30 de set. de 2018

Soneto








Hoje quero escrever à moda antiga

Um soneto com versos mais perfeitos,

Para que em decassílabos vertida

Seja a paixão e eu ganhe por meus feitos



Todos os galardões de uma conquista

Em que me obriguei a engaiolar

Minha musa antes livre pela pista

E agora presa e triste a lamentar.



Não me importa, no entanto, quanto pranto

Possa ela derramar, se no terceto

Final fizer vibrar com o meu canto



O motivo que guardo e tanto clamo:

No derradeiro verso do soneto,

Dizer a todos quanto eu inda te amo!





12.9.2018


(Ilustração: Nicoletta Tomas Caravia)



28 de set. de 2018

réprobo







“Eu não tenho o sentimento do passado, nem o do futuro, 

e o presente não me parece mais do que veneno”. 

Emil Cioran 




réprobo resoluto percorro as longas ruas de outrora

o vento tosco de morros mal esculpidos molda os meus passos

subo e desço ladeiras inúteis povoadas de fantasmas trêfegos

o lenço no bolso do paletó apenas marca uma infâmia

já que meus pés estão descalços e meu ser estranha a mim mesmo

nada sinto ao ver que sou eu a caminhar pelas pedras em ruínas

menino quase homem sem sonhos nem esperanças

o futuro apenas uma bandeira rota tremulando ao vento

e o vento roendo o fruto podre caído da árvore centenária

provo apenas o rescaldo de incêndios que não provoquei

mas que gostaria que queimassem não apenas velhos casarões

mas também minha alma torpe que lamenta a desesperança

enquanto caminha no passado sem que busque o futuro

sou agora o refém de chamas não acendidas na noite longa

e o veneno da vida corrói por dentro o meu coração infame

continuo o réprobo de antes sem o passo do caminheiro

num momento sou eu e no seguinte sou apenas o outro

misturados ambos em busca de algo que nunca será encontrado






25.9.2018


(Ilustração: Olga Abramova)




26 de set. de 2018

Estão extintos os veados







Do alto de seus longos seis anos, decreta solenemente o Lucas, após visita ao zoológico, sem ter visto um só veado. Estão extintos os veados, e a gargalhada que acompanha sua convicção enche de alegria a tarde de início de primavera. Os veados estão extintos e a vida parece, neste momento, um pequeno oásis de risos e piadas, de beijos e carinhos que não extinguem o amor, pelo contrário, alimenta-o, chama a esperança para mais perto de nós, apesar da extinção compulsória dos veados. 

Nossa imaginação voa alto e pensamos, pensamos que, apesar de toda a convicção do garoto divertido que nos enche a vida de chistes e brincadeiras, os veados na verdade mais verdadeira não estão, felizmente, extintos. Estão, sim, mais vivos do que nunca. Sentam-se conosco à mesa e riem de nossas convicções também infantis como a do Lucas, e nós rimos de seus chistes e seus trejeitos, alegres e felizes como rimos da seriedade do neto travesso. São eles, os veados, hoje, nossos chefes e nossos subordinados, sem que haja nenhum estranhamento de qualquer uma das partes. Vestem-se com roupas sérias, paletó e gravata, e nós rimos deles porque eles se acham engraçados assim vestidos, e não há nenhum reparo a que o façam. Ou usam roupas extravagantes e coloridas, saltos altos e unhas pintadas, e olhamos seriamente para eles, para ver se não há nada fora de lugar e se tudo está nos conformes, porque assim deve ser. Festejam suas fraquezas em grandes paradas, para mostrar que estão cada vez mais fortes e nós os aplaudimos mesmo quando não há motivo para aplausos, apenas por cortesia, assim como eles fazem com nossas perturbações e incentivam nossas caminhadas pelas ruas pedregosas do respeito mútuo. Candidatam-se a cargos eletivos e nós os criticamos por suas posições políticas, quando não concordamos com suas ideias e eles, os veados, que não, de forma alguma, não estão extintos, devolvem o nosso desdém com seus olhares oblíquos e tudo acaba de certa forma muito bem. E os veados – sejam eles sérios homens de negócios ou artistas de cinema, sejam eles lindas mulheres a desfilar em passarelas ou a receber chefes de estado em gabinetes vetustos, sejam eles ou elas, enfim – deixaram de frequentar nosso imaginário para frequentarem nossas vidas como o Lucas, que diz que eles estão extintos, provocando gargalhadas que preenchem a tarde de primavera... 

Mas, esperem... acho que não entendi nada! Não é bem isso o que o Lucas... E também não é exatamente esse o mundo em que... Acho que delirei um pouco. Um pouco? Hélas!



25.9.2018



(Ilustração: foto de Maria Augusta Pinto) 

25 de set. de 2018

prisioneiro







pegaram o cão e o trancaram numa pequena jaula

andou para lá e para cá o vira-lata cheirando a armadilha

então rosnou latiu uivou com tanta gana e força e por tanto tempo

que o soltaram logo e lá foi ele abanando o rabo leve livre e solto pelas ruas



pegaram o gato e o trancaram numa pequena jaula

andou para lá e para cá o angorá cheirando a armadilha

ferido em seu orgulho foi para um canto da prisão onde deitou

e ali ficou sem mover um só músculo até morrer de fome e sede



sou eu o cão vira-latas preso na armadilha da vida

mas não consigo nem latir nem uivar e muito menos rosnar

abdico de minha miséria e não abano meu rabo e como um gato

sou o angorá enrodilhado em mim mesmo esperando o meu fim





30.5.2018 

(Ilustração:Tetsuya Ishida)


23 de set. de 2018

poemas mortos









folhas de outono os poemas mortos vivem

e renascem no solo fértil de sonhos impolutos

inolvidáveis enformam-se em novas pétalas

em versos tortos ou alexandrinos de escol

para aborrecimento dos profetas do caos

que anunciam aos quatro cantos a morte

do sonho e o fim de todas as utopias

mas os poemas mortos desafiam passos

que pisam o solo sem pensar no destino

desassossegam-se em raízes e sementes

desabrocham polens a abelhas inquietas

são flores a haver no jardim dos poetas





17.9.2018


(Ilustração: Georges Seurat)



21 de set. de 2018

para gilberto gil






como fazer para escrever um verso

um poema

para esse negro danado

danado de bom danado de baiano

um brasileiro tão raçudo

tão brasil

homem genial chamado

gilberto gil

como mandar aquele abraço

a quem tem no braço do violão

o vento encanado de uma canção

como brincar com o riso franco

como desvendar o mistério

que eu um falso branco

nunca me cansei de emoldurar



refaço a roda do parque

em torno dele a girar

porque não há nada

nada

nenhuma palavra

que o possa deslindar

esse gilbrás bragil




10.9.2018

19 de set. de 2018

o abismo que me contempla







"Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro.

 E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você."

(Nietzsche)

 



tenho olhado tantas vezes para o abismo

que já nem percebo que ele me olha também

ou que talvez já nem me olhe porquanto

sou eu o próprio abismo de mim mesmo

e se me olho e vejo o abismo é porque

não sei mais se sou eu que me olho

ou se é ele mesmo - o abismo - a me olhar

de forma não menos surpreendente



sei apenas que dentro de mim mora

um monstro que não mitiga minhas dores

não paga as minhas contas nem desconta

a desdita de viver apenas e não mais sonhar



que esse monstro – que sou eu mesmo –

exaure dos meus abismos a coragem

suga os ventos de vida que ainda sopram

e afaga a memória não de um mas de todos

os demais monstros que ainda habitam

no interior de meu ser em revolução



sou eu um vulcão aparentemente extinto

que ruge e não explode porque o abismo

- também ele um vulcão sem fogo e lavas -

destrói cada esperança que a mente expele

para estrelas que brilham distantes

distantes demais para se alcançarem

sem que o abismo que em mim habita

apague com fogo o fogo de ainda viver



17.9.2018

18.4.2024



(Ilustração: Caspar David Friedrich) 




17 de set. de 2018

que venha a primavera





que venha a primavera a torcer as raízes em águas profundas

a fazer brotar riachos de esperança na terra grelhada e expectante

que venham os dias de sol e chuva e os dias de esperança

que sejam benvindas as palavras que ainda não foram ditas

e os ventos amainados sustentem no ar os beija-flores

que venha a primavera a tirar da garganta o canto enfim

o canto de novo na voz do povo que se iluminou

que a primavera não deixe que o esterco podre

engane olfatos com flores que não têm mais perfume

e os olhos brilhem na corola de rosas ainda mais vermelhas

e a bandeira tremule ao bater das asas dos bem-te-vis

a bandeira amarela agora tingida de cores vivas da glória

e a dança do povo acompanhe o batuque do povo negro

e a dança do povo requebre ao batuque do povo índio

e a dança do povo alucine aos sons roucos do rock’and roll

e o samba e o tango e o xaxado e a valsa e todos os sons

sejam ouvidos pelas campinas e pelas florestas e pelas montanhas

e o eco da paz se transforme no ronco das máquinas

num grito de liberdade que desperta e não mais rumina

o que passou pois passou para sempre enterrado em fossas negras

onde ninguém mais ouse colocar sequer uma flor ou uma lápide

e o povo cante de novo a esperança de uma nova e definitiva primavera




13.9.2018


(Ilustração: Fernando Botero)








15 de set. de 2018

entre mim e ti








pode haver abismos entre mim e ti

rios de lavas

oceanos de naufrágios

montanhas de negror e fúria

pode haver mistérios entre mim e ti

e distâncias estelares

ou viagens inexpressivas de expressos do oriente

pode haver sim

que haverá um momento

fugaz eu sei

em que entre meu corpo e teu corpo

não haverá mais

que a tênue espessura de um beijo prolongado na tepidez

de uma tarde sem fim 




18.8.2018

(Ilustração: Boris Vallejo)




13 de set. de 2018

companheiros








sob a marquise amigos de fino trato

arroz feijão e carne moída

homem e cão compartilham mesmo prato

e é tudo o que lhes deu a vida




8.9.2018


(Ilustrção: Briton Riviere - fidelity) 




11 de set. de 2018

biografia







houve um tempo e eu era ainda menino em que

mal aprendera a ler e já devorava toda semana

a revista católica que minha assinava e me envenenava

com hagiografias mal contadas e histórias de papas

um deles um tal de pio XII em seu andor conduzido

e padres e rezas e ladainhas e todas aquelas lendas católicas



houve um tempo e eu já era jovem quando lia tudo

o que me caía às mãos até mesmo os lusíadas o longo poema

daquele vasco complicado que era também o nome do time

de futebol para o qual eu torcia não deixava dúvidas de que

a poesia ali contida era mais do que sonhava a minha imaginação

e só tanto tempo depois eu descobri que o livro que eu lia

publicado por padres idiotas tinha censurado a farra lusíada

naquela ilha de delícias e de amores de ninfas nuas e banquetes



houve um tempo e eu ainda o jovem sonhador do interior

quando ouvia meio que sem nem entender muito tudo aquilo

a rádio nacional do rio de janeiro e seu teatro que transmitia

até mesmo um ibsen com sua casa de bonecas e suas sinfonias

e os cantores da época dos anos sessenta e ouvia e me deliciava

e me enchia com os sons que vinham do mundo para meus ouvidos

em boleros e tangos e valsas e foxtrote e chá-chás-chás achocolatados



houve também o tempo nesse mesmo tempo de sonhos e esperanças

que descobria as notícias do mundo e pensava que o mundo era

formado por homens que falavam bonito em comícios grandiloquentes

e a política embora de forma tosca tomava o meu tempo e eu pensava

que os militares tinham vindo salvar o país de alguma ameaça estranha

e não sabia que eram eles a ameaça que iria tingir tudo de negro

e matar tantos sonhos e esperanças que eu nem mesmo sonhava ainda



e houve um tempo em que lia e descobria as notícias e o mundo

nos jornais pendurados nas bancas de ruas e avenidas da grande cidade

e eu pensava que eram gênios aqueles indivíduos que inventavam

aquelas manchetes engraçadas sem nem perceber ainda que eles

construíam enganos em palavras garrafais para que achássemos que

estava tudo bem e não havia estertores em porões imundos e matanças

inúteis pelas ruas e pelos becos e pelas florestas povoadas de baionetas



houve um tempo em que eu lia revistas e comprava ilusões em fotos

cada mais coloridas e cada vez mais despidas de mulheres inalcançáveis

retocadas e irretocáveis em sua nudez e as notícias da semana eram sempre

as mais rebuscadas em páginas semanais de análises que pintavam o mundo

como se o mundo fosse uma roda a girar em torno de poder e dinheiro

dos banqueiros e dos fazendeiros e dos donos das indústrias num capitalismo

mais que selvagem mais que maluco e que eu nem mesmo entendia direito



houve mesmo um tempo em que as notícias do mundo me chegavam

pelas ondas do rádio e eu as ouvia e mastigava toda manhã

e até mesmo assinava um jornal ávido de saber tudo o que se passava

no mundo inteiro política esportes finanças comportamentos e literatura

e poesia tudo aquilo misturado em letra de forma em fotos e comentários

e opiniões de especialistas até que eu descobri um dia toda a verdade

em torno de tanta notícia que talvez somente eu lia naquele mundo podre



e chegou enfim o tempo da descrença em tudo o tempo em que não mais leio

as notícias dependuradas nas bancas nem as que colorem páginas de revistas

e se ainda pensasse em ver nuas as belas mulheres de outrora já sei que elas

nem eram assim tão belas e que tudo aquilo que se escreve nem sempre se lê

e que a verdade está em algum outro lugar que não na letra impressa

talvez num foguete rumo às estrelas e nesse meu pensar atual quando viajo

pelas asas do ceticismo me sinto mais completo como ser humano embora

sinta falta das mentiras que me contavam e das quais ainda guardo o ranço

de um sorriso também falso como se tudo aquilo tivesse sido um pesadelo

e nesse meu desconsolo escrevo o que me vem à cabeça como um poeta

que navegasse pelas águas do atlântico vindo da europa e atravessando o cabo

da boa esperança em busca de especiarias das índias e talvez até descobrisse

que há civilizações no fundo do mar mas o mar continua revolto e inóspito

e o que está afundando num tsunami de inverdades é todo um povo enganado

que tinha encontrado um caminho e esse caminho de repente foi bombardeado

por forças inauditas de atraso e desespero e tudo se desmorona na mentira

mentira agora veiculada e passada de cada um para cada um não mais

nas ondas hertzianas ou nas imagens de televisão e nem mesmo nas páginas

em branco e preto ou coloridas de jornais dependurados na banca

ou nas revistas impressas em papel brilhante com fotos de mulheres nuas

a mentira agora vem na tela de meu computador como se fosse bulbos

de cebolas de que se arrancam as pétalas e elas vão revelando cada vez mais

mais e mais camadas de gente ignorante que acredita em tudo o que

se escreve na tela e em tudo o que se publica e em tudo o diz o amigo

que está na nuvem ou é apenas um robô idiota repetindo sandices





14.8.2018

(Ilustração: Manabu Mabe)







9 de set. de 2018

Trova - o capricho com que me lavo








O capricho com que me lavo

Deixa claro o que comerás:

Para que sejas meu escravo,

Ofereço-te a frente e atrás.






19.4.2018 

(Ilustração: Gerda Wegener)

8 de set. de 2018

amor






cante-se um tango que o amor busque

na tragédia do dia o sangue seco

na lâmina de um punhal a lágrima

escondida no seio da moça enviuvada



no espanto das aves nos fios elétricos

às madrugadas se acotovele aos cães

vadios de becos escuros e sujos bordéis

seja o tiritar de frio do mendigo a chorar



à chuva das manhãs de primavera

que o encanto da vida dos amantes

se desfaça em leitos de lençóis de linho

na arruaça do destino a bater de porta



em porta nas madrugadas do sem fim

quando enfim se estenda pelas alamedas

o sangue derramado em seu nome em cântaros

de todos os tangos tristes da comédia humana





23.7.2018

(Ilustração: Roberto Ferri, il bacio)




6 de set. de 2018

teatro







ser marginal às vezes

é chic



[aplausos]



não sou nem quero ser

marginal



[aplausos/vaias]



eu quero ser a margem

e sendo margem conduzir

o rio



[silêncio]



amoldar-me ao rio

talvez



[murmúrio]



ou amoldar o rio

não sei



[algumas vaias/risos]



estou confuso entre o barro

e o peixe



[algumas vaias]



olha na verdade o que eu

quero dizer

eu vou dizer

eu vou dizer



[silêncio]



sim eu vou dizer

esse negócio de margem

esse negócio de rio

e de peixe e de barro

e de ser marginal



[protestos/vaias/risos]



o que eu quero dizer é

que se fodam

que se fodam todos vocês

e que tudo se foda

tudo se foda agora

antes que eu morra



[tiro/estupefação/aplausos/vaias/gritos]



fechem as cortinas

fechem as cortinas





21.8.2018

(Bernard Buffet -1928-1999 - don quichotte les duegnes-1988)




4 de set. de 2018

sutil poesia







ouvir música ao cair da tarde

é sutil poesia



ler um bom romance antes de dormir

é sutil poesia



deitar-se à sombra de uma mangueira

é sutil poesia



deixar cair a chuva fina sobre o rosto

é sutil poesia



o tempo que torna belas as ações do dia a dia

o anseio por paz em noite cheia de estrelas

a esperança de acalanto nos braços de um novo amor

a conversa descansada com amigos e um bom vinho



tudo isso – sutil poesia

(é só sentir e sonhar)







26.7.2018

(Ilustração: Paul Bond - The Releasing Of Sorrows) 






2 de set. de 2018

reflexões sobre a vida







não sei qual o sentido da vida

não sei se tem a vida algum objetivo

sei apenas que ela corre em minhas veias

e faz-me pensar um pouco porque nasci

com esse maldito dom de pensar e de sonhar

olho a vida ao meu redor e vejo animais e plantas

também eles vivos e pulsantes seres sobre os quais

nada sabemos de seus pensamentos e de seus sonhos

sei que as plantas vivem e morrem e não têm cérebro

nem por isso são menos vivas que eu mesmo

sei que animais vivem e lutam por viver e dizem

que é apenas por instinto mas quando olho bem

nos olhos de um gato ou de um pássaro eu sei

que ele também me olha e pensa na estranheza

do meu olhar e fico sem saber se a vida que brilha

nessas pupilas tenha o mesmo encanto e desencanto

da vida que palpita nas células de meu corpo

ou nas sinapses de meu cérebro às vezes tão

estranho quanto a grama que nasce entre as pedras

no meio do caminho de porcos e javalis

sonho e penso ou penso porque sonho não sei

sei apenas que esta vida que carrego é fardo

às vezes cruel e sem sentido quando sofro

e sei que esta vida que carrego é prazer

e fuga de orgasmos e beijos de arrebóis

e que tudo por que se passa passa como o lento

fio de água que corre da montanha para o mar

e a vida que estremece nas entranhas de deuses

que não existem é a mesma vida que desmorona

em cataclismos e guerras e loucuras

a mesma vida que se esvai na sola do sapato

que pisa um formigueiro a mesma vida

e tudo é tão breve e tudo é tão lento

quanto um cometa que cruza o espaço

ou a passada do caracol na areia do deserto

o pássaro que voa ou a cascavel que rasteja

o vento que arranca as árvores e a chuva

que alaga as várzeas e cobre as cidades

a vida teimosamente continua e eu teimosamente

continuo a escrever os versos que nunca

serão lidos e isso pouco importa para mim

porque a vida me obriga a ser o que sou

e contra a vida só se pode conceber a morte

e se toda vida pressupõe morte que haja

entre o primeiro vagido e o último suspiro

um largo e lento verso de poucos lamentos

para que em poesia ainda que tosca e fria

se realize como pétala ou como espinho

mas se concretize assim como as nuvens

se transformam em chuva e o cheiro da terra

possa entrar por nossas narinas e avivar

o processo que torna a vida que vivemos

o único e real dom que temos como seres





30.8.2018

(Ilustração: Nicoletta Tomas Caravia)