1 de jul. de 2025

amores redivivos

 



os amores do passado

não ficam no passado



quando parece que deles não nos lembramos mais

esquecemos – oh! ingênuos – que os enterramos em covas rasas

julgando que fossem – esses amores – defuntos normais

mas eles lá ficaram como adormecidas brasas

brasas que a qualquer sopro vão de novo nos queimar

brasas que vão subir em labaredas a qualquer vento

e tirar de novo do nosso peito todo o ar



não importa quanto tenha passado de tempo

não importa quanto deles nos tenhamos esquecido

– há sempre uma pontinha de não esquecimento

num gesto que nos afronta ou num beijo prometido

e lá se vão pensamentos e imaginação com novas asas

a fazer-nos sofrer de novo aquilo que foi tão sofrido



ah! os amores do passado

não queríamos tê-los lembrado

mas são agulhas no nosso peito enterradas

de novo remexidas e de novo cutucadas



um só ensejo de alegria nos trazem esses amores redivivos

– se doem – e doem muito – provam no entanto que estamos vivos



1.5.2025

(Ilustração: Leonid Afremov - Kiss on the Bench)

28 de jun. de 2025

abraço fatal






para o passo

à beira do abismo

espera uma asa

redentora

- não há espanto

desprezível

apenas o verso

no final do soneto

- não há desejo

na pele nua

apenas o sangue

respingado

no muro caiado

- não há lágrima

nos olhos acesos

apenas o grito

que não ecoa



o passo suspenso

na véspera do abismo

espera a palavra final

espera o pedido

que não vem



suspenso o passo

antes do salto



e se não há asas

que voejem

o abismo abre os braços

para o abraço fatal



16.8.2024

(Ilustração: Zdzisław Beksiński)

25 de jun. de 2025

a mortalha




que se recolham os trapos

de todas as bandeiras

que nos campos de batalha

se estraçalharam

ao longo dos tempos



com esses trapos nauseabundos

construa-se uma imensa mortalha

que envolva os sonhos perdidos

na insensatez das guerras



mas há tantas vidas perdidas

a serem cobertas

por essa mortalha

que nunca os trapos juntados

cobrirão essas vidas todas

– ainda que seja um pedaço de cada corpo –

– ainda que seja um pequeno sonho destruído -



então que os milhares e milhares de artesãos

que a esse insano trabalho se lancem

fechem narizes

esqueçam pudores

e tenham a suprema coragem

de unir aos panos sujos de sangue

a pele – ainda que esturricada –

dos milhões que morreram

pela vontade estúpida

de reis e governantes

guiados apenas pela busca

de vitórias tão falsas e absurdas

quanto todas as batalhas

que promoveram

ao longo dos séculos

assim completando a mortalha

essa imensa mortalha

de angústia e dor



e agora o desejo supremo

– que o sangue derramado ao longo da história

não consagre jamais nenhuma vitória

testemunhe apenas a derrota da racionalidade

que devia orientar as ações da humanidade



7.6.2024


(Ilustração: Hiroshima Peace Memorial Museum - Onogi Akira)

22 de jun. de 2025

A arte

 




Os ditadores morrem

- a arte fica.

Os imbecis viram pó

- a arte fica.



Tolos e ignorantes pisoteiam a pintura.

Estúpidos donos do mundo rasgam a poesia.

Parvos e surdos aos pássaros prendem os compositores.

Os de mentes de muletas atropelam os dançarinos.

Os que vomitam bile e sangue fecham os teatros.

Por quê? Porque os artistas dizem o que eles

- os ignorantes, os ditadores, os donos da consciência humana –

não querem ver, não querem ouvir, não querem saber.



Inútil: os artistas sobem às nuvens e beijam os pássaros.



Os poetas gargalham e seus versos flutuam

por mares nunca dantes navegados

enquanto os estúpidos se afogam no oceano da própria merda.

Aos pés das pirâmides ou sob os arcos dos desmandos,

atores e atrizes rasgam as roupas de palhaços

e sua nudez acende os sóis de todas as galáxias.

O pintor pinta a origem do mundo no ventre da amada

e expõe ao escárnio o grito dos conservadores.

Flautas, flautins, pianos, violinos e violas, violoncelos

e toda a orquestra geme e se ergue ao gesto do maestro

para se imiscuir nos ouvidos dos surdos aos pássaros.



Liberdade é o grito da arte, de todas as artes.



Onde haja um olho que ainda enxerga,

um ouvido que ainda ouça,

um braço que se erga e resista,

uns pés que pisoteiem o chão duro,

uma voz que encarne um poema

e mãos que aplaudam e toquem as nuvens,

aí estará o artista,

para jogar a última pá de terra

no túmulo dos ditadores;

aí estará a arte,

para irritar os tolos conservadores

que odeiam a arte, todas as artes,

porque – meus amigos e amigas –

a arte, ah arte!

A arte liberta!





27.3.2024

(Ilustração: Sandro Botticelli: retrato de Dante)



16 de jun. de 2025

voo noturno





espero o sono vir

espero e vou dormir



mas o sono não vem

e o tédio me retém



rolo na cama

a cama é chama



então estremeço

enfim adormeço



no meu sonho

vou tristonho

pela madrugada

em busca do nada



será mesmo sonho?

ou só desencanto

ou só esse espanto

de poder voar?

(mal posso esperar)



26.1.2024

(Ilustração: Cícero Dias, 1933)

10 de jun. de 2025

volta ao tempo



onde ficou o meu passado

é o que às vezes me pergunto

ah! ficou lá atrás dependurado

no galho de uma jabuticabeira



como está o meu presente

é o que às vezes me pergunto

ah! não estou nada contente

neste lugar chamado pindaíba



como será o meu futuro

é o que às vezes me pergunto

ah! não, nesta canoa tem um furo

nela entra a maré que me afoga



com isso volto ao tempo que me maltrata

e tento dar um pé na bunda desta vida ingrata





16.10.2024

(Ilustração: Simona Mereu - in my mind)

7 de jun. de 2025

vida que resta





é sempre pouco o tempo

para se pensar nas estrelas



as noites de lua nova são como o vento

- pisca-se o olho e já vamos perdê-las

para alvoreceres de prenúncios

de dias tumultuados e muito desassossego



se as estrelas perdidas são anúncios

de portas que se abrem sem segredos

a vida que resta talvez seja a dança

que o tempo armou para nosso degredo

sem qualquer expectativa de esperança





12.10.2022

(Ilustração: Marina Abramovic - carrying the skeleton, 2008)

4 de jun. de 2025

viagem no tempo





talvez eu queira viajar no tempo

e então eu penso: para onde vou?

retorno ao passado ou salto para o futuro?



no passado o espaço ocupado

por seres que mantiveram

suas posições engessadas

nos muros de ideologias

não há lugar para mim



no futuro que vou eu lá fazer?

se as minhas ideologias

estão também presas à mentalidade

do que é hoje este meu mundo

cimentadas todas elas – as ideologias –

nos pensamentos que são tijolos

ou pedras que vieram do passado

cinzeladas para as pirâmides do Egito



viajo sim no tempo

neste meu tempo de momento

sou o que fui ontem

sou o que sou agora

sou o que serei amanhã

sonhador amarrado e amordaçado

a cada segundo vivido

[e sofrido]

o que talvez seja isto apenas

minha viagem no tempo:

viver cada instante como se fosse

passado e presente entrelaçados



o futuro...

bem, o futuro tece para os tolos a sua trama

[e não há nada mais a fazer ou dizer]




29.7.2024

(Ilustração: James Ensor)

1 de jun. de 2025

viagem ao tempo adolescente

 





acompanho minha memória

que voa por sobre montanhas

e segue o vento que espalha perfumes

pelas terras férteis de cafeeiros



o espanto de lembrar é meu guia

nessa viagem ao tempo adolescente

quando as águas que ainda correm

molhava os pés rachados que pisavam

as pedras brancas dos riachos

e marcava a areia dos caminhos solitários



talvez naquele tempo houvesse

apenas um leve sentimento de felicidade

marcada – a felicidade – pela folha caída

da mangueira ainda sem frutos



a esperança nascia no galho da jabuticabeira

e o bico do bem-te-vi pousava-a gentilmente

no ninho dos meus olhos

ao cair da luz de um dia sem sustos



assim ainda sonha minha memória

levada pelo vento para um tempo sem consciência

de que o mundo – esse triste e velho mundo –

mastiga sem dó cada sonho

que nasce nas águas do riacho que desce

do alto da montanha e rola as pedras brancas

até fiquem redondas



e então o jovem que sonhava descobre

que os sonhos não se arredondam nunca

e deixam na carne o sinal de suas arestas

– e agora quando enfim desperto

sinto apenas as escaras das cicatrizes indeléveis



26.2.2025

(Ilustração: Yoran Cazac)



29 de mai. de 2025

ventos de agosto

 



julho de mais um ano de desgraças se esfuma

- está já quase no fim –

miserável tempo que passa

para os ventos de agosto logo açoitar as folhas das árvores e firmar-se como soberano de um inverno que começou lá em março de 2020 e não há sonho no meu sono capaz de trazer de volta o que o tempo desfaz e não há no verso qualquer sombra de um vulto que me espreite na alfombra de uma tarde

de maciez de seios e coxas

quando sem alarde

seja eu o protagonista renascido

ao abrigo dos ventos de agosto

a provar de um vinho claro e sem mosto

que escorra pelo riacho perdido

entre os teus refolhos

e os teus olhos

de gazela espantada ao tiro do caçador

mas atenta a cada suspiro e a cada estertor

de nossos corpos ardentes a despeito dos frios ventos do inverno e julho se esvai ao meu suspiro e desse suspiro resta apenas mais uma mancha no lençol pela manhã de julho que aos poucos se esfuma pela janela aberta de minha desesperança



19.7.2021

(Ilustração: Marianne von Werefkin, 1860–1938)

26 de mai. de 2025

uma gota de ingenuidade

 




sempre se pode falar

do beija-flor



sempre se pode cantar

o sol a se pôr



sempre se pode gelar

na imaginação

um beijo de amor ao amanhecer



sempre se pode

compor poemas em louvor

às excelências da natureza

o mar

os rios

as montanhas

as florestas



há sim muita beleza

sobre a terra e em suas entranhas

e nós – seres humanos –

não podemos tudo isso ignorar



mas para que todas essas belezas

possam ser realmente cantadas

e louvadas

que nossas misérias

enraizadas em nossa mente

sejam superadas

nem que sejam por encantos

ou encantamentos

que alimentem nossos sentimentos

de ver encontrados

novos meios de viver

novos meios de sobreviver

– finalmente –

com poesia

em harmonia

com o meio-ambiente



10.6.2024

(Ilustração: paisagem mineira, foto de Fátima Alves)









23 de mai. de 2025

uma gata

 




sendo você o que é – meu amor –

uma gata – e das mais safadas –

a saudade de você

no meu peito

é como o pelo do gato:

depois que ele vai embora

fica ainda um gato inteiro

na minha roupa



6.2.2024

(Ilustração: foto de autoria não identificada)

 

20 de mai. de 2025

teu grelo

 





quero esta noite curtir minha insônia

navegar minha imaginação através de rios

remar em pirogas por toda a amazônia

sentir na pele todos os calafrios

de um encontro casual em noite de exílio



compor sonetos de camões e de virgílio

em elocubrações de valsas controversas

dançadas em camas de fogo e gelo

enquanto nos comemos em posições diversas

e tu chupas o meu pau e eu sugo o teu grelo





1.12.2021

(Ilustração: Hans Bellmer - door of perception serie)

17 de mai. de 2025

terremoto


os gatos dormem

o sono de gatos

no sofá da sala

 

tu pisas devagar

bem devagar

 

então tudo treme

 

e tu ouves apenas

o miado

dos gatos

antes

do

fim

 

22.9.2023

(Ilustração: Vanessa Stockard)

  

14 de mai. de 2025

tédio de viver

 




cultivo o tédio de viver que me leva

para um abismo de maus pensamentos

porque no fundo do meu ser impera a treva

e não tenho sossego um só momento



dragões que rugem das regiões profundas

calcinam as pedras dos meus abismos

viram pesadelos os vagidos dos sismos

e só me resta o veneno das águas imundas



falta futuro no meu presente

falta passado no meu futuro

sinto-me de mim ausente

na corda bamba – cada vez mais inseguro



oxalá que no fundo do abismo os dragões estejam atentos

para me livrarem enfim de todos os meus tormentos




13.4.2025

(Ilustração: Zoran Music - nous ne sommes pas les derniers, 1970)