17 de mar. de 2024

concerto de violão

 





voo ao vento o violão

na noite o vinho tinto

claro que estou recolhido

ao espaço mínimo de meu quarto

o concerto para violão de

francisco mignone

na tevê – no último volume



lá fora o calor da primavera

que mal começa e já parece verão



curto com os olhos atentos

as mãos do violonista às cordas do violão

como se tocasse – ele o concertista –

as cortas rotas de meu velho coração



ah! as velhas metáforas do sentimentalismo

o coração como o pulsar absurdo de todo meu ser



desce sobre mim a névoa dos dias idos e repetidos

a estranha sensação de estar só no meio da multidão

quando não há em meu quarto mínimo

senão eu comigo mesmo

eu – multidão de vidas antigas

e talvez nem sempre devidamente revividas

eu – o poeta solipsista em sua / minha rede

a ruminar versos e reversos da vida

enquanto ainda há tinta em sua / minha caneta esferográfica



o mundo lá fora a regurgitar

pólvora e pó de penugens de pássaros

o poeta – eu? – a lembrar – ou não – falsos momentos

à luz do luar



sempre foi assim

a solidão

o vinho

e agora o violão

o violão em concerto para o seu / meu desconserto do mundo

os saltos de memórias

os intervalos de novelas

os gritos de gol

a euforia de momentos de outrora no sempre agora

afora os estertores de úmidos lamentos



se sofro – ou não – os meus versos reversos

não revelam

e o concerto de violão chega ao fim

e o seu / meu poema estica-se pela folha

e como todos os meus – também do poeta? – tormentos

não terminam nunca

jamais





23.9.2023

(Ilustração: Shabby Chic - the guitar man)

14 de mar. de 2024

companheira

 

 



na noite nem quente nem fria

quando lá fora povoa-se o mundo de espectros malnutridos

esgueira-se por sob o vão da porta a nuvem branca da amiga solidão



não sei se serei eu a envolvê-la em meus braços

- mesmo fluida e melíflua nuvem -

ou será ela a cobrir-me com sua nívea calma de noite nem quente nem fria



sei apenas que ela vem para povoar de prazeres incontidos

cada palavra de meus versos

e cada verso de meus poemas confessionais



entregamo-nos aos anseios recíprocos e somos um do outro

companheiros idealizados e ideais

para preencher compartimentos cheios de esperanças vazias



mas não de todo vazios nós estamos da lágrima

que derrete o gelo de nossos abraços fraternais



25.11.2021

(Ilustração: Leonor Fini - Woman Seated on a Naked Man 
(Femme assise sur un homme nu), 1942)

10 de mar. de 2024

epifania da solidão


 



na casa de minha tia o relógio de parede marcava o tempo

tiquetaqueando o lento passar das horas

nas paredes brancas e nas tábuas do longo assoalho de madeira encerada



o garoto pobre que ali dormia

quando o casal viajava

nada sabia daquelas longas noites

senão o prazer de uma casa melhor

e toda ela inteirinha para si

um quarto amplo e cobertas quentinhas

sobre um colchão macio



não vigiava o vazio da vida no tique-taque do relógio

porque a vida era cheia de aventuras

e de futuros imaginados ao som do velho relógio

seu monótono tiquetaquear de horas alongadas

nos macios sonhos de alongados sonos pelas manhãs preguiçosas



era um tempo de bem-te-vis e jabuticabeiras em flor

e pela noite de lua nova

os passos do menino ressoavam pelos corredores

da velha casa de seus tios viajantes



os bem-te-vis que gritavam para a tarde sonolenta quase noite

e as jabuticabeiras vestidas de noiva

que trocavam o botão nevado por pérolas negras de doce sabor

são hoje apenas pedaços de sombras

um falso tiquetaquear de vida

a bater em seu peito envelhecido



não há mais noites alongadas de sonhos e esperanças

não há mais sonhos a serem sonhados

não há mais jabuticabas explodindo na boca

não há mais bem-te-vis brigando pelas tardes

não há mais o velho casarão e seu relógio de parede



na noite da cidade grande

onde o matraquear do vento

traz apenas ruídos de motores

e vozes temperadas de angústia

o menino temperado pelo tempo

olha no espelho vazio a cabeça branca

e ouve de novo o velho tiquetaquear

não do relógio da parede da casa dos tios

mas dentro do peito o coração

na epifania final da minha solidão




5.5.2022

(Ilustração: Franz Krischke (1885-1960) - Old Clock)



Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, neste endereço de podcast:

https://open.spotify.com/episode/25c1EULqnatMVxSmePtB77?si=6hbHzR4XQaOz-o94B9Et3g

8 de mar. de 2024

como dizia Cartola

 

 

noite de lua cheia

abro a janela

para fruir a energia que vem da lua

 

mas [plagiando Cartola] que bobagem

a lua não tem nenhuma energia

simplesmente a lua ilumina minha saudade

e o meu peito se enche de felicidade


 

2.12.2023

(Ilustração: Anna Pismenskova - a lua cheia em 31 de janeiro)




5 de mar. de 2024

cio

 




no telhado do meu desejo uma gata no cio

reflete nos olhos de espelho o brilho das estrelas fugidias



dentro da noite - esquecida do frio

por seus trejeitos de felina -

corre sua unha assassina

por minhas costas arrepiadas de espanto

traça caminhos leitosos de espuma e pranto



cada movimento lunar de suas pernas

aperta-me os rins e sou tragado para seus abismos

amantes enlaçados para sempre nas noites eternas

do universo fechado de nosso acalanto

placas teutônicas sob nossos corpos provocam os sismos

do gozo fatal refletido nos seus olhos de gata no cio



cai a chuva das estrelas distantes

transborda o rio

expele o vulcão a lava que nos encobre

e arrebenta o dique represado durante os anos de exílio e saudade

para terminar esse poema numa rima pobre

na explosão da nossa felicidade



19.10.2021

(Ilustração: Hannah Yata - Crazy Erotic Paintings)

2 de mar. de 2024

cidade negra


 


a cidade de trevas dentro da cidade de luzes

das tumbas abertas brotam miasmas

na noite da cidade negra surgem cruzes

e dançam nas ruas estranhos fantasmas

 

o diabo torceu o rabo em forma de tridente

e o passo fúnebre de tristes coveiros

pousou nos ossos e nas caveiras sem dentes

cantando osanas e fugindo dos desordeiros

 

descem sobre o lodo do rio podre

pirogas velhas comandadas por anhangás

para lançar maldições às casas de adobe

onde o branco sangra as veias da paz

 

das antigas guerras entre tribos canibais

são traços eternos e etéreos as trevas

que a cidade negra cobre com jornais

no compasso das procissões medievas

 

cidade negra onde troveja e os raios

partem as árvores que servem de calabouços

para que em todos os dias de todos os maios

mostrem vazios os operários os seus bolsos

 

mata-se a fome de quem nega a fé

com restos das mesas dos ricos

e o pobre caminha pelas ruas a pé

quase nu com seus trajos impudicos

 

pululam na cidade negra os desencantos

que a luz da cidade que brilha por cima

não espanta nem com muitos cantos

de missas horrendas que Anchieta anima

 

sonatas acompanham as solenes danças

de ninfas pálidas nos fétidos palacetes

balançam para cá e para lá suas panças

alcaides que juram crença aos cassetetes

 

os porcos que pastavam chá onde havia

um fundo de vale sujo que agora brilha

cheiram cocaína na noite escura e vazia

acendem com notas de mil sua cigarrilha

 

não me perco em seus becos ó cidade

que és negra como o fundo do universo

sei que tua lama a tudo e a todos invade

menos as rimas desse meu torto verso

 

4.9.2022


(Ilustração: Tito Fornasiero - Metropoli - São Paulo)

 

28 de fev. de 2024

chamado

 




as montanhas de minas chamam minh’alma

eu – ateu engessado e confesso – não tenho alma

sou todo carne e ossos e pelos e lágrimas

a chorar chamas de gelo pelos descaminhos

- cantor sem voz e poeta sem musas

pobre e ferrado aposentado do INSS

- apenas um pontinho negro nas estatísticas



muito jovem jogado no meio da grande metrópole

formei-me em letras e virei professor

joguete agora e sempre das forças econômicas

acordo velho e sem dinheiro



prescreve a pena de poemas cheia

como única forma de sobrevivência

que atenda o chamado das montanhas de minas

mas ateu sem alma e sem mais vontade

não vou morrer tentando voltar ao que não mais existe



7.5.2023

(Ilustração: José Rosário Castro - paisagem com flamboyant florido)

25 de fev. de 2024

cena noturna

 




latidos na madrugada

vizinhança alarmada

gritos aflitos

- ladrão! ladrão!



um vulto pula o muro

- um tiro!

um corpo na calçada

gente alvoroçada

- liga para o distrito!



o moço agoniza



do leito ainda quente

– nua – desliza

a moça assustada

olhos de pranto e medo

espiam pela fresta da janela

o corpo na calçada

– seu mais profundo segredo



26.9.2023

(Ilustração: George Grosz - 1916)


22 de fev. de 2024

cena erótica

 




cheia de pudores a puta que levei para o quarto

meia hora para convencê-la a tirar a roupa

e quando de suas firulas e negaceios já estava farto

foi para debaixo do chuveiro e pôs uma touca

lavou-se furiosamente e também a mim

com muito sabão e muita esfregação

algo que me deixou com uma puta ereção

e ela gostou do que viu – eu e meu pau de pé assim

mas apenas lavava e lavava e lavava

finalmente lavados

muito bem enxaguados

e enxugados

voltamos ao quarto para – pensei – continuar o drama

mas ela disse que seria para sempre minha escrava

se eu deixasse que fosse ela a dirigir toda a trama

pôs-me então sentado na beirada da cama

ajoelhou-se com todo o cuidado sobre meus tênis

para não esfolar os joelhos – ela me explicava –

e chupou e chupou furiosamente o meu pênis



19.2.2022

(Ilustração: Apollonia Sainclair - la déflagration)



19 de fev. de 2024

cena de uma noite tórrida

 



 

o gato sobre a cama

com ela se confunde

num sono profundo

 

na tevê [lá de Praga – músicos vienenses]

Brahms – concerto número dois para piano e orquestra

 

[eu só]

 

para dentro de mim transpiro as gotas da saudade de uma vida que não vivi

e sobrevivo ao calor da meia-noite na cidade-túmulo-de-sonhos

[aqueles sonhos que ficaram perdidos em alguns olhos

cuja luz jaz num tempo de estrelas vazias]

 

quero o sono do gato

[apenas isso]

 

 

16.12.2023

(Ilustração: Pierre Auguste Renoir - le chat dormant, 1862)

16 de fev. de 2024

carpideiras

 




depois de tanto tempo a boca tapada

tenho mil coisas a dizer

e minha língua está um rio amazonas

cobra grande esfomeada

contemplando a boiada

escolhendo a presa



mas ao mesmo tempo penso

e não dispenso a vontade de gritar

que deve a língua continuar presa

porque muito mais do que falar

há milhões de coisas que preciso ouvir



há milhões de vozes pelo tempo a reclamar

e isso meus ouvidos não podem ignorar

- e mergulho de novo no mutismo

de estrelas das galáxias que não conheço

para tentar ouvir o que diz o vento do deserto

e pagar com meu desatino o preço

de tanto tempo tapada a boca – o perto

de hoje ficou mais longe e mais distante

quando a morte fincou suas bandeiras

no campo e na cidade e diante

de cada cova somos todos perenes carpideiras




26.9.2021

(Ilustração: Adrienne Marie Louise Grandpierre-Deverzy:
Gian Monaldeschi implore la grâce de la Reine Christine de Suède)



13 de fev. de 2024

capitalismo

 



vou moer os teus ossos e eles servirão

para engrossar o caldo do teu feijão

comerás assim a ti mesmo

e vagarás sob as chibatas de máquina a máquina – a esmo

como escravo para sempre acorrentado



dos teus uivos e do teu sangue serás alimentado

e herdarão de ti um único olho os teus filhos

não poderás pensar em sair dos trilhos

que teu pensamento estará aguilhoado

de orações e de um céu que será dado

somente aos que se curvam sem gemer

a ti [ó meu príncipe escravizado] só temos a oferecer

o caldo de feijão sujo de teu sangue

e morrerás sem ter vivido – completamente exangue





24.10.2021

(Ilustração: máquina de movimento perpétuo 
em ambiente industrial - criação de IA; foto da internet)



10 de fev. de 2024

cantiga de roda

 




eu estou chorando

chorando muito – de tristeza – nem as palavras de consolo de meu tio

me consolavam



estava profundamente triste

o meu amor – ela [a menina de olhos negros] – está indo embora

e eu estava triste agora

mais de sessenta anos passados



tão profundamente triste – nem as palavras de consolo de meu tio

me consolam

o tempo fechara o círculo agora

e eu no centro desse círculo – e eu choro

(e ela – será que ela chora?)



o anel que não te dou

o anel que não te dei

era vidro e se quebrou

definitivamente – eu soube e eu sei



[este poema podia ser a letra de um bolero ou de uma valsa

- a valsa que contigo não dancei

- o bolero que para ti não cantei

mas é só uma triste cantiga de roda]





4.1.2022

(Ilustração: Francisco de Goya: La gallina ciega - 1789)

7 de fev. de 2024

cansaço

 




não sei se é cansaço ou canseira

do longo tempo que já vivi

talvez uma saudade bem mineira

e na garganta o grito do bem-te-vi



sei apenas que de vez em quando

sopro o vento que vem do sul

chuto a areia que piso chorando

e vou tingindo o céu de mais azul



não sei se é canseira ou cansaço

o que sinto em relação à vida

sei apenas que aguardo mais um abraço

de pessoa que considero mais querida



nesses versos tão singelos como dizia

a velha canção popular

vou tentando pôr um pouco de poesia

nesse meu cansado versejar



e mesmo não sabendo ainda

se sinto cansaço ou canseira

canto essa saudade infinda

de minha juvenice mineira




9.9.2022

(Ilustração: José Rosário Castro: Manhã de paz)




4 de fev. de 2024

Canção para Clementina

 






O povo preto me falou

De uma pele salgada de mar

Quando um dia desencantou

A voz de Clementina a cantar



Oooô Clementina, Clementina de Jesus

No teu canto os atabaques de danças de além-mar

Oooô Clementina, Clementina de Jesus

No teu canto de Olorum brilha a força e a luz

Oooô Clementina, Clementina de Jesus

Tua voz ecoa através dos mares a manhã

Os caminhos da floresta, da floresta de Iansã



O povo preto me contou

De uma pele salgada de mar

Quando um dia desfolhou

A voz de Clementina a cantar



Oooô Clementina, Clementina de Jesus

Sua voz afoxés e agogôs desafiou

Acima dos tambores ressoou

Foi o povo preto que nos contou

Foi o povo preto que te abençoou

Clementina, Clementina, o mar te salgou

De Áfricas tua voz aqui nos encantou

Oooô Clementina, Clementina de Jesus

No teu canto de Olorum traz a luz

O povo preto te louvou

Tua pele salgada de mar

Quando um dia desfolhou

Tua voz a todos encantar




13.3.2022

(Ilustração: Clementina de Jesus, foto da internet, sem indicação de autoria)

 

 

 

 

 

 

 

 

1 de fev. de 2024

canção do espanto

 



 como uma pluma ao vento de agosto vaga meu delírio sobre a cidade

adormecidos os cidadãos em seus leitos

a peste em minhas asas

o grito de angústia no bico adunco

abutre noturno em busca da carne podre

sustento meu voo na força do vento que venta do norte

sei o que sou e o que sou é a dor e também a morte

passeio pelo catre imundo do favelado

passeio pelo dossel revestido de ouro falso do velho capitalista

bico o seio tatuado da madame

corto a carne da bicha apaixonada

estraçalho o ventre da puta solitária

como os olhos das criancinhas em seus berçários

canto a canção do espanto

entrevista em bocas escancaradas

e nada pode deter meu labor enquanto canto

pelos quatro cantos a vitória dos genocidas

enterro bem fundo no leito do rio da morte

as cantigas que não se afinam com o meu doce canto de morte

prendo no fundo do pântano mais sujo todos os sorrisos

que acaso ainda se escondam atrás de máscaras inúteis

 

espanto enfim como uma pluma ao vento de agosto

para a concretude de minha sanha e de meu delírio

o sonho e o futuro de cada cidadão que ouse ter o gosto

de olhar em meus olhos e desdenhar o seu martírio


 



5.6.2021




(Ilustração: Giovanni Stradano - 1587: Racconto di Ugolino - Inferno, Canto 33)

29 de jan. de 2024

caminheiro

 





dizem que os passos do caminheiro

fazem o caminho enquanto ele caminha

mas o que não sabem e não dizem

é que os caminhos pelos quais caminha o caminheiro

vão construindo dentro dele caminhos de pensamentos e de ideias

no princípio apenas vagos e depois a cada passo

cada vez mais o sonho e a poesia crescem em seu cérebro

tomam conta de seu ser e ele passa a ver os caminhos de fora

com os olhos e os sentidos dos caminhos de dentro



e então o mundo que acabaria ali ao pé do arco-íris

se estende por galáxias e pelas poeiras das estrelas distantes

e leva o caminheiro para o mundo infinito que só existe

dentro dele mesmo e de seus caminhos interiores




15.1.2022

(Ilustração: Gustav Klimt - the Sunflower Gardens - 1905-1906)

28 de jan. de 2024

JABAQUARA, TERMINAL

 

 


Desceu do ônibus no Jabaquara, sem um puto no bolso. Puto da vida, sonhava com uma puta vida, mas até agora só a putaria do cais de Santos. Ficou sem os últimos tostões. Só a quantia certa para o ônibus. Olhou para todos os lados, ainda tonto da subida da serra. Do outro lado da rua, vários bares. Tentou negociar com alguns fregueses o dinheirinho do metrô. Escorraçado, desceu a Rua dos Jequitibás e virou à esquerda na Avenida George Corbisier. No escritório do deputado, também não conseguiu nada. Com aquelas roupas e aquelas olheiras... Viu um fantasma no vidro da loja. Sentou em frente à igreja dos crentes e tentou esmolar. O sol a pino turvava-lhe o olho faminto. Nada. Precisava ir embora do Jabaquara, mas sem dinheiro... Desespera-se. Tenta descolar uma coxinha na padaria. Nada. O sol desce pelo seu estômago e provoca ânsias de anoitecer. Quase. Um sopro na tarde e só. Senta. Levanta. Pede. Povo filho-da-puta. Refaz o caminho. Torce a esquina e vê. Acha que pirou. Não. Está lá. Uma carteira no canto do muro. Dentro, uma nota de cinco e um bilhete do metrô. Entra na pastelaria e torra a nota em pastel e caldo de cana. O bilhete, uma preciosidade fechada na mão. Na descida para o metrô, para. Vira-se. De punho cerrado, uma banana pro Jabaquara, povo pão-duro e filho-da-puta, vão se foder. Enfia o bilhete na catraca, que não se abre e ainda apita. Bilhete inválido. Solta um palavrão. Na bilheteria, a moça, autoritária: falso. Não pode trocar, não. Dá escândalo e quase vai preso. Uma semana depois, na porta da igreja dos crentes, música e muitas aleluias. Fim do culto. Todos saem apressados, sem se dar conta do corpo encostado no muro.







sexta-feira, 7 de março de 2003

(Ilustração: Rua dos Jequitibás, Jabaquara, São Paulo/SP 

- foto da internet sem indicação de autoria)


(Você pode ouvir esse texto, na voz do autor, neste endereço de podcast:

https://open.spotify.com/episode/6IHWW8jOPpnLxUGWv1hL5T?si=va_8lajXRampbe4aPIUlXA)

26 de jan. de 2024

caminheiro noturno

 





eu às vezes durmo

mas minha cama não dorme

mesmo que lá fora esteja zumbindo a noite



eu às vezes cochilo

mas meu quarto não cochila

mesmo que lá fora esteja correndo-me a noite



eu às vezes sonho

mas meu travesseiro não sonha

mesmo que lá fora esteja se estrelando a noite



assim sou eu e meu mundo estranho

preso a mim e a meus objetos com que convivo à noite

porque durante o dia

sou apenas um caminheiro noturno a escrever o que não se deve

- estes meus poemas



24.12.2023


(Ilustração: Edward Munch - nuit etoilée)

24 de jan. de 2024

caminhar

 






não é preciso ter destino

para começar a caminhar

o caminho começa quando se é menino

ou menina

e só termina

quando não há mais o que sonhar




10.9.2022

(Ilustração: Giovanni Giacometti)