(Yves Tanguy)
ninguém ouvirá o teu canto
gestado e grunhido em madrugadas frias
desesperado adeus de sonhos acalentados
grito outonal de uma mente enfim liberta
pronta para o salto da ponte sobre o rio da vida e da morte
encachoeirado rio agora depois de tanto tempo represado
preterido o tempo jogado ao fogo
que nem águas claras o podem apagar
ninguém ouvirá o teu canto
solene como o canto da graúna
sobranceira estátua sobre a montanha
inútil destino de todos os desencantados
rarefeito canto à margem do oceano
no qual o rio se desfaz em sal
desespere-se o cantor inutilmente levado pela correnteza
náufrago sem destino a bater nas pedras e a debater-se na espuma
no sonho o grito enfim da floresta
o desenho frágil e sutil da esperança
três vezes o canto do bem-te-vi
três vezes o coração bate mais forte
atroz o destino do teu canto
ó náufrago inútil a desafiar a morte
sabe-o de cor a população inteira
que não se importa mais com teu desvario
pretérito mais que passado o teu gemido implora por ser ouvido
enquanto mugem nas orquestras o desalento de trompas desafinadas
passaste e não viste o tempo correr
secaste e não viste o sol crestar tuas pétalas
sem asas e sem alento correste inutilmente
pelos campos de espinhos e sarças em fogo
o beijo da aragem a medrar teu fogo
o canto das águas a fugir do teu logro
pensa e canta ainda se tiveres voz
que o teu canto de vida a morte exsuda
nos campos férteis de margaridas e espinhos
o espaço entre cada nota de teu roufenho canto será todavia preenchido
pelos dedos ágeis de tua mais ferrenha e feroz inimiga e terás enfim morrido
sem pejo
sem nojos
sem arrepios
longe
muito longe de todos os teus anseios e ensejos
4.4.2017
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