30 de dez. de 2016

reflexões sobre a natureza




(Claude Monet - Impression Sunrise)







quando abro a janela de meu quarto

já nas tardias horas de manhãs de sol ou chuva

não tenho paisagens para contemplar

apenas o verde de minhas árvores

e às vezes o canto do bem-te-vi para me alegrar



por que digo isso assim de forma tão prosaica

nas linhas do que deveria ser um poema



é porque eu sei que existem pessoas por aí

que se deparam com paisagens deslumbrantes

da natureza em toda a sua potência

quando abrem as janelas de seus quartos

em manhãs de sol ou de chuva



essas pessoas que a vida contemplou com tais prazeres

veem com absoluta naturalidade essas paisagens deslumbrantes

e acham que essas maravilhas todas foram criadas por um deus

para o seu deleite e o deleite do povo eleito por esse deus



não vejo no verde das minhas árvores e no canto do bem-te-vi

que alegram as minhas manhãs nenhum sinal de divindade

como não veria qualquer marca da presença de um criador

nas maravilhosas paisagens de mares e montanhas

de lagos e planícies ou de florestas imensas de árvores milenares



a natureza nem é tão bela quanto nossos olhos insistem em ver

a natureza é apenas a natureza não importa quão recortados sejam

os cimos das montanhas ou as longas praias de ondas suaves

não houve intenção de beleza ou de tornar mais felizes os homens

naquilo que chamamos de paisagens deslumbrantes

não há intenções na estranheza da floresta nem nos picos nevados

não há intenções no canto do bem-te-vi a não ser a de marcar seu território

as artes que imitam a natureza são sim a busca da beleza

uma beleza que depende muito mais dos olhos que veem

do que das mãos que tentam transformar em belo

os inalcançáveis tons e formas e sons de um rio que desce a montanha



quando abro a janela de meu quarto

em manhãs de sol ou de chuva

contemplo apenas o verde das árvores

que plantei no meu quintal

e ouço apenas o canto bravo do bem-te-vi

e sei que há naquele pequeno quadrado de solo

tanta vida e tanta beleza quanto há

nas paisagens de montanhas imensas

e desertos sem fim

que muitos contemplam quando abrem

as janelas de seus quartos e pensam

que tudo aquilo é obra de um criador

porque a natureza é apenas o que é

e não se curva à vontade de ninguém



28.12.2016




28 de dez. de 2016

A TERCEIRA PERNA




(H. Sorayama)


“Qual é o animal que tem quatro pernas de manhã, três ao    meio-dia e duas ao anoitecer? ” Esse o enigma proposto pela Esfinge a Édipo. Referia-se, é claro, ao homem. Engatinha quando criança, anda sobre duas pernas na maturidade e utiliza-se de uma bengala na velhice.

Há apenas um engano nesse enigma mítico: na verdade, o homem nunca tem, em sua trajetória, apenas duas pernas. O homem é um animal de três pernas. E sem a terceira perna ele não sobrevive.

Senão, vejamos: como todo animal, enquanto no útero da mãe, é dela que ele depende para sobreviver. Até aí, nada de mais. Também ao nascer, em seus primeiros vagidos, é a mãe ou algum substituto que vela por sua segurança. E começam as diferenças entre o bicho-homem e os demais bichos. Quase todos os nossos demais irmãos vivos já nascem com alguns dispositivos de sobrevivência bastante desenvolvidos. Embora dependam dos pais, essa dependência não é absoluta. A maioria bem que conseguiria sobreviver, se os pais faltassem, pelos menos até encontrar uma família substituta. O homem, não. Se não tiver outros homens para ampará-lo, alimentá-lo e protegê-lo, não teria como sobreviver. E aí nasce a terceira perna. O seio da mãe. O cuidado de alguém. A chupeta. O brinquedinho. O berço...

Com essa terceira perna, nascem também os traumas. Os complexos. A dependência de fatores externos que nunca mais o deixarão. Com marcas indeléveis em sua personalidade. E a terceira perna muda a cada idade, a cada circunstância, embora esteja sempre presente em todos os momentos da vida humana. E ela varia de pessoa para pessoa. Pode ser a mãe, na infância. Ou o professor, na adolescência. O conselho de um amigo, na idade adulta. Mas essas são terceiras pernas comuns, ou melhor, mais óbvias. Há outras, muitas outras. Desde aquelas que milhões utilizam até aquelas específicas de cada um. Idiossincráticas: do indivíduo ou de um povo.

A religião, por exemplo. Quer terceira perna mais gorda? E mais variada? O cristianismo, o budismo e vários outros ismos escondem milhares de tipos de terceiras pernas. A pior de todas, aquela que quase ofusca todo os demais sentidos, não importa em que ismo esteja, é o fundamentalismo, também ele um ismo. E talvez anterior ao fundamentalismo, há um outro ismo pior: o monoteísmo. Ao adotar a crença num único deus, a humanidade inventou a exclusão, o divisionismo, o preconceito, o ódio por diferença de opinião. E todas as sacanagens possíveis foram cometidas em nome de um único deus, criado à imagem e semelhança do homem: cruel, vingador, ciumento de seu rebanho, a ponto de não admitir que ninguém que pense diferente possa partilhar de suas benesses.

O rol de terceiras pernas estranhas também é imenso: pertencem às superstições. Ou ao folclore. Pode ser uma medalhinha de São Jorge ou do seu dragão. Pode ser um brinco no meio da língua. Ou a crença de que voltará Dom Sebastião de Portugal, para fazer o sertão virar mar. Ou o mar virar sertão.

Leio no jornal que o homem mais gordo do mundo, com cerca de 450 quilos, que mora nos Estados Unidos, teve de ser transportado para o hospital. Além de quase demolirem a casa, para que ele pudesse sair, os bombeiros tiveram que contar com helicóptero e uma carreta especial. Seu problema: come demais, quando fica angustiado ou depressivo. A terceira perna, neste caso, transformou esse coitado num homem elefante.

Uma terceira perna engraçada, se não fosse trágica, nos dias de hoje: os cursos de autoajuda. Substituem, por algum tempo, em seus efeitos imediatos, mas que não devem perdurar mais do que o tempo de esquecer o quanto se pagou por eles, a terceira perna mais complicada de tratamentos psicanalíticos ou psicológicos. No entanto, não servem para nada. Aliás, servem: servem para engordar as contas bancárias de inúmeros prestidigitadores da boa-fé de idiotas que acreditam em milagres a cem dólares a hora. Nesse caso, a terceira perna desses ilusionistas é o bolso cheio de dinheiro.

Triste terceira perna é a das nações. A terceira perna coletiva. Jogos olímpicos, por exemplo. A nações se empolgam com os feitos de seus atletas, como se de cada medalha dependesse o seu destino de nação. Os países do terceiro mundo, então, fazem de cada conquista uma forma de autopromoção que beira o ridículo. É como se uma simples medalha - de bronze, prata ou de ouro - pudesse pôr de joelhos o “inimigo” mais poderoso, mais rico ou mais charmoso. No Brasil, esportes como judô, iatismo ou hipismo (que às vezes ganham medalhas) são festejados como se cada brasileiro fosse um exímio conhecedor de ippons ou tivesse no quintal de sua casa um haras com os mais puros-sangues ou vivesse em marinas fantásticas com barcos ainda mais fantásticos. O povo precisa disso, diriam os menos cépticos. Afinal, é o circo nosso de cada dia.

Circo onde vivemos e morremos como palhaços. Desdentados como o idiota do palhaço Tiririca, com suas musiquinhas preconceituosas, ingenuamente preconceituosas, mas espertamente utilizadas pela multinacional Sonny, para faturar às custas da ingenuidade de uns e da estupidez de milhares. Transformam-se os atletas olímpicos em heróis da mesma forma como se criam os Mamonas Assassinas ou os Tiriricas da vida em matéria de consumo rápido.

Pobre país, a correr atrás de heróis para defender sua integridade como nação. País que busca terceiras pernas no ato isolado de seus cidadãos, para fugir à responsabilidade coletiva de construir uma nação decente para os seus filhos.





P.S.: Este texto foi escrito em 1997. Havia referências aos jogos olímpicos de Atlanta, que eu retirei. Mas deixei as referências aos Mamonas Assassinas, que já haviam morrido tragicamente num acidente de avião, em 1996, e ao palhaço Tiririca que, hoje, é deputado federal!

24 de dez. de 2016

humilha-se o homem





(Zdzisław Beksiński) 






humilha-se o homem diante dos altares dos deuses que ele criou

como um cão abana o rabo diante do dono

numa demonstração de quanta estupidez cabe

em suas ações e pensamentos

e deixa de viver a vida e ver o mundo

com a grandeza e toda a beleza que ele tem



é assim como se a galinha passasse a adorar o ovo

que saiu da sua cloaca e dedicasse a ele altares

e orações e erguesse templos para o culto

e quando nascesse daquele ovo o pinto

dele se tornasse para todo sempre escrava



a galinha tem um ovo concreto como concreto é o pintainho

que dele nasceu



o homem engendrou em seu cérebro um ovo imaginário

do qual nasceu glorioso com num paraíso

um ser imaginário

e para ele ergue templos e altares e a ele dedica

a vida

a sua vida

e torna-se escravo desse ser absurdo

desse ser imaginário que ele mesmo criou com sua estupidez

e esse ser imaginário torna-se senhor de suas vontades e de suas ações



o homem

o ser humano que se diz racional

o ser humano que adquiriu a capacidade de dominar a natureza

o ser humano que pode um dia conquistar as estrelas

o ser humano que criou com sua imaginação poderosa

a arte

o esporte

as cidades

as ciências

torna-se nada frente àquilo que ele mesmo inventou

e escraviza e mata e morre por algo que está apenas em sua cabeça

ab ovo

deo gratia





10.12.2016


22 de dez. de 2016

por que buscar o amor




(Riccardo Tommasi Ferroni)



por que razão buscar o amor

se em cada peito medra de diferentes cores



por que razão aceitar o amor

se traz borrascas e noites de pavor



o mistério que faz pulsar mais rápido o coração no peito

o desfalecimento das sensações dentro do cérebro

as eternas vigílias em campos de girassóis

o vazio das ausências acentuando os dias de espera

a angústia da palavra nunca suficiente

a tudo isso confrange o amor e a muito mais

a conspirar contra o amador como ondas revoltas

que naufragam barcos que não acham porto



por que desejos inúteis busca-se o amor

por que se trocam tão poucos momentos de prazer

por tantos dias e tantas noites de desesperança

por que sofre tanto o amador por quem ama



se tem a força da procela e a calma da eternidade

são poucas muito poucas as promessas de paz

e o amor descreve no peito dos amantes

sua trajetória de marcas que ferem e ficam para sempre




10.12.2015

20 de dez. de 2016

receio os teus medos




(Turner - Ulysses)




receio os teus medos

como receio o vento do norte



há na relva a marca do tempo

há na ponte o passo da tropa

chegam dos planetas os sinais

vem do brilho falso da lua

a espera da descarga fatal

prescreveram-se todas as esperanças

enquanto o sábio meditava na treva



receio os teus temores

como receio a chuva do sul



há na areia a âncora perdida

há no livro o verso inconcluso

chegam dos polos os ventos gélidos

vem das estrelas o desencanto

vidas não vividas são enterradas

detiveram-se todos os mensageiros

não há mais ouvidos atentos



receio os teus medos



3.12.2016



18 de dez. de 2016

sic transit



(Zdzisław Beksiński)






tenho em meu peito um cemitério

povoado de vultos que se foram

ancestrais e amigos

mestres e conhecidos

pessoas que preencheram minha vida

hoje pontuam meu peito de cruzes negras



não nego à vida o direito de celebrar

os mortos ilustres ou os mortos esquecidos

mas dentro de mim não peço nada mais

que uma lágrima diária a molhar o chão

onde pousam e repousam os meus mortos

não os quero em velas de aniversários

não os quero em vivas e urras de festinhas animadas

não os quero bonecos de homenagens ou estátuas

são meus mortos queridos e devem ficar assim

bem quietos e doloridos no fundo do meu peito

em suas tumbas negras ao lado de marcos

que lembrem cruzes negras a povoar meus sonhos

ou que tenham suas cinzas espalhadas

entre pedras e narcisos



não me preocupa a morte e sim a ausência

que cobre meus olhos e perturba meus sentidos

faz doer um pouco cada dia o meu peito

como a fonte que goteja no alto da montanha

para transformar-se em rio depois de muito correr

e são esses os rios da minha memória

e são essas as águas do meu desalento

verto-as em silêncio no meio da madrugada

como um cálice de fel e veneno que se toma

porque a vida não nos dá outra opção



tenho o meu peito povoado de vultos

como um cemitério abandonado à beira da estrada

e no entanto olho os meus companheiros todos

e a mim mesmo na trilha estreita da vida

como futuros habitantes desse mesmo cemitério

no peito de algum sobrevivente até que um dia

nenhuma outra geração exista que se lembre de nós



sic transit gloria mundi sic transit gloria sic transit sic



23.11.2016


16 de dez. de 2016

parnaso



(Cleusa Caldas)







para enganar a mim mesmo

que escrevo versos sem rima e sem tino

livres de tudo e de todos

sem pensar em cesuras e outros artifícios

muito menos em alexandrinos

tentei escrever um poema bem careta

com tudo o que teria direito

um poeta parnasiano



aha

pensei

vou estraçalhar o estro poético

vou me borrar todo de felicidade

e ficar muito muito muito cheio de mim



então dei tratos à velha veia poética

e chamei de volta o menino de 14 anos

peguei uma folha pautada e dividi 14 linhas

em 12 traços verticais

para colocar cada sílaba poética

em seu quadradinho

marcando cesuras e sílabas tônicas

e saiu esta maravilha que me deixou tranquilo



transporta o dedo a dor o louco tique-taque

de escrever um soneto igualzinho ao Bilac



(ainda posso sonhar com o parnaso

pois sei contar sílabas poéticas de versos alexandrinos)



o resto do poema

ah o resto do poema

o resto

do poema

do

poema

o resto

bah

arrghh




7.12.2016

15 de dez. de 2016

COURO DE GATO



(Aldemir Martins)


Muitos anos atrás, eu e meus amigos, Homero, Adelino e Anésio, morávamos numa velha (e ainda hoje existente) pensão no Bixiga, na velha São Paulo ainda da garoa. O nosso quarto abria uma porta para uma sacada, no segundo andar, voltada para a rua Condessa de São Joaquim. 

Uma noite, alta madrugada, acordamos com o barulho na rua e o nosso amigo Homero, que gostava de compor e cantar, debruçado na sacada morrendo de rir e cantando: “Aquela gata que passava por aqui / Aquela gata não é mais gata / Hoje é tamborim”. Algumas moças – digamos, de vida livre – passavam pela rua fazendo um grande estardalhaço, ao chutar latas de lixo e falar e gritar.

Corta. São Paulo atual. Meu neto, Lucas, ganhou uma gatinha. Não sou muito amigo de gatos (até bem mais do que de cachorros que, positivamente, não são meus amigos e eu nunca sou amigo deles). Bem, o fato é que a gatinha é graciosa. Ainda novinha. Para brincar com ele, que é muito sapeca, do alto de seus quase cinco anos, toda vez que ia à casa dele, cantava a musiquinha do meu amigo Homero, que nunca me saiu da memória: “Aquela gata que passava por aqui / Aquela gata não é mais gata / Hoje é tamborim”. E dávamos ambos muitas risadas. Só não esperava que ele aprendesse a música e passasse a cantá-la o dia todo para a inocente da gatinha. Isso atiçou minha curiosidade.

Existe mesmo essa música ou foi invenção do meu amigo Homero, tão cheio de graça e tão inventivo? Fui atrás e achei a música “Couro de gato”, de Grande Otelo, Rubens Silva e Popó. Havia apenas uma adaptação de sexo: o gato passara a gata, na versão que eu conhecia através do Homero. E foi essa a versão que mandei ao Lucas, e ele se divertiu muito com música. 

Lembremo-nos que, à época, não havia o conceito do politicamente correto, que é bastante recente e, às vezes, um tanto irritante e limitador. Necessário, no entanto, para que não se cometam barbaridades como já se cometeram, tanto na literatura (leia-se Monteiro Lobato), quanto na música (lembram da marchinha “nega do cabelo duro”?) e em tantas outras manifestações. De qualquer modo, pertencem ao passado e, se dermos o devido desconto, podemos até nos divertir com isso. Como o Lucas se divertiu, na sua inocência dos cinco anos, com a música da gata, ou melhor, do gato:



Aquele gato,
Que não me deixava dormir,
Aquele gato,
Agora me faz sorrir,


Às vezes saía bem da minha pedrada,
Pulava e dava risada,
Fugia, zombando de mim,
Aquele gato, não é mais gato,
Hoje é tamborim...

(refrão)


Paciência,
A vida é mesmo assim,
Fala, couro de gato,
Fala, meu tamborim...








14 de dez. de 2016

relicário




 (Wang Yi Guang)







unicórnio no jardim

peixes andarilhos na sala

tartarugas aladas no telhado

só não são contemplados

pelas leis da evolução

porque não o permitem

a nossa imaginação

num inaproximável

erro de concordância




28.11.2016

12 de dez. de 2016

vira-latas

(Peter Fendi - Schelechte Zeiten, 1831)





nasci vira-lata

cresci vira-lata

sou vira-lata



e essa confissão não é nem humilde nem arrogante

apenas é



nós os vira-latas da vida

ensejamos que o mundo nos veja

como o que sempre fomos e somos



mas



há vira-latas que assomam aos salões iluminados

abanam o rabo e ficam cegos com suas luzes

depois de um latido frouxo fogem com o rabo entre as penas



como um vira-lata poeta tenho um pouco de dó desse tipo de vira-latas



há vira-latas que se enroscam às pernas gordas

de banqueiros risonhos e os acompanham com a língua de fora

babando pela vida e rosnando aos estranhos



como vira-lata filósofo não tenho nem pouco de dó desses vira-latas



há vira-latas que até se deixam iludir com banhos de xampu

como totós de madames comemoram aniversários

ganham bolos e roupas elegantes e coleiras de brilhante



como vira-lata bolivariano rosno para esse tipo de vira-latas



há vira-latas que se tornam juízes médicos professores

convivem com a fina flor da chamada inteligência

seus pelos lustrosos misturam-se a eles e quase não se nota que são vira-latas



como vira-lata das ruas estranho muito esse tipo de vira-latas



há vira-latas que se sentem felizes pulando e latindo

ao lado das longas mesas de banquete

contentando-se com nacos de carne e um pouco de champanha



freudianamente desprezo um pouco esse tipo de vira-latas



há vira-latas que se projetam na política

elegem-se para altos cargos da república

e a república afaga-lhes as costas e torce-lhes os rabos



como vira-lata marxista tenho nojo desse tipo de vira-latas



e há tantos outros tipos de vira-latas por aí

cujos rabos cansados e olhos espertos

fazem a delícia da burguesia

com seus falsos narizes de palhaços

deixemo-los cantar e dançar

que o picadeiro deles precisa

para o show poder continuar



choro um pouco por todos eles

esses bobos vira-latas



porque afinal



nós os vira-latas

somos areia de praia

somos mato de jardim

somos pedra de caminhos



que o mundo nos veja

que o mundo nos proteja

e se o mundo nos enseja

sermos sempre vira-latas

enchamos de pregos as areias de todas as praias

de carrapatos os matos de todos os jardins

de arestas as pedras de todos os caminhos

e sobretudo chutemos e viremos todas as latas


30.11.2916



 (Você poderá ouvir esse texto na voz do autor, no podcast indicado ao lado)



9 de dez. de 2016

madrugada




(Olivier Moreau)





fui dormir tarde

muito tarde

acordei sobressaltado

algumas horas depois



liguei o rádio e tocava

uma fuga de bach



a figura de uma atriz nua

e angelicalmente desbocada

povoou meus sonhos e desejos



para espantar tal visão

li e reli dois contos de ficções

de jorge luis borges

até que a madrugada se transformasse

em luz tênue no canto do sabiá



o dia chuvoso prometia

nunca mais ser o mesmo

de todos os dias chuvosos

narrados por cervantes



inútil continuar a sonhar

com o corpo esguio da atriz nua





o tilintar das moedas

caindo no poço dos desejos

seria a sina final daquele despertar



28.11.2016

6 de dez. de 2016

solidão do poeta





(Berthe Morisot) 



de versos e rimas

não tenho quem me fale

não tenho quem me ouça



sou grão de areia

num oceano de espuma



escrevo o que sinto

nem sempre sinto o que escrevo



se bons ou maus

nascem ao correr dos dedos no teclado

os poemas que me vêm à mente



não os julgam ninguém

não os leem quase ninguém

não os envio a jornais ou a revistas

nem os discuto em rodas literárias



a solidão do poeta é como a solidão dos astros

entre os quais há distâncias infinitas



e a poesia é apenas uma forma de dizer

ainda respiro e vou viver enquanto escrever


15.11.2016

3 de dez. de 2016

MEU MESTRE PORCO ESPINHO







Porco espinho. Bicho aparentemente perigoso, com seus espinhos. Que servem apenas de proteção. Só machucam os incautos. Os agressivos. Os que não têm sensibilidade para dele se aproximar com carinho.

Assim era Chico de Assis. Um porco espinho. Assustava a quem dele se aproximava sem o cuidado devido. E estava sempre na defensiva. Não sei o que a vida lhe proporcionou para ser assim, tão eriçado. Só o conheci no seus últimos dezoito, vinte anos de vida. E foi uma convivência razoavelmente tranquila com seus espinhos. Nas poucas vezes que neles me espetei, tive o cuidado de afastar-me, curar as pequenas feridas e buscar uma nova aproximação, mais cuidadosa e com certeza mais proveitosa, porque fora uma lição a mais que ele me dera.

Conheci muitas pessoas inteligentes, durante a minha vida. E tive o prazer de conviver com várias dessas pessoas. Aprendi muito com elas, embora trilhasse um caminho de autodidatismo e de extremo recolhimento e cautela, que sempre me impediram que me aproximasse demasiado dessas pessoas, com receio sempre de ser um intruso. Com Chico de Assis, foi quase assim. Mas consegui furar um pouco o acanhamento e segui-lo em suas aulas por muitos e muitos anos, no Seminário de Dramaturgia do Arena – o SEMDA.

Creio, no entanto, que nunca lhe disse o quanto o admirava. O quanto admirava sua inteligência, sua memória, seus conhecimentos não só de dramaturgia, mas de tantas outras matérias com que ele recheava suas lições todas as terças-feiras, numa sala do teatro Arena, no centro de São Paulo, de forma quase franciscana e missionária. Mas o que mais me perturba hoje, depois que ele se foi, talvez tenha sido a falta de oportunidade para lhe confessar algo muito íntimo e, até certo ponto, um pouco constrangedor, já que a diferença de idade entre nós não era assim tão grande, que pudesse dar base a essa confissão.

Dizem que mãe só se tem uma. Engano. Tive várias mães, além da minha mãe biológica. Mulheres que eram mães de vários amigos que eram mais do que amigos, eram os irmãos que escolhia e que me escolhiam. Foram e algumas ainda são as mães que me acolheram e ajudaram a fazer de mim aquilo que sou, tão pequeno diante de tanto amor que tive dessas mulheres. E acrescento: foram talvez a compensação de algo que muito fez falta. A elas agradeço e, claro, à minha mãe, de quem falo adiante, todos os dias da minha vida.

Então, o que eu gostaria de ter-lhe dito prende-se a essa minha própria trajetória de vida. Filho temporão, caçula com irmãos bem mais velhos, fui criado – e protegido – por minha mãe e somente por ela, de forma solitária e sem grandes sofrimentos, mesmo diante do quadro de pobreza que nos cercava. Graças a minha mãe, nada me faltou, sua máquina de costura funcionava dia e noite para prover o meu sustento. Cresci distante da figura paterna, estudando sempre solitariamente, para me formar, a despeito de todas as dificuldades. Daí o meu autodidatismo e minha nem sempre vencida timidez diante das pessoas, que nunca me deixaram. Poucos foram os mestres a, não apenas me ensinar, mas também a me guiar, quando jovem e estudante.

As aulas de dramaturgia com Chico de Assis tornaram-se praticamente a exceção à minha busca solitária de conhecimento: tinha, agora, um mestre, um guia. Tornou-se ele, então, para mim, uma espécie de pai intelectual, a fonte onde bebia não apenas um novo mundo de saber, o teatro, mas também onde obtinha um amplo leque de visões de vida, a contribuir para o meu aperfeiçoamento tardio, como homem e como pretenso intelectual, em matérias outras muito diferentes daquelas que eu havia adquirido ao longo da vida. Sim, foi Chico de Assis, durante esses vinte anos de convivência, o pai que eu não tive, um pai ranzinza, duro às vezes, espinhento, mas sempre pronto a dar uma palavra a mais de conhecimento, de lição de vida, de descoberta de uma nova vereda pela qual eu pudesse caminhar sob seus olhos vigilantes e atentos.

E preciso confessar mais uma idiossincrasia: assim como não me lembro o dia da morte de minha mãe, ou de meus irmãos, ou dos amigos mais queridos, dos conhecidos e de tantas pessoas que passaram por minha vida e já se foram, estou também esquecendo e acho que já esqueci a data da morte de Chico de Assis. Não quero saber. Nenhuma data. Nem da morte de meus mortos nem do aniversário de vida dos meus mortos. Porque sou assim: não comemoro datas. Eles, os meus mortos queridos, são lembrados e intimamente chorados por todos, absolutamente por todos os dias da minha vida. Quero-os vivos dentro de mim, a cada instante, sem sofrimento, sem dores, apenas a deliciosa lembrança de um detalhe, de uma palavra, de um sorriso, ou, o que é ainda mais precioso, a certeza de que, se os amei, é porque há na minha memória uma marca indelével de sua passagem por minha vida. A lágrima que umedece meus olhos é discreta, e dói um pouco todos os dias, todos os dias, só um pouco, mas aumenta e ao mesmo tempo alivia a saudade. E isso me basta. E isso me conforta.

Obrigado por haver deixado essa marca, meu mestre porco espinho, meu pai Chico de Assis.


2.12.2016





2 de dez. de 2016

sonhos











sobre as ondas do mar navega o valente barco

cão raivoso ruge medonho o vento

o mar inteiro enovela-se para engolir o barco e seus navegantes

prende entre nove dedos

com mais força o timão o timoneiro sozinho à proa

vespas vermelhas os marinheiros

correm pelo convés da popa à proa

preparam alguns os botes salva-vidas

gritam outros palavras de ordem

tudo se confunde ao negror da noite e à tempestade

alçam voo as gaivotas amedrontadas

possuída de ódio mortal a onda avança

da proa à popa varre o velame e o barco range

segura mais forte ao timão o velho timoneiro

sabe que é violenta a tempestade mas passageira

mais do que todos conhece o mar e seus humores

seu sonho um dia já foi alvorada

durou o tempo do dia calmo em mar de golfinhos

sabe que a noite de tempestade traz o ódio

o ódio cego a pisar a derriçada esperança

mas sua sabedoria de velho timoneiro lhe diz

que depois da bonança e do nevoeiro

vem sempre a manhã do renascimento

volta-se então para todos os marinheiros

os seus olhos cansados porém ariscos

dizem a todos que se acalmem

dizem a todos que trabalhem

que os sonhos ainda não morreram

porque a vida vira um só pesadelo

quando cada um dos marinheiros

mata dentro de si o próprio sonho

devem todos permanecer em vigília

para que a noite negra enfim amanheça

para que o sonho sonhado reviva

ao sol de uma nova e feliz alvorada

formada com a chama sempre acesa

que há nos olhos do bravo timoneiro

3.11.2016







1 de dez. de 2016

O PREÇO DA POESIA




(Lavras; praça Dr. Jorge - c. 1960)


Costumo pensar comigo mesmo que jamais ganharei um só tostão furado com a minha poesia. Não que eu ache que não tenham algum valor os meus versos. Para mim, têm e muito valor. Descrevem a minha vida, descerram o que eu penso, desvelam meus sentimentos. Então, têm algum valor. Para os outros, talvez não valham nada ou muito pouco. Isso, porém pouco importa.

Quando penso que jamais ganharei algo com meus versos é porque me lembro de um episódio ocorrido quando escrevi o meu primeiro poema. Tinha quinze anos. E minha relação com meu irmão doze anos mais velho que eu não era, como nunca foi, das melhores. Porque eu estudava, porque eu era meio nerd (uma palavra ainda não existente no nosso vocabulário), ou seja, eu era diferente do que se podia esperar de um moleque pobre, muito pobre, naquele tempo quando minha mãe lutava desesperadamente para pagar meus estudos; porque eu lia muito e pretendia continuar estudando, mesmo com todas as dificuldades; porque talvez minha mãe me “mimasse”, mesmo sem recursos, por eu ser o caçula; enfim, porque a vida dele, assombrada pelo alcoolismo e por dificuldades financeiras – já casado e com filhos – não devesse ser das melhores, eu só sei que ele, o meu irmão mais velho, sempre que tinha alguma oportunidade, gostava de me provocar, de me dizer coisas desagradáveis, de me colocar para baixo. Nem sei se minha mãe sabia dessas suas artimanhas.

Mas vamos ao caso. Nessa época, morava ele em numa cidade histórica, não muito longe de Lavras, minha terra, mas que, para mim, era um certo alívio, pois não tinha a constância de sua presença a me azucrinar. Isso amenizava um pouco o azedume de nossa relação, já que a distância fazia-me esquecer que ele fazia questão de me olhar torto e de me dizer o que eu não gostava de ouvir. E então, numa de suas visitas, logo depois de haver perpetrado o tal poema, o primeiro, um soneto, ele veio nos visitar. Não sei se para tentar uma aproximação ou por qualquer outra razão, acabei lhe mostrando o poema. Com receio, claro, de sua crítica. Mas mostrei. E para minha surpresa, ele até elogiou. Disse que ia levar para a cidade onde morava e conseguiria até mesmo publicá-lo no jornal de lá, que seria de um amigo dele.

E de fato, algum tempo depois, recebi o tal jornal com o meu poema. Claro que fiquei extremamente feliz. Não consigo me lembrar do meu orgulho de ler um poema de minha autoria em letra impressa. O poema – vejo hoje – é só uma bobagem pretensiosa, como só poderia ser de um garoto de 15 anos, leitor de poetas parnasianos, recém-apresentado às artes das rimas e da versificação, mais vazio do que cheio de ideias, mas com uma grande vontade de escrever. Há, no soneto, além da pretensão, um excesso de reticências e uma mistura estranha de versos decassílabos e octossílabos. As rimas também são estranhas, muito mais rimas toantes que soantes, a indicar uma carpintaria canhestra que o jovem poeta de então realmente era ainda muito incipiente e insipiente. Eis o poema:



Sedução



Oh saudades... primaveras... auroras...

Noites enluaradas de amores...

Lindas flores do jardim, onde outrora,

Tu eras bela – rainha das flores...



Lindos prados... vales verdes... montanhas...

Tudo era de encantos celestes...

Paradísia ressurgida de sonhos,

Tópicos de campos agrestes...



Pintassilgos... rouxinóis policrômicos...

Sistros encantados... melódicos,

Em cascatas transbordantes... eufônicas...



Páginas da mãe natureza,

Maravilhas que eu releio em teus olhos,

Bem do coração, sem surpresa!...



Abaixo do título, lá estava, em letra de forma, o meu nome. Era a glória. O tema do soneto, ou do pretenso soneto, bem... deixa para lá... vocês ouviram: é só mesmo uma bobagem de um menino que, provavelmente, ainda usava calças curtas e andava descalço pelas ruas e matos da velha cidadezinha de Lavras, no Sul de Minas.

O que encerra essa tentativa de crônica e torna-a menos árida e um tanto pitoresca é o seu desfecho: meses depois, meu irmão me confessou que vendera o poema para o jornal e embolsara o dinheiro, dinheiro que estava precisando para comprar leite para os filhos. Enfim, eu não ganhei nada com esses meus versos e com outros versos que vim escrevendo nesta minha vida. Mas, um dia, o meu irmão mais velho, com quem vivia às turras, conseguiu transformar uns pobres versos meus em algo de útil para sua vida e para a vida de meus sobrinhos, em alguns litros de leite. Pelo menos, foi o que ele me contou.

Acho que, por isso, não pensei nunca mais em ganhar dinheiro com poesia. Hoje, publico todos, absolutamente todos os meus versos gratuitamente, num blog e neste podcast, ambos com o nome de Trapiche de Versos e Afins, para aqueles que quiserem lê-los ou ouvi-los. E, se gostarem, muito bem. Se não gostarem, bem, são de graça. Diz o ditado que a cavalo dado não se reparam os dentes. A versos gratuitos não se reparam os defeitos. E não vai nisso nenhuma arrogância, mas apenas timidez e, mais do que timidez, uma brincadeirinha boba. Se quiserem os poucos e parcos ouvintes e leitores fazer reparos, a crítica será sempre bem-vinda.



25.102016

(Você pode ouvir essa crônica, na voz do autor, neste endereço de podcast: