3 de dez. de 2016

MEU MESTRE PORCO ESPINHO







Porco espinho. Bicho aparentemente perigoso, com seus espinhos. Que servem apenas de proteção. Só machucam os incautos. Os agressivos. Os que não têm sensibilidade para dele se aproximar com carinho.

Assim era Chico de Assis. Um porco espinho. Assustava a quem dele se aproximava sem o cuidado devido. E estava sempre na defensiva. Não sei o que a vida lhe proporcionou para ser assim, tão eriçado. Só o conheci no seus últimos dezoito, vinte anos de vida. E foi uma convivência razoavelmente tranquila com seus espinhos. Nas poucas vezes que neles me espetei, tive o cuidado de afastar-me, curar as pequenas feridas e buscar uma nova aproximação, mais cuidadosa e com certeza mais proveitosa, porque fora uma lição a mais que ele me dera.

Conheci muitas pessoas inteligentes, durante a minha vida. E tive o prazer de conviver com várias dessas pessoas. Aprendi muito com elas, embora trilhasse um caminho de autodidatismo e de extremo recolhimento e cautela, que sempre me impediram que me aproximasse demasiado dessas pessoas, com receio sempre de ser um intruso. Com Chico de Assis, foi quase assim. Mas consegui furar um pouco o acanhamento e segui-lo em suas aulas por muitos e muitos anos, no Seminário de Dramaturgia do Arena – o SEMDA.

Creio, no entanto, que nunca lhe disse o quanto o admirava. O quanto admirava sua inteligência, sua memória, seus conhecimentos não só de dramaturgia, mas de tantas outras matérias com que ele recheava suas lições todas as terças-feiras, numa sala do teatro Arena, no centro de São Paulo, de forma quase franciscana e missionária. Mas o que mais me perturba hoje, depois que ele se foi, talvez tenha sido a falta de oportunidade para lhe confessar algo muito íntimo e, até certo ponto, um pouco constrangedor, já que a diferença de idade entre nós não era assim tão grande, que pudesse dar base a essa confissão.

Dizem que mãe só se tem uma. Engano. Tive várias mães, além da minha mãe biológica. Mulheres que eram mães de vários amigos que eram mais do que amigos, eram os irmãos que escolhia e que me escolhiam. Foram e algumas ainda são as mães que me acolheram e ajudaram a fazer de mim aquilo que sou, tão pequeno diante de tanto amor que tive dessas mulheres. E acrescento: foram talvez a compensação de algo que muito fez falta. A elas agradeço e, claro, à minha mãe, de quem falo adiante, todos os dias da minha vida.

Então, o que eu gostaria de ter-lhe dito prende-se a essa minha própria trajetória de vida. Filho temporão, caçula com irmãos bem mais velhos, fui criado – e protegido – por minha mãe e somente por ela, de forma solitária e sem grandes sofrimentos, mesmo diante do quadro de pobreza que nos cercava. Graças a minha mãe, nada me faltou, sua máquina de costura funcionava dia e noite para prover o meu sustento. Cresci distante da figura paterna, estudando sempre solitariamente, para me formar, a despeito de todas as dificuldades. Daí o meu autodidatismo e minha nem sempre vencida timidez diante das pessoas, que nunca me deixaram. Poucos foram os mestres a, não apenas me ensinar, mas também a me guiar, quando jovem e estudante.

As aulas de dramaturgia com Chico de Assis tornaram-se praticamente a exceção à minha busca solitária de conhecimento: tinha, agora, um mestre, um guia. Tornou-se ele, então, para mim, uma espécie de pai intelectual, a fonte onde bebia não apenas um novo mundo de saber, o teatro, mas também onde obtinha um amplo leque de visões de vida, a contribuir para o meu aperfeiçoamento tardio, como homem e como pretenso intelectual, em matérias outras muito diferentes daquelas que eu havia adquirido ao longo da vida. Sim, foi Chico de Assis, durante esses vinte anos de convivência, o pai que eu não tive, um pai ranzinza, duro às vezes, espinhento, mas sempre pronto a dar uma palavra a mais de conhecimento, de lição de vida, de descoberta de uma nova vereda pela qual eu pudesse caminhar sob seus olhos vigilantes e atentos.

E preciso confessar mais uma idiossincrasia: assim como não me lembro o dia da morte de minha mãe, ou de meus irmãos, ou dos amigos mais queridos, dos conhecidos e de tantas pessoas que passaram por minha vida e já se foram, estou também esquecendo e acho que já esqueci a data da morte de Chico de Assis. Não quero saber. Nenhuma data. Nem da morte de meus mortos nem do aniversário de vida dos meus mortos. Porque sou assim: não comemoro datas. Eles, os meus mortos queridos, são lembrados e intimamente chorados por todos, absolutamente por todos os dias da minha vida. Quero-os vivos dentro de mim, a cada instante, sem sofrimento, sem dores, apenas a deliciosa lembrança de um detalhe, de uma palavra, de um sorriso, ou, o que é ainda mais precioso, a certeza de que, se os amei, é porque há na minha memória uma marca indelével de sua passagem por minha vida. A lágrima que umedece meus olhos é discreta, e dói um pouco todos os dias, todos os dias, só um pouco, mas aumenta e ao mesmo tempo alivia a saudade. E isso me basta. E isso me conforta.

Obrigado por haver deixado essa marca, meu mestre porco espinho, meu pai Chico de Assis.


2.12.2016





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