(O sabiá, no alto e a namorada, no chão)
Ele vinha todas as manhãs e, de tal forma, se acostumara conosco, que nem voava quando nos aproximávamos. Chegava, mesmo, a entrar na sala, pousar no sofá e passear pelo tapete. Comia seu mamão, sempre colocado no mesmo lugar, ao lado de uma vasilha com água, na qual tomava seu banho e, às vezes, ficava por ali por algum tempo. Depois, voava em busca de aventuras que só os sabiás sabem quais são. Era ele – e é ainda, o verbo no passado, aqui, tem apenas o sentido das coisas que mudam e não das coisas que perecem – o nosso sabiá.
Um dia, apareceu acompanhado. Uma sabiá ressabiada, que comia apressada do mamão oferecido e voava assustada a qualquer tentativa de aproximação. Mas também se acostumou e, embora, não se tornasse nossa sabiá, como o namorado, deixou aos poucos de ser assustadiça. Só não admitia intimidades, ou seja, mantinha uma distância de nós, humanos, no seu orgulho de apenas uma amiga do amigo e nada mais. Então, percebemos que um ninho aos poucos crescia no fundo do quintal, num tronco alto da caramboleira, bem próximo da pitangueira. E, com o passar dos dias, ninho pronto, logo a alternância na busca pelo mamão de todas as manhãs: ora um, ora outro é que aparecia na nossa garagem. Sabíamos quem era quem, claro, pela tranquilidade do macho e pelo ar arisco da fêmea.
O inverno chegava ao fim e a primavera se anunciava. E o sabiá, no fundo do quintal, despertava ainda bem de madrugada, para cantar. Nosso neto, de seis anos, num dos finais de semana em que aqui veio passar, acordou às quatro horas da manhã e não mais conseguiu dormir, por causa do canto do sabiá, logo ele que gostava tanto do passarinho, o qual deixava que ele quase o tocasse com os dedos, quando vinha comer o mamão na garagem da nossa casa. Mas também ele se acostumou com o canto madrugador do sabiá, o canto que marcava território e espantava das árvores próximas quaisquer outras aves que ali costumavam aparecer. Era ele o dono do quintal. Sabíamos bem o que isso queria dizer: ovos e choco.
Setembro se foi e veio outubro e o sabiá a cantar no fundo do quintal, desde a madrugada e os passarinhos – que eram sempre muitos e variados – desaparecidos da pitangueira que, nesse ínterim, floresceu e transformou em frutos as flores e coloriu-se aos poucos de pequenos tons abóbora em contraste com o verde da folhagem. A pitangueira é sempre uma festa para sanhaços, bem-te-vis e muitos pássaros, que a frequentam no baile quase esquizofrênico de uma comilança sem fim, quando ela frutifica e os belos frutos amadurecem. Dessa vez, no entanto, nada de passarinhos. Um ou outro – observei – ousava aparecer, de vez em quando, para roubar uma pitanga e voar, arisco, para longe. E o sabiá a cantar forte, marcando o território, respeitado por todos.
Preocupado, pensei: quantos frutos serão desperdiçados e tantos passarinhos por aí, querendo comê-los! Mas, o sabiá, não: ele continuava fazendo suas incursões matinais à nossa garagem, em busca de seu mamão e, notamos, felizes, que tanto ele quanto ela levavam no bico um bom naco da fruta. E então, já nesse quase final de outubro, com os frutos da pitangueira amadurecendo celeremente, observamos que arrefeceu o canto do sabiá e, de dia para o outro, assim, de repente, como uma festa de primavera, os pássaros repovoam a pitangueira, ávidos e famintos sanhaços, bicos-de-lacre, bem-te-vis, todos os convivas do banquete anual a competir entre si pelos melhores frutos.
O que aconteceu? - perguntamo-nos todos, mais uma vez curiosos da vida alada e, principalmente, da vida dos nossos hóspedes.
Logo descobrimos: vimos, de relance, no meio da folhagem, o casal de sabiás, com seus dois filhos já devidamente emplumados. É que eles – os filhotes - não precisam mais de um território tão patrulhado e tão livre de intrusos; é que os “garotos” já podem voar e fugir de possíveis predadores. Então, relaxada a vigilância, a festa na pitangueira está liberada. E a passarada, feliz, agradece, para a alegria de nossos olhos e nossos ouvidos, que agora temos outros cantos de tantos passarinhos que sempre frequentaram a nossa pitangueira.
Só estamos, agora, aguardando que o “nosso” sabiá traga os filhotes para nos serem devidamente apresentados e eles – os filhotes – sejam também apresentados à boquinha matinal e sem estresse de um bom naco de mamão na nossa garagem. O nosso pequeno paraíso, no Jabaquara, São Paulo, tem dessas pequenas alegrias. Graças a algumas árvores frutíferas que desagradam alguns vizinhos, mas agradam aos passarinhos.
24.10.2017
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