãos bruscas encontrem restos
da maconha já fumada no salão
no domingo dorme a manhã toda
e só acorda na hora do almoço
pra comer macarrão com frango
na padaria da esquina
e tomar uma cerva que ninguém é de ferro
no apartamento imundo
onde sala e quarto se confundem
o radinho de pilha
tenta transmitir o jogo do corinthians
mas a saudade aperta e dá uma vontade
de voltar pro mato que não saiu de dentro dele
bicho escorraçado no meio da selva
de tijolo e cimento da cidade que o devora
sonha o sonho de todo moleque doido
sabendo que a vida vai e a vida vem
e sua vida continua no mesmo tom
trabalha e sonha e não vive
caçador que não sabe o que caçar
certa vez pegou dengue
e foi parar no pronto-socorro do hospital público
quase entrou para a fila do transplante de rim
e só não morreu porque são jorge não quis
o patrão não lhe pagou os dias parados
e ainda descontou das férias a grana não recebida
reclamou no sindicato e disseram
que não podiam fazer nada
(ele estava com as prestações atrasadas)
caiu da moto várias vezes
várias vezes entregou correspondência errada
só não perdeu o emprego
porque o patrão não iria encontrar outro idiota igual
(pelo menos foi o que secretária do chefe disse para ele)
tinha muito ódio no coração
e sonhava sonhos de vingança
contra o patrão
contra a secretária
contra o sistema médico
contra o mundo
mas um dia um pastor de rua
desses que usam terno preto surrado e bíblia na mão
lhe deu uma bíblia
(leia meu filho, leia, que jesus é a salvação)
desde esse dia frequenta a igreja do tal pastor
paga dízimo do parco salário
acha que está progredindo na vida
conseguiu ser promovido de tirador de cópia de xerox
e entregador de correspondência na firma e na rua
para ajudante de serviços gerais
agora usa até uniforme
para limpar banheiros e varrer o escritório
para juntar o lixo e quando falta a moça do café
é ele quem a substitui todo orgulhoso
o pastor pediu que ele aumentasse o dízimo
e ele está pensando seriamente nisso
porque afinal encontrou paz no coração
não bebe mais
não fuma
está namorando uma moça direita da igreja
não precisa mais tocar punheta
nem pagar pela putinha da esquinha
a única coisa chata é que ela
a moça direita da igreja
diz que na frente só depois de casar
21.4.2016
(Ilustração: Valquíria Cavalcante)
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