23 de jan. de 2018

moleque doido








passa o dia tirando xerox

espalhando folhas mortas

pelas mesas do escritório



almoça hambúguer com coca-cola



depois do almoço trepa na moto

sai pelas ruas levando envelopes

e mais folhas mortas

por outras firmas e outros endereços



a cidade comeu seu cérebro

ouve rap no fone de ouvido

aquelas letras longas e loucas

de negros rappers ricos do harlem



bajula o porteiro do prédio onde mora

para ele receber à noite a pizza calabresa

e deixar entrar (às vezes) a putinha da esquina

(quando sobra algum dinheiro)



paga no bordel a cada quinze dias

(um luxo!)

cinquenta reais por um boquete

porque é só um boquete que cabe no salário

se vira na punheta que é mais barata

quando o desejo aperta na cueca



encontra a turma no baile funk

onde esbanja talento no meio do salão

com piruetas que lhe valem de vez em quando

poder pegar nos peitinhos de uma menina

no portão do cemitério ali perto



o boné torto na cabeça assim de lado

marca a tribo que sai do baile junta

e abre todas as noites as pernas pra polícia

a cara no muro

o joelho tremendo

que as mãos bruscas encontrem restos

da maconha já fumada no salão



no domingo dorme a manhã toda

e só acorda na hora do almoço

pra comer macarrão com frango

na padaria da esquina

e tomar uma cerva que ninguém é de ferro



no apartamento imundo

onde sala e quarto se confundem

o radinho de pilha

tenta transmitir o jogo do corinthians

mas a saudade aperta e dá uma vontade

de voltar pro mato que não saiu de dentro dele

bicho escorraçado no meio da selva

de tijolo e cimento da cidade que o devora



sonha o sonho de todo moleque doido

sabendo que a vida vai e a vida vem

e sua vida continua no mesmo tom

trabalha e sonha e não vive

caçador que não sabe o que caçar



certa vez pegou dengue

e foi parar no pronto-socorro do hospital público

quase entrou para a fila do transplante de rim

e só não morreu porque são jorge não quis



o patrão não lhe pagou os dias parados

e ainda descontou das férias a grana não recebida

reclamou no sindicato e disseram

que não podiam fazer nada

(ele estava com as prestações atrasadas)



caiu da moto várias vezes

várias vezes entregou correspondência errada

só não perdeu o emprego

porque o patrão não iria encontrar outro idiota igual

(pelo menos foi o que secretária do chefe disse para ele)



tinha muito ódio no coração

e sonhava sonhos de vingança

contra o patrão

contra a secretária

contra o sistema médico

contra o mundo

mas um dia um pastor de rua

desses que usam terno preto surrado e bíblia na mão

lhe deu uma bíblia

(leia meu filho, leia, que jesus é a salvação)



desde esse dia frequenta a igreja do tal pastor

paga dízimo do parco salário

acha que está progredindo na vida

conseguiu ser promovido de tirador de cópia de xerox

e entregador de correspondência na firma e na rua

para ajudante de serviços gerais



agora usa até uniforme

para limpar banheiros e varrer o escritório

para juntar o lixo e quando falta a moça do café

é ele quem a substitui todo orgulhoso



o pastor pediu que ele aumentasse o dízimo

e ele está pensando seriamente nisso

porque afinal encontrou paz no coração

não bebe mais

não fuma

está namorando uma moça direita da igreja

não precisa mais tocar punheta

nem pagar pela putinha da esquinha

a única coisa chata é que ela

a moça direita da igreja

diz que na frente só depois de casar


21.4.2016


(Ilustração: Valquíria Cavalcante)










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