30 de dez. de 2018

terra redonda







quando um dia descobri

a redondez da terra

então a bola de meia

fez sentido para mim



rolava a bola na terra dura

como rola a terra no céu macio

e o espaço entre uma perna

e o gol quase vazio

preenchia-se de estrelas e estrilos



terra e bola

bola e terra

unidas no jogo

de buscar e saber

menino sabe

de bola e da terra

quando corre livre

levantando poeira

gritando gol

porque a terra

gira redonda

em torno do sol



fez todo o sentido para mim a bola de meia

quando um dia descobri a redondez da terra







30.10.2018


(Ilustração: Cândido Portinari)



28 de dez. de 2018

stephen hawking






físicos não dançam

o universo baila em sua mente

físicos apenas sonham

estrelas fundidas em buracos negros

e a dança fica por conta

de átomos em cadeiras de rodas

eu não preciso falar

preciso apenas pensar

tenho meus olhos para ver

tenho meu cérebro para inventar

e tenho o universo inteiro para sonhar

sou eu e tudo o que sonho

estrelas que brilham

numa xícara de chá

o universo num piscar de meus olhos

tudo o que tenho é o tempo

e então eu chorei

mas os físicos não choram

ora que importa

que não chorem os físicos

importa é que o universo inteiro

está chorando por mim

eu sou deus e danço

porque não tenho limite

eu espero e desejo

apenas ouvindo bach




10.12.2018

26 de dez. de 2018

sonhos não realizados





os sonhos que não realizamos e nunca

realizaremos

transformemo-los todos em palavras

e as palavras que se transformem todas

em poemas

soltemos esses poemas como pipas

presas a nós pelas linhas de nossa ilusão

terão então esses sonhos que sonhamos

e que nunca tiveram a forma da água

ou a sombra das mangueiras em flor

o seu momento de magia em nossos olhos

voando quase livres pelas nuvens

presos a nós e ainda nossos mas para sempre

ao vento sem eira nem beira saltitantes

assim como nós os seus donos aqui na terra

pulamos de alegria de os ter sonhado um dia






13.12.2018


(Ilustração: Cândido Portinari - meninos soltando pipa, 1952)



23 de dez. de 2018

sonhos congelados







bebe tua cachaça velho bebe

aí sentado no banco alto do

bar imundo bebe o cotovelo no

balcão os olhos baços procurando

talvez a última prostituta que

ainda queira fazer contigo o

último programa da noite

bebe teu veneno que te protege

dos teus fantasmas e do teu

passado ninguém se importa

mais contigo se tiveste sonhos

estão todos agora congelados

neste copo imundo por onde

passaram patas de barata durante

a noite passada bebe velho o teu

veneno que não é esta cachaça

vagabunda que desce queimando

tua garganta teu veneno velho

é a tua vida mal levada e mal

lavada pela chuva que cai ali

fora e leva de enxurrada um

monte de besteiras que carregas

nas rugas de teu rosto roto e o

rato que viste agora há pouco

passando pelo fundo do bar

não é fruto da tua imaginação

mas é sim fruto de teus sonhos

frustrados a calcinha roxa da

puta sem dentes que sorri para

ti do outro lado do balcão e tu

sabes que tua vida escoa pelo

bueiro como a chuva e teus

desejos têm a mesma consistência

da carne do rato que viste há

pouco não te iludas velho e

bebe do teu copo ainda pela

metade enquanto tua vida já

é o copo vazio da tua solidão

teus dias são tão vazios como

tuas noites e teus desencantos

têm o mesmo tom soturno das

nuvens que despejam o aguaceiro

lá fora e este bar imundo é teu

último refúgio o teu último

porto de uma metáfora já gasta

como o teu trajeto para a cama

imunda onde te aguardam as

tetas murchas e as carnes

nauseabundas de tua última

companheira para cumprires

nesse banquete de urubus os

gritos e gemidos derradeiros

dos teus sonhos congelados





7.11.2018

(Ilustração: Bernard Buffet - 1928-1999)




21 de dez. de 2018

pobre poeta






o poeta urinava na rua as pernas abertas o corpo

balançando um pouco o poeta nem dava conta

de que estava urinando na rua como um bêbado

e o poeta estava bêbado o pobre poeta urinando

na rua como um mendigo o seu pênis flácido

à sanha dos moralistas que o xingavam em vão

o poeta nem se dava conta de que estava na rua

a sua urina escorria pela calçada amarelando tudo

como amarela estava a sua alma perdida na tarde

o vagabundo que balança devagar o corpo mole

as calças rasgadas e o sapato furado pobre pobre

como sempre fora o poeta agora ali bêbado

a urinar na rua as suas rimas e os seus sonetos

que ninguém lia e ele vira motivo de zombaria

do bairro todo que nunca apreciou seus versos

e ele está urinando na rua como podia estar passeando

por bosques floridos cultivando suas musas loucas

seu ato não tem nada de desagravo e ele o faz

não porque deseja urinar na boca dos que não leram

seus versos talvez até ele quisesse mas não bêbado

talvez até fizesse isso num salão elegante quando

todos os seus não leitores estivessem perfumados

e dançando com suas mulheres decotadas e adúlteras

ele talvez até trepasse numa mesa e pusesse o pênis

para fora num longo mijo na boca daqueles idiotas

mas agora ali na rua como um pateta bêbado na rua

como um mendigo sem eira nem beira o poeta não

pensa em vingança nem nos burgueses que ele odeia

e que nunca deram importância a seus versos pobres

o poeta apenas urina para se aliviar de muita muita

bebida que tomara no bar da esquina para esquecer

amores esquecidos e vidas não vividas apenas isso

nada mais e é por isso apenas que o poeta urina na rua





13.12.2018 

(Ilustração: Peter Brueghel the young - pissing at the moon)



19 de dez. de 2018

pesadelo







trancado dentro de mim 

fechado em meu quarto escuro 

meu corpo assimila os ruídos da noite 

são terríveis e assombrosos os ruídos da noite 

perpassam pelos meus ossos 

fantasmas de outrora revividos agora 

tenebrosos na surdez de seus estampidos 

não dão trégua aos batimentos do coração 

a amarga recompensa que evocam 

não alivia o sono nem recupera o pesadelo 

assombram o desejo de tempos remotos 

o estalido da madeira na casa por um fio 

o pigarro do avô e o susto materno 

o pulo o grito o não saber o que ocorre 

o espanto de um desastre interrompido 

o sangue gelado nas veias esperando o amanhecer 

o menino de doze anos subindo à claraboia 

a escorar com um padeço de pau 

a cumeeira rompida pronta para desabar 

e depois o nada o sono o vento o frio a noite 

trancado dentro de mim no meio da noite 

os ruídos da madrugada arrepiam a memória 








30.11.2018


(Ilustração: Odilon Redon)


17 de dez. de 2018

palimpsesto









raspo um pouco a sua memória e salta uma sombra

recuo contra o fantasma a minha curiosidade

sei que a vida está assim cheia de peles sobre peles

eu curto também meus mortos ou melhor as mortas

aquelas que me amaram e que eu amei e aquelas

que nem sempre amei mas marcaram meu couro

não briguem nossos fantasmas por um espaço curto

somos a soma de camadas nem sempre muito etéreas

sangramos quando não queremos e nem sempre a unha

arranha o fantasma procurado nem sempre toleramos

que sombras que deviam ter desaparecido nas sombras

ganhem um brilho de líquen ou de fogo-fátuo inesperados

e ocupem entre os lençóis o caminho da exasperação

deixemos os mortos a si mesmos entregues eu penso

e você me olha como se fosse eu o fantasma transparente

que tolda o seu susto e seu não convencimento e então

sabemos que os mortos estão ali são eles que não querem

nos deixar em paz entulhados os nós em nossos abismos

desatados os nós em nossa memória dominados os nós

que não queríamos desatar quando somos nós os únicos

a não vencer a batalha do esquecimento de um relógio

que não fabricamos e cujo pêndulo corta-nos a carne

na noite fria você se assusta com a sombra em meus olhos

eu me assombro com a coragem acesa em suas entranhas

e nos enrolamos em nossos fantasmas como cobras no ninho

chorando o destino que não nos revelou a tempo o abismo

caímos e somos não anjos nem demônios em busca de fogo

ou de paz apenas os amantes que chegaram muito tarde

tarde demais na vida um do outro e por isso agora sabemos

que entre sombras e fantasmas para nós o tempo acabou







12.11.2018


(Ilustração: Roberto Ferri)











15 de dez. de 2018

os urubus







houve um tempo em que deram olhos de águia

a alguns urubus



houve um tempo em que deram asas de águia

a alguns urubus



houve um tempo em que deram garras de águia

a alguns urubus



e esses urubus armados dos olhos agudos das águias

e esses urubus armados das asas velozes das águias

e esses urubus armados das garras potentes das águias

descobriram com seus olhos os inimigos

perseguiram com suas asas os inimigos

estraçalharam com suas garras os inimigos



no entanto mesmo com olhos e asas e garras de águia

esses urubus não deixaram de ser urubus

e logo estavam todos se banqueteando da carniça

e mesmo com toda a acuidade de seus novos olhos

e mesmo com toda a beleza de suas asas nobres

e mesmo com todo o poder de suas tremendas garras

estavam todos logo logo tão sujos e tão fedidos

quanto são sujos e fedidos todos os demais urubus



27.10.2018


(Ilustração: Nicole Sanderson)



13 de dez. de 2018

os burgueses





pelas ondas do rádio o som do piano

invade a noite e transporta-me para

aquele tempo distante perdido nas

montanhas de minas o menino descalço

a descer à noite a rua comprida e torta

conduzido pelas mãos da mãe sob a luz

da lua à luz baça dos postes de ferro

a iluminação pública que deixa sombras

nas calçadas mal cuidadas que margeiam

os casarios baixos de janelas enormes

as ruas quase desertas e já silenciosas

o passo firme da mãe que rezara

a noite toda e do menino descalço

as pedras da rua ferindo seus pés

o cansaço do dia a escola no dia

seguinte bem cedo o café ralo o pão

seco os cadernos ajuntados na pasta

e então de repente a luz que ofusca

da janela enorme do vetusto casarão

ilumina a rua e o menino de olhos

vidrados o jorro de luz de brilho o som

de um piano dentro da noite pessoas

que falam que riem tilintam copos

de bebidas caras o vinho tinto a taça

enorme cheia de frutos boiando o

ponche servido às mulheres cheirosas

o frio da noite não tem ali guarida

só os pés do menino descalço na

calçada fria olhando tudo aquilo no

espanto dos olhos o brilho da festa

o calor do riso dos corpos burgueses

eles os burgueses lavrenses que riem

e se divertem dentro de seus ternos

de casimira inglesa bem cortados

suas gravatas borboleta os decotes

dos longos vestidos das mulheres

a saúde burguesa entrevista à luz

dos janelões iluminados os lustres

de cristais polidos a música a dança

eles me desprezam esses burgueses

lavrenses me desprezam e nem sabem

que me desprezam com seu riso sua

festa suas bebidas caras e suas caras

de saúde e frescor e beleza eles me

desprezam e eu hoje aqui agora ao som

desse piano dentro da noite solitária

o mesmo piano burguês de outrora

e eu me lembro deles os burgueses

e eu também os desprezo e o melhor

de tudo é que assim como eles nunca

souberam que me desprezavam

eu também os desprezo anonimamente

solitariamente mas profundamente e

não quero que eles saibam e acho que

eles nunca saberão e é melhor assim

que eles nunca venham a saber

o quanto eu ontem e hoje os desprezo

desprezo-os pelo menino descalço

e pelo poeta solitário na noite fria

e esse desprezo não pode ficar

apenas na mente que sonha na noite

mas deve transbordar nos versos

nas palavras nos olhos de hoje

que não esquecem o desprezo deles

na fria noite distante de ontem

nas velhas montanhas de minas





8.11.2018


(Ilustração: Leszek Sokol)





11 de dez. de 2018

o que importa








acima das nuvens

eu sei

brilha o sol

e daí

o que importa

não é a luz

o que importa sempre

é a minha escuridão




27.10.2018

(Ilustração: Zdzisław Beksiński)



9 de dez. de 2018

noturno número 10







no meio da noite por trás das nuvens finas a luz da lua

o rendilhado etéreo das folhas da pitangueira acentua

num leve e sedoso balançar ao vento que vem do sul

o som do vento mal se ouve ao longo do gramado à soleira

da porta que se abre ao sonho e à esperança agora azul

que brota da fonte da memória para um lugar qualquer

no meio da montanha o caminho de pedra e o canto agônico

de um pássaro ferido ao qual se junta o ritmo sinfônico

dos meus pés nas pedras e do som pelo vento abafado

das batidas do meu coração em busca dos olhos da mulher

que uma vez iluminou à luz da lua este coração angustiado




26.11.2018


(Ilustração: Konstantin Somov - masquerade)



7 de dez. de 2018

SOBRE LIVROS E CHEIROS






Sempre que surge uma nova mídia, apressam-se os apressados de sempre a decretar a morte da mídia anterior. E, quase sempre, erram suas previsões. A morte da vez é a do livro impresso, que seria morto e sepultado pelo livro eletrônico, com o surgimento de leitores digitais. 

Tudo bem, o livro impresso em papel pode até vir a desaparecer algum dia, mas não exatamente por causa do surgimento dos aparelhos digitais que ainda precisam evoluir muito – e parece que estão evoluindo – para se tornarem totalmente confiáveis. Afinal, que bibliófilo confiaria que a bateria de seu aparelho vai continuar sendo produzida pelos próximos séculos? Com a sanha obsoletista da indústria, modelos e mais modelos diferentes acabam sendo produzidos em série, sem que o pobre leitor consiga acompanhar ou mesmo atualizar seu aparelho, como acontece com os telefones celulares, cujo obsoletismo atinge paroxismos impensáveis. 

Eu disse que o livro de papel pode desaparecer, isso porque as florestas estão desaparecendo, ou seja, a sanha humana de destruir o planeta pode chegar às bibliotecas, mas não poderá provavelmente impedir que, mesmo moribundo, os nossos queridos exemplares encadernados e devidamente cuidados permaneçam por muitos séculos além do pobre leitor digital, que precisará de transplantes constantes para novos “corpos”, para resistir à passagem do tempo. 

Tenho um aparelho desses, um Kindle, e aprecio a possiblidade que ele me dá de acesso a obras que, de outra forma, não teria acesso, ou pelo preço muito alto, ou por estarem esgotadas ou, mesmo, por não saber onde encontrá-las. No entanto, se dentro dele já conto com mais de uma centena de livros que carrego para onde vou, coisa impossível se fossem exemplares de papel, também me preocupo com a fragilidade do aparelho, com a falta de energia elétrica para carregar de novo a bateria, com a duração mesma dessa bateria. 

Mas, não é exatamente disso que gostaria de falar, quando se trata de assunto tão atual, complexo e que provoca longas discussões. Sem dúvida, há vantagens e desvantagens em ambas as mídias, e ninguém está seguro de qual lado da balança tem mais peso. Há, no entanto, algo que os aparelhos digitais não têm nem terão nunca: o cheiro. Na sua anódina existência plástica e metalizada, há uma total impessoalidade odorífera. Ninguém cheira um Kindle, a não ser que ele tenha caído em algum lugar fedorento e necessite de uma boa higienização. Ninguém lembraria um momento esquecido no passado, ao cheirar uma tela ligada a um toque, no seu absolutismo existencial de ser apenas aquilo que é, uma tela feita de algum material que não sabemos bem o que é, mistura de plástico e outros materiais, definida por alguém para ser daquela exata tonalidade, totalmente inerte a nossos sentidos. Muito diferente, portanto, da página de papel de um livro, que tem um toque pessoal, ou seja, cada livro tem sua aspereza ou sua maciez característica e única e, principalmente, tem o seu cheiro, diferente de qualquer outro, personalíssimo, como uma impressão digital, de um ser vivo, ou que já foi vivo e parece trazer em si uma história que vai além da história do próprio homem. 

Exagero? Tente, então, caro leitor dessas loucas palavras, cheirar um aparelho digital e compare com o cheiro de um livro. Um querido amigo meu, cuja falta sinto até hoje, depois de vários anos, tinha por hábito levar ao nariz todo e qualquer livro que lhe caía nas mãos, mesmo antes de saber do que ele tratava, se era um romance ou um livro didático. Era essa relação íntima, de cheirar um amigo, de cheirar o que se gosta, que o livro nos proporciona. Nossas narinas são um órgão muito especial: guarda cheiros de que nem nos lembramos mais e nos fazem sonhar quando os respiramos de novo. E há cheiros inauditos, cheiros improváveis, cheiros de tempos e de memórias de que não desconfiamos que estão ali, guardados, catalogados, prontos para nos transportar para momentos esquecidos e, às vezes, jamais relembrados, mas que nos emocionam e nos fazem encher de lágrimas os olhos ou nos provocam um sorriso nos lábios. 

Ah, os cheiros... Veja bem que estou falando de cheiros, não de perfumes, que esses, os perfumes, são cheiros que pertencem a categorias especiais de especiarias e requintes reportados por alquimistas e químicos, artificializados por pesquisas e experimentos. Já os cheiros, e dentre eles os cheiros dos livros, são categorias espontâneas e volúveis, não provocadas, naturalmente captadas por nossas narinas e devidamente registradas por um determinado acontecimento ou momento de que podemos nos esquecer, sim, podemos esquecer o momento e o acontecimento, mas não podemos esquecer o cheiro daquele momento ou daquele acontecimento. E tantos são os cheiros que nos perseguem pela vida afora quantos são os livros que lemos, mas enquanto estou aqui a falar de cheiros, e lembrando de quantos cheiros está povoada a minha lembrança olfativa, quero terminar dizendo, por isso mesmo, por causa dessas tantas lembranças, que, se tirarem as crianças da sala, posso aprofundar o assunto para outras áreas tão ou mais prazerosas que a leitura.





6.12.2018 




(Ilustração: Alexander Bartashevich,1966, Belarusian)






5 de dez. de 2018

mis ojos son tus ojos




eu vejo o que tu vês

tu não vês o que eu vejo

eu vejo o sangue nos olhos

do povo que espera o que não virá

eu vejo o que não virá

no espanto de cada fome e de cada espasmo

e tu

tu só vês o que está escrito no livro

que diz coisas que ninguém come

tu só vês o invisível

tu não vês o que eu vejo

eu vejo a tripa roncando à bala perdida

eu vejo o pé descalço pisando brasas

eu vejo o olho arregalado no estampido

da última bala do soldado morto de medo

eu vejo o beco e corpos que se entregam

e tu o que vês

apenas encostas a cabeça no teu travesseiro

erguendo preces a um deus que não te ouve

vês o arrependimento forçado no dízimo

que encherá de vazio a panela dos teus adoradores

tu não vês os barracos de chão batido furados de bala

por onde entra o facho do medo nos transes da madrugada

tu vês o lucro

tu não vês o logro que eu vejo em cada palavra que tu dizes

para o penitente que agoniza ao assinar o cheque para o teu deus

e te tornas o agente de todas as pestes que sobem dos esgotos

tu não vês o que eu vejo e mis ojos son tus ojos somente nos dias de chuva

quando a lama desce do morro para o teu copo de uísque

tu fazes a festa e a feira e a farra de dólares suíços cheios de sangue

e eu vejo exatamente o que tu és

e eu vejo exatamente o que tu não vês

e eu vejo que isso absolutamente não importa para teus planos

porque não sou nada e tu és aquele que tem a caneta e o decreto

na mesa de mogno de onde disparas teus mensageiros engravatados

para semear tua palavra podre e arrecadar pelo mundo mais asseclas

que irão fazer de ti o que tu nunca foste o potentado de deus

a esbanjar ouro que tiras do nariz para encher tuas astronaves

buscas apenas o rio jordão dos pesadelos de quem paga

aquilo que eu vejo agora mais do que nunca em teus delírios

à passagem de teu cortejo sobre os corpos mortos no esgoto

y tu ojos non son mis ojos pois a tempestade lavou para sempre

a retina de meus olhos que agora cegos apenas podem chorar





25.11.2018 


(Ilustração: Henrique Alvim Correa)


3 de dez. de 2018

lua cheia






à luz da lua cheia eu sinto o cheiro do vento

na serra da mantiqueira entre pedras e musgos

mesmo estando agora deitado em minha cama

a centenas de quilômetros de seus picos e vales

e somente à força da imaginação minhas narinas

se abrem ao cheiro de mato e ao cheiro de terra

pisando as flores do caminho que se constrói

na medida dos meus passos de poeta da cidade

que há muito perdeu o jeito matreiro de andar

sob a lua que flutua sobre a sombra dos vales

deixando um rastro de saudade em cada tropeço

porque sangra ainda o meu coração na lembrança

de amores distantes perdidos na serra da mantiqueira









22.10.2018 

(Ilustração: Samuel Palmer)

1 de dez. de 2018

ignorância









você sempre sabe

de onde a bala sai

o que você não sabe

é aonde a bala vai





27.10.2018


(Ilustração: Fernando Botero)




29 de nov. de 2018

grito primal







sobre meus ossos não há barro amassado por mão de nenhum deus

sobre meus ossos há carne que come carne que se rasga como carne

sobre meus ossos há tendões e veias e músculos mesmo que frágeis

sobre meus ossos há a vida que veio das águas há milhões de anos

sobre meus ossos há peles e pelos que se eriçam nas noites frias

sobre meus ossos há desencantos de caminhos errados e perdidos

sobre meus ossos há marcas de chibatas e ódios triturados em surdina

sobre meus ossos há veias por onde corre o sangue do primeiro dinossauro

e dentro de meus ossos há medulas de angústia e enredos do tempo

e dentro de meus ossos há a massa que sonha que pensa que cria e vigia

e de todos os alimentos de que se serviu o meu corpo para sobreviver

somente o que nutre a minha imaginação é o grito primal da total liberdade





19.11.2018


(Ilustração: Doug Johnsonson)




27 de nov. de 2018

forças ocultas





creio nas forças ocultas

explicadas pela ciência



as nuvens que passam

que passam que passam



vou morar num porto invisível

almas penadas flutuam nas árvores



creio nas forças ocultas

quando a ciência não as explica



o rosto de um deus acadêmico

veste a pele cinzenta do albatroz



vou viver para sempre num porto

só visível aos olhos dos impressionistas



não há compromisso entre o vento e a luz

resplende a lua num céu de outubro



ah sim o outubro quando resplende a lua é vermelho



nada me faz lembrar manhãs eternas

o verão escapa em branca espuma



não creio em forças ocultas

dentro da ciência há apenas o átomo



há impressões que não se explicam

e há expressões raivosas no olho cortado



no canto de páginas em branco soam

melodias de debussy ao piano de satie



um galo arrepia a madrugada ausente

a lua de outubro continua vermelha



não descrevo o que vejo e sim

descrevo o que lembro e nem

sempre o que lembro é verdade

e entre a verdade e o que lembro

gosto sempre mais do que lembro



já não creio em forças ocultas

o futuro está em si mesmo

e também no passado




11.11.2018


(Ilustrção: Max Klinger) 





25 de nov. de 2018

eu







capim que nasce

na beira da estrada

resiste ao sol

resiste à seca

capim de beira de estrada

sou eu

enraizado e seco

mas vivo





27.8.2018


(Ilustração: foto de Fátima Alves, Lavras/MG)



24 de nov. de 2018

estranho





acham que eu sou estranho

porque tomo banho todos os dias



acham que eu sou estranho

porque ainda faço ginástica todos os dias



acham que eu sou estranho

porque me deito tarde e levanto mais tarde ainda



acham que eu sou estranho

porque gosto de dormir embora tenha insônias

de vez em quando



acham que eu sou estranho

porque gosto de frango com quiabo arroz feijão e angu



acham que eu sou estanho

porque bebo de vez em quando uma cachaça vagabunda



acham que eu sou estranho

porque uso cabelo cortado rente ou cabelo bem comprido



acham que eu sou estranho

porque não gosto de cachorros e eles não gostam de mim



acham que eu sou estranho

porque falo pouco e tenho poucos e bons amigos

e sou caninamente fiel a eles



acham que eu sou estranho

porque não convivo com vizinhos embora os respeite



acham que eu sou estranho

por leio muitos livros e gosto de poesia e de teatro

e também de futebol



acham que eu sou estranho

porque escrevo versos que alguns pensam que é poesia



ou será que sou mesmo estranho

só porque escrevo poesia?









9.10.2018


(Ilustração: Julia Perret - decrocher la lune)









22 de nov. de 2018

espantalho







no meio do mundo imenso o milharal

no meio do milharal imenso o espantalho

o velho espantalho os braços abertos

rotos os trapos a cabeça pendida

onde fazem festa corruíras e pardais

ponto de pouso de periquitos e araras

empanturrados todos do milho verde

das espigas abertas pelos bicos espertos



não são no entanto tão espertos os pássaros

que comem tranquilos e alegres o seu milho

não sabem eles que passou há pouco por ali

outro pássaro muito mais cruel que gavião

passou soltando fumaça branca das asas negras

o veneno agora nos papos cheios de milho



os pássaros que pulam nos braços do espantalho

calam-se pouco a pouco e o meio do mundo fica

cada vez mais quieto mais mudo mais morto

lá do fundo da terra só os vermes comemoram





4.10.2018


(Ilustração: Pablo Picasso - man with straw hat)


20 de nov. de 2018

desarmamento geral





desarmem-se as forças armadas

que o lírio no brejo não precisa de esterco de corpos humanos

para florescer



desarmem-se todos os cidadãos

que o vento da montanha não precisa de suspiros agônicos

para assobiar



desarmem-se das palavras os pastores

que pregam cristos em cruzes de beira de estrada

para colher seu sangue e beber seu suor



desarme-se do papa a mitra de ferro que condena

o escravo da palavra a continuar sua trilha infame



desarme-se do togado a balança que pende para o lado

que lhe paga mais em sangue e drogas sintéticas de baladas

movidas a dólares e sexo nas noitadas de verão intenso



desarme-se do polícia o cassetete que fura os olhos

dos mendigos que dormem assustados embaixo de viadutos



desarme-se do cidadão dito comum o ódio no olho

que dá o chicote ao seu algoz como um presente de natal



desarmem-se todas as crianças da possibilidade de mestres

que desafiam o horror no circo embalado em papel de bala

a oferecer hóstias consagradas nos porões do terceiro reich



desarme-se a vida que prescreve o cuspe na cara

desarme-se o desencanto dos que nada têm a perder

desarme-se a esperança do pobre que come o resto

que cai do banquete de cabeças cortadas de mesas fartas

desarme-se o verso enfim que balança o tronco podre

de onde caem as folhas mortas da nossa liberdade







16.10.2018

(Ilustração: Francisco de Goya - El Tres de Mayo)


(Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, no seguinte link de podcast:





18 de nov. de 2018

cromo








na primavera preguiçosa

silêncio na velha pitangueira

sanhaços ignoram o mormaço

bicam pitangas nervosos

driblando bem-te-vis

de olho no sonho do gato

que o gato ao sol ronrona

coleando num céu

de passarinhos sem asas



não arde a tarde

se há sono de gato

canto de sabiá

grito de bem-te-vi

asas de sanhaços

pulos de grilos

sombra de pitangueira

banquete de primavera 






29.10.2018

(Ilustração: foto do autor - pitangueira)





16 de nov. de 2018

ciclo







quem sabe nós dois

[o asfalto quente

depois a lua fria]



quem sabe nós dois

[abraços que partem

corações aquecidos]



quem sabe nós dois

[a cidade fervente

os beijos molhados]



quem sabe nós dois

[a sessão de cinema

a bala perdida]



quem sabe nós dois

[a vida não espera

talvez outro tempo]



quem sabe nós dois

[o vento no cipreste

a pedra redonda]






31.10.2018


(Ilustração: David Mazza)



14 de nov. de 2018

chacona








bem no meio do mistério da vida está a morte 

e bem no meio da morte está o lamento triste 

de um pássaro no meio da floresta da vida 

o seu canto a marcar o compasso do vento 

entesoura o doce desencanto de viver 

enquanto em meio ao vento a vida lenta 

passa como o voejar da abelha na flor 

o mel do destino a morte e o desalento 

são as esporas a instigar o cavalo alado 

a vida em galope no céu de incredulidades 

em meio às tempestades que o som do vento 

alucina o ser que busca o eterno e encontra 

a finitude de seus desejos no estranho arpejo 

de violinos e cantos que soam ao longe 

traçando horizontes que não se incendeiam 

quando ao por do sol a chuva chega mansa 

e a morte ronda cada rastejante ser da mata 

em meio ao caos o agudo trino do pássaro 

marca a desesperança dos agoniados 

ouve-se apenas o gotejar do mel na flor 

a vida é esse mel que escorre para longe 

para nunca mais o dia de novo surgir do caos 

para nunca mais os olhos se abrirem ao sol 



25.10.2018



(Ilustração: Edvard Munch -starry night-1893)



12 de nov. de 2018

canto da sereia




na tarde morna o quarto escuro o leito tem lençóis amarfanhados

toco de leve os teus seios e tu me sorris e a vida parece nos trilhos

não há nenhuma ameaça iminente em nosso tugúrio de amor

e só os gemidos que damos em nossos gozos enchem o ar viciado

do quarto fechado trancado e escurecido onde apenas bruxuleia

a luz dos teus olhos quando mais uma vez beijo tua boca ávida

e um suave perfume que não é bem um perfume mas o cheiro

de nossos corpos e de nossos fluidos na ânsia do embate amoroso

chega até minhas narinas e o ronronar do ar condicionado acende

mais uma vez o nosso desejo e a cama estranha e redonda é pequena

para os estranhamentos de nossos corpos refletidos nos espelhos

e para o tempo que temos ali a cada gozo e cada gemido e depois

estendidos ambos e extenuados eu ainda tenho a lucidez de contemplar

o teu corpo o teu sexo as tuas penas esguias e tua bunda crepuscular

há montanhas e vales e isso é apenas uma metáfora idiota que me vem

quando penso que nossos sexos nasceram em épocas tão distintas

e o verbo que arrebenta minhas entranhas na extrema cavalgada

nunca trará a mesma sintaxe de tuas paixões perdidas em outras camas

em outros corpos e outros gozos e isso minha amada não tem qualquer

importância no que sentimos e no que pintamos de quadros eróticos

nas nossas festas de interiores muito mais intensas que todo o passado

somos eu e tu os amantes de primeira hora apenas os amantes que

se conheceram há pouco num baile de debutantes e que se debruçam

às margens ainda não pisadas de desejos desenhados em cavernas

no mais profundo dos vales onde a água mal rumoreja para formar

os rios que inundarão lagos e oceanos e nós somos apenas duas gotas

recém caídas no imenso rio a explorar a corredeira e as cachoeiras

caminhando juntos num momento extremado o leito arenoso do rio

das nossas vidas ainda tão próximas da fonte que os risos e gozos são

nesse quarto escuro de um hotel no meio da cidade no meio da tarde

o concerto de verão de uma orquestra que toca uma só música repetida

à exaustão em nossos ouvidos que apenas têm como diapasão o canto

das sereias a nos levar para o fundo do oceano de onde nunca sairemos






5.10.2018

(Ilustração: Nicoletta Tomas Caravia)



11 de nov. de 2018

canção do silêncio





estou só absolutamente só não há quem beba comigo

uma cerveja não há quem gargalhe comigo por uma

piada suja não quem possa compartir comigo uma confidência

ou um amor desastrado não há quem possa contar e gozar

a última conquista da mais bela fêmea ainda que saibam todos

que é tudo bazófia de macho bêbado em botequim de pé sujo

mas que ao sentido tribal de amigos e parceiros

de copo e de pranto isso não tem a menor importância

não há amigos nem parceiros ao redor da mesa não há

estou absolutamente só comigo mesmo e nem estou

ainda que solitário sentado num banco de balcão de bar

porque estou só no meu cubículo de doze metros quadrados

a beber a cachaça infame do copo único que parece veneno

sou apenas nesta noite fria de primavera [em que até

mesmo a primavera ronda com o frio a minha janela]

o partícipe anônimo da maior tribo de toda a humanidade

sou eu mais aquele que agasalha no peito [e é a única coisa que

me anima] a dor de cantar mais uma vez a canção do silêncio

a canção que não tem voz nem eco nem palavras

os versos desnecessários porque essa tribo que me acolhe

[não sei por que me veio a ideia de acolhimento quando sei que

os braços de cada um são trapos pendentes ao longo do corpo

e os corpos espalham-se por uma vasta extensão que cobre

talvez toda a terra e muito mais] essa tribo imensa de

imensa e triste existência a tribo dos corações solitários





6.11.2018

  
(Ilustração: Edvard Munch -night in St Cloud-1890)




9 de nov. de 2018

aniversários





em janeiro de dois mil e dezessete eu completei

setenta e dois anos de idade e pensei comigo

basta

nada mais de aniversários

nada mais de envelhecer

que eu viva mais dez ou doze ou vinte

ou sei lá quantos mais anos

que eu morra aos setenta e dois anos



e hoje quando mais de ano passado

continuo com setenta e dois anos de idade

e assim continuarei para sempre



e alguém pode até contrapor

por que não paraste aos vinte e sete por exemplo

quando estavas no auge da mocidade

ou pelo menos na maior completude da vida

quando tinhas ainda tantos sonhos a sonhar

tantas vidas a viver



ora digo eu porque aos vinte e sete ou outra

qualquer idade abaixo dos setenta e dois

não teria nenhuma completude porque isso

de estar completo ou exuberante ou jovem

nada tem a ver com a vida vivida e experimentada

aos setenta e dois sou a mais plena incompletude

apesar de tudo quanto tenha vivido ou experimentado

e assim talvez um velho de cabelos brancos eu possa

ao me olhar ao espelho pensar que nada mais

nem de menos se possa esperar de surpresas ou

desencantos e que eu tenha a quietude do regato

ou a placidez dos lagos ou até mesmo a sabedoria

dos animais que vivem apenas sem pensar no futuro

que aos vinte e sete seria o motivo do meu envelhecimento

não tenho mais o que envelhecer e como estou

posso permanecer ao relento à chuva ao sol ao vento

que a pele curtida não tem mais por que se trocar

por células novas que de novo se renovam e eu

um velho não velho um jovem sem ser jovem

permaneço com meu sorriso tranquilo ou não

mas sem qualquer esperança que impeça

que eu sonhe os sonhos mais impossíveis que

nenhum jovem de qualquer idade ousaria sonhar







30.8.2018


(Ilustração: Luis Ricardo Falero)