22 de jun. de 2017

cantiga de amor




 (Cecily Brown)




atrás da igreja matriz

no banco da praça

no gramado do jardim

na areia da praia

atrás da tipuana

na cama do motel

na mesa do jantar 

no banco de trás

na escada do prédio

na beira da piscina

na sombra da lua

ao sol do meio dia

de manhã 

de tarde

de noite

a qualquer hora

quando você quiser

quando eu pedir

me abrace

me aperte 

me beije

me despe

me lambe

me chupa

me fode





22.1.2017




20 de jun. de 2017

dia de preguiça



(Van Gogh - A Sesta)






hoje não, amor,

que é meu dia de preguiça



sim, eu sei do que tu gostas

eu sei bem como tu gostas

e daqueles jeitos todos

tu me dás, depois, muito cansaço



então, hoje não, amor,

que meu dia é de preguiça



sim, eu sei que promessas

foram essas,

que beijos foram despregados

e grudados

e tudo o mais

mas, e depois, amor, e depois?



não, é melhor não, que hoje

é meu dia de preguiça



gosto, sim, amor, quando tua

língua me percorre, quando

tuas umidades me esquentam

quando nua

te abres e te abandonas,

mas, enfim, hoje

não que eu não queira

não que eu não deseje

mas, enfim, é sim, meu dia

meu dia de preguiça



e por ser hoje o meu dia

de preguiça, vem aqui perto

e deixa

que eu te veja, apenas,

que te olhe

que me molhe

só com o pensar

sem tocar,

sem outro tesão

que o dos olhos



claro, amor, amanhã

de manhã, talvez

mas, sim, com certeza,

com absoluta certeza,

amanhã à tarde,

que hoje...





hoje é meu dia de preguiça

19 de jun. de 2017

caminhada




(JULIA CUDDLEWELL)




toquem meus pés a terra seca da caatinga

ou as areias escaldantes do sudeste

toquem minhas mãos os espinhos do mandacaru

ou as pétalas suaves do copo de leite

toquem meus lábios os lábios molhados

ou as rugosas arestas secas da caverna escura

são todos os meus ensejos o que espero

alcançar com os ventos os arrepios teus

voar acima dos desejos mais perturbadores

e atingir enfim nirvanas de prados eternos







14.1.2015

16 de jun. de 2017

beco escuro



(Jean Cocteau)





à gélida lua de junho

dois travestis fumam crack

no beco escuro entre dois sobrados

mal se vê à luz da lua o punho

que segura o cachimbo mal ajambrado

dois travestis que fumam crack

passa na avenida devagar a viatura

dentro dela três soldados

holofote sobre os vultos assustados

dois travestis que fumam crack

no beco escuro entre dois sobrados

o ruído seco da metranca e o baque

o baque surdo de corpos desamparados

na noite escura bate uma porta

fecha-se a janela de um dos sobrados

eram dois travestis – quem se importa?

10.7.2017



15 de jun. de 2017

lua cheia de sexta-feira santa





(Eros Kara - bacchanales)




pela estrada tortuosa que subia morros e descia morros

fomos um dia eu e você

numa noite de sexta-feira santa em nosso carro popular

as ruas da cidade entupiam de gente batendo matraca

acompanhando a imagem patética de um cristo morto

fugimos eu e você

éramos nós dois uma entidade santa de sexo e prazer

éramos nós dois uma procissão inteira de arrepios e gozos



o nosso carro popular

você se lembra?

subiu a lenta ladeira rumo ao alto sob a lua de uma sexta-feira santa

como a procissão lá embaixo sob o canto da verônica 



a lua esplendia no céu de março o tempo de nosso orgasmo

lá em cima parei o carro desliguei o motor e nos beijamos

não havia som de matraca nem o canto da verônica nem os passos

da lenta procissão a percorrer as ruas da cidade entupida de gente

só nós dois e nosso tesão e nos possuímos à luz da lua

numa noite de sexta-feira santa como santo era o nosso prazer



a procissão acabou a lua caiu no rio as matracas se calaram

ficaram esses versos





14.6.2017





14 de jun. de 2017

não leia não tem sentido algum



(Lucian Freud)


que na manhã fria puxo ainda mais o cobertor sobre mim e ajeito-me na cama toca uma sonata qualquer ao piano vindo do rádio lá fora um frio de rachar imobilizo-me esperando o corpo reagir ao frio fecho os olhos não sei se sonho não sei se acordo é preciso desligar o rádio desligar me movo para a direita estendo o braço e aciono o botão do silêncio e tento voltar à mesma posição não há mais mesma posição não sou o mesmo que estava há pouco encolhido a coberta não é a mesma a cama mudou os átomos todos se mexeram reconstituíram um novo cenário tudo é diferente mesmo o cofre onde durmo o meu quarto que viaja na galáxia o mundo ficou mais velho aquele átimo de segundo é tudo velho o que via e é tudo novo o que eu vejo e não é mais novo tudo muda de instante em instante estrelas explodem mundos se criam o universo se expande a vida morre a morte espreita o vento sopra e tudo muda e cada vez que abro ou pisco os olhos o mundo o mundo morreu renasceu tornou a morrer enquanto patos nadam nas lagoas distantes pássaros voam rumo ao sul ao sul ao sol ao vento a luz de outono o frio puxo de novo as cobertas me ajeito e sou eu um pouco mais perto da morte lúcida a luz que brilha sobre cada pedaço de vida lá fora eu não durmo e eu sonho o sonho de que não há possiblidade de saída para a vida senão a tradicional o corpo inerte velas acesas e choro a terra o escuro a noite do esquecimento a poesia de uma flor que nasce em meio ao paralelepípedo de vidro e leite o estranho mugido de vacas aladas só falta mesmo um unicórnio no jardim do espaço aéreo onde flutua o paulistinha do vitório a plenos pulmões gritando que achara mais um maço de cigarros a marca estranha diferente para a coleção e todos rodopiam na rodovia da morte do grito em cadência da escola de samba no grupo álvaro botelho a menina isa que encanta os olhos do menino pobre eu que não sei se choro ou peço de novo a absolvição ao padre calhorda que ri e gargalha no confessionário da velha matriz o casamento que devia ter acontecido as paixões o sexo o amor a amizade que fica não tem nada como um bom vinho para aquecer as noites ouço beethoven quero um carro zero na garagem não tem mais megalomania acabou tudo filhos solidão amor sexo casamento política soldados na rua tropas marchando mil novecentos e sessenta e quatro soldado de cabeça de papel a loucura do final do curso a faculdade o vento frio o calor das praias amigos amigos muitos amigos alunos que bebem besteiras que lhes dizem do púlpito o padre em frangalhos o rosto coberto da verônica a lua cheia de lavras o céu estrelado mais nada a contar não tem sentido esse movimento para esquentar as cobertas são outras estão frias o meu desejo arrefece quero você eu quero me espera eu te amo eu te odiei filhos amores viagens vontades insatisfeitas miséria dinheiro tudo trabalho inútil estou com frio e a coberta mudou no instante em que desliguei o rádio tocava uma galinha de rameau caramba que desgraça o meu país enfim sós eu você o mundo pegando fogo futebol tudo acabado entre mim e quem mais haveria de pensar nisso o tempo todo querendo fugir com a fuga de bach o teatro a ilusão a poesia enquanto luta o boxeur navega o carro pelas estrelas a cama em fogo o chão se abre vêm à tonas os clichês morte aos mendigos e aos parasitas gritos e uivos da direita fascio di combatimiento credo creio em deus pai não isso não que não sou trouxa vamos todos agora é tarde sabe o que eu queria agora sabe não sabe talvez um dia não te amo nesta manhã de outono desliguei o rádio não há silêncio nesta manhã que



30.3.2017

12 de jun. de 2017

amarração do amor - 2




(A. desconhecido)






o folheto da cartomante

tentador

e lá foi ela a pedir que seu amor fosse amarrado



e tão amarrado foi 

que de manhã o encontraram 

na jacuzzi do motel

mais do que amarrado

amordaçado

vendado

estatelado

o olho esbugalhado

o pênis ensanguentado

o peito estufado

agora para sempre 

muito bem amarrado





14.1.2017

9 de jun. de 2017

antropofagia



(Dino Valls - Barathrum)




recebo tua mensagem quero te comer gostoso

e eu respondo todo amoroso

que estou assado, frito, cozido

temperado com sal e pimenta para ser comido

inteiramente deglutido

no nosso sempre eterno banquete antropofágico

em que me comes e te como no ato trágico

de um teatro mágico

na cama elástica

de nossa paixão pleonástica







4.3.2017

7 de jun. de 2017

Correspondência improvável




(Clary Meserve - Einsteins art and science)




De Newton para Einstein:

- Há sempre uma Luz no fim da Física.

De Einstein para Newton:

- Há sempre um Físico no fim da Luz.







6.4.2017

6 de jun. de 2017

Ambíguos corações





(Jacques Louis David - les sabines)







Batei vossos tambores

Tocai vossos clarins

Levantai vossas bandeiras

Juntai vossos amigos e parentes

Gritai palavras de ordem

Marchai pelos campos e pelas cidades

Expulsai os traidores

Destruí todas as fábricas

Enforcai os banqueiros

Derrubai governos e prepostos

Despi das fardas todos os militares

Rasgai todas as vestes sacerdotais

Incendiai palácios templos e repartições públicas

Dinamitai todas as pontes e todos os presídios

Fundi todas as moedas e queimai todos os dinheiros

Libertai-vos finalmente de todo jugo

Prendei e fuzilai os poderosos

Tomai para vós a condução de vossas vidas

Não deixeis pedra sobre pedra

Do império da desigualdade só restem cinzas

Festejai e dançai vossa liberdade



Festejai e dançai vossa liberdade

Pelos campos arrasados e cidades queimadas

Festejai e dançai vossa liberdade

E fazei vicejar tantas vitórias almejadas



Não descanseis ó povos do mundo

Que do mundo velho nada permaneça

Não descanseis ó povos do mundo

Que de novo a desgraça não aconteça



E então enquanto alguns distraidamente lambem suas feridas

Das cinzas da vasta e velha civilização destruída

Um cidadão qualquer se levanta e apalpa o bolso

Tem ainda dinheiro no meio da miséria geral

Chega-se ao vizinho e lhe propõe magros recursos

Com que recomeçar a vida e tocar um bom negócio

A juros módicos que se irão acumular com o sucesso



E então enquanto alguns ainda cantam e dançam sua vitória

Do meio do incêndio já quase agora só brasas

Um esperto cidadão apossa-se da chamuscada chaminé

Acende o fogo e chama os vizinhos esfarrapados

A ajudar-lhe de novo a produzir a soldo parco

Com promessa de um dia melhorar suas vidas



E então enquanto muitos cochilam e descansam depois da refrega

Do meio do nada num campo crestado

Uma família se junta e se abraça e conserta o arado

Dizem-se donos do vasto terreno e semeiam

Um resto de couve no bolso acaso encontrado

E passam a vender o alimento da terra germinado



E então enquanto outros tantos ainda se abraçam em leitos de rosas

Afogado em dívidas o morto de fome um jovem cidadão

Conserta a carroça que puxa ele mesmo pelos campos

Compra da fábrica e do plantador de couves para a todos vender

A cama para o amor da noite e a sopa para fome do dia

A módico preço com o lucro devido por ele estipulado



E assim a despeito de tudo quanto destruíram

Pouco e pouco a antiga civilização se reconstrói

Com poucos amealhando muito e muitos

Comprando com o pouco que ganham

Dos poucos que se dizem donos da terra

Dos poucos novos ricos que tudo produzem

Assim se vende de tudo e a todos por esses poucos

Com lucros cada vez maiores nos bolsos espertos

De ainda uns poucos que dinheiro fabricam

Para os bancos que emprestam a quem não tem

Expandem-se negócios com novas moedas surgidas

Escravos de antes tornam-se senhores de agora

Compra-se vende-se de novo a mais valia

Da velha mão de obra sem pão sem teto sem nada



O tempo traz o progresso de estradas e navios

O dinheiro amortece os sentidos e todos o querem

Todos querem dinheiro e tudo o que o dinheiro compra

Por isso se vendem ao banqueiro e ao capitão de indústria

Por isso se vendem aos novos latifundiários

Produz-se riqueza de novo a poucos pertencida

Produz-se pobreza de novo a muitos distribuída



Batei vossas cabeças

Tocai vossas lamúrias

Levantai vossas angústias

Juntai vossos cacos e vergonhas

Gritai palavras de ódio

Marchai sobre os vossos passos

Que de tudo isso de novo precisais

Ó povos do mundo que do mundo que destruístes

Não havíeis eliminado a maldita semente do capitalismo

Que brota sempre do fogo de vossos descuidos e ambições

Lá do fundo bruto de vossos ambíguos corações



22.4.2017



Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, neste link de podcast:


https://open.spotify.com/episode/5Rvv6l5yZQw2rwAJPcA2qg?si=ktQHWRAJSwahIl0_kqCR2Q





5 de jun. de 2017

anda-se pelas ruas



(Foto de Aurelio Becherini - São Paulo antiga, muito antiga)




anda-se pelas ruas

esquivando-se dos carros

anda-se pelas calçadas

esquivando-se de cães

de todos os tamanhos

de todas as carantonhas

levados por frouxas correntes

pelos seus cachorreiros

e mais do que se esquivar dos cães

necessário se torna ter atenção

às sujeiras desses molossos

que seus donos não recolhem

das calçadas por onde passam

maus cachorreiros que não se importam

com nossos pobres narizes e sapatos



também se torna necessário

quando se anda pelas calçadas

esburacadas quase sempre

tomar cuidado com postes e orelhões

objetos esdrúxulos

que de repente surgem

na frente de nossas cabeças

de forma ameaçadora



e no meio de tantos perigos

caminham o velho e a criança

deslizam jovens skatistas

apressados ciclistas

trombadinhas e ladrões

pessoas desconfiadas e os espertalhões

berços à frente de babás e mamães

loucos e músicos

e poetas e escriturários

multidão anônima de gente paulistana

sonhadores todos com tempos mais felizes

olhos abertos acima das nuvens

sob o sempre cinzento céu

à sombra de árvores que caem

por causa de qualquer chuva

à sombra dos arranha-céus

gente que anda apressada

pelas ruas e calçadas

da velha cidade

apenas gente apressada

com ou sem motivo

gente muito apressada

que deixa rastros de vida

pelas velhas calçadas

rastros atrás de si

sem olhos que vejam

o sol atrás do arranha-céu

ou a lua pendurada

na antena parabólica


9.11.2016

3 de jun. de 2017

a sabiá








sabia a sábia sabiá

morro molhado mourejam minhocas

botou o bico bem no buraco

voou de volta ao velho ninho

os filhotes famintos fizeram a farra

mordiscando a minhoca morta de medo




1 de jun. de 2017

A arte da guerra





(Bruegel -the triumph of death)



Proust discorre sobre a arte da guerra:

Um tabuleiro de peças marcadas,

Jogadas ensaiadas;

No meio dos contendores, o improvável;

Acima das tropas, o gênio do comandante.



Proust discorre sobre a arte da guerra

De exércitos que se enfrentam em campos de batalha

Previamente combinados,

Com tropas ensaiadas para manobras determinadas

- as guerras do século dezenove.



Proust não viu as guerras do século seguinte ao dezenove

- as guerras do século vinte!

Não têm a lógica do xadrez nem a grandeza

De jogadas e manobras inteligentes;

Não têm o gosto da ilusão de vitória em campos de batalha

Onde exércitos que se respeitam terçam armas cavalheiras;

Não têm o canto de cornetas nem o ruflar de tambores;

Não têm o medo no rosto de heróis que tombam

Agredidos à sombra de bandeiras tremulantes;

Não têm batalhas as guerras do século vinte.



Têm apenas o apertar de botões distantes

E o troar de canhões apagado pela luz sibilina de mísseis;

Seus heróis não morrem com honra,

Morrem em cozinhas, nas salas, nos quartos,

Morrem à luz de televisores e abraçados ao berço dos filhos destroçados;

Morrem sem nem mesmo saberem que estão num campo de batalha.



Proust discorre sobre a arte da guerra com olhos

Da inocência perdida nos olhos dos terroristas.



Não há mais arte nem comandantes nem campos de batalha,

Não há mais o risco provindo da fraqueza humana,

Nas guerras sem heróis depois que a inocência

Da arte de matar se perdeu num instante qualquer

Do início do século vinte.


27.5.2017




(Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, neste link de podcast: