houve um tempo e eu era ainda menino em que
mal aprendera a ler e já devorava toda semana
a revista católica que minha assinava e me envenenava
com hagiografias mal contadas e histórias de papas
um deles um tal de pio XII em seu andor conduzido
e padres e rezas e ladainhas e todas aquelas lendas católicas
houve um tempo e eu já era jovem quando lia tudo
o que me caía às mãos até mesmo os lusíadas o longo poema
daquele vasco complicado que era também o nome do time
de futebol para o qual eu torcia não deixava dúvidas de que
a poesia ali contida era mais do que sonhava a minha imaginação
e só tanto tempo depois eu descobri que o livro que eu lia
publicado por padres idiotas tinha censurado a farra lusíada
naquela ilha de delícias e de amores de ninfas nuas e banquetes
houve um tempo e eu ainda o jovem sonhador do interior
quando ouvia meio que sem nem entender muito tudo aquilo
a rádio nacional do rio de janeiro e seu teatro que transmitia
até mesmo um ibsen com sua casa de bonecas e suas sinfonias
e os cantores da época dos anos sessenta e ouvia e me deliciava
e me enchia com os sons que vinham do mundo para meus ouvidos
em boleros e tangos e valsas e foxtrote e chá-chás-chás achocolatados
houve também o tempo nesse mesmo tempo de sonhos e esperanças
que descobria as notícias do mundo e pensava que o mundo era
formado por homens que falavam bonito em comícios grandiloquentes
e a política embora de forma tosca tomava o meu tempo e eu pensava
que os militares tinham vindo salvar o país de alguma ameaça estranha
e não sabia que eram eles a ameaça que iria tingir tudo de negro
e matar tantos sonhos e esperanças que eu nem mesmo sonhava ainda
e houve um tempo em que lia e descobria as notícias e o mundo
nos jornais pendurados nas bancas de ruas e avenidas da grande cidade
e eu pensava que eram gênios aqueles indivíduos que inventavam
aquelas manchetes engraçadas sem nem perceber ainda que eles
construíam enganos em palavras garrafais para que achássemos que
estava tudo bem e não havia estertores em porões imundos e matanças
inúteis pelas ruas e pelos becos e pelas florestas povoadas de baionetas
houve um tempo em que eu lia revistas e comprava ilusões em fotos
cada mais coloridas e cada vez mais despidas de mulheres inalcançáveis
retocadas e irretocáveis em sua nudez e as notícias da semana eram sempre
as mais rebuscadas em páginas semanais de análises que pintavam o mundo
como se o mundo fosse uma roda a girar em torno de poder e dinheiro
dos banqueiros e dos fazendeiros e dos donos das indústrias num capitalismo
mais que selvagem mais que maluco e que eu nem mesmo entendia direito
houve mesmo um tempo em que as notícias do mundo me chegavam
pelas ondas do rádio e eu as ouvia e mastigava toda manhã
e até mesmo assinava um jornal ávido de saber tudo o que se passava
no mundo inteiro política esportes finanças comportamentos e literatura
e poesia tudo aquilo misturado em letra de forma em fotos e comentários
e opiniões de especialistas até que eu descobri um dia toda a verdade
em torno de tanta notícia que talvez somente eu lia naquele mundo podre
e chegou enfim o tempo da descrença em tudo o tempo em que não mais leio
as notícias dependuradas nas bancas nem as que colorem páginas de revistas
e se ainda pensasse em ver nuas as belas mulheres de outrora já sei que elas
nem eram assim tão belas e que tudo aquilo que se escreve nem sempre se lê
e que a verdade está em algum outro lugar que não na letra impressa
talvez num foguete rumo às estrelas e nesse meu pensar atual quando viajo
pelas asas do ceticismo me sinto mais completo como ser humano embora
sinta falta das mentiras que me contavam e das quais ainda guardo o ranço
de um sorriso também falso como se tudo aquilo tivesse sido um pesadelo
e nesse meu desconsolo escrevo o que me vem à cabeça como um poeta
que navegasse pelas águas do atlântico vindo da europa e atravessando o cabo
da boa esperança em busca de especiarias das índias e talvez até descobrisse
que há civilizações no fundo do mar mas o mar continua revolto e inóspito
e o que está afundando num tsunami de inverdades é todo um povo enganado
que tinha encontrado um caminho e esse caminho de repente foi bombardeado
por forças inauditas de atraso e desespero e tudo se desmorona na mentira
mentira agora veiculada e passada de cada um para cada um não mais
nas ondas hertzianas ou nas imagens de televisão e nem mesmo nas páginas
em branco e preto ou coloridas de jornais dependurados na banca
ou nas revistas impressas em papel brilhante com fotos de mulheres nuas
a mentira agora vem na tela de meu computador como se fosse bulbos
de cebolas de que se arrancam as pétalas e elas vão revelando cada vez mais
mais e mais camadas de gente ignorante que acredita em tudo o que
se escreve na tela e em tudo o que se publica e em tudo o diz o amigo
que está na nuvem ou é apenas um robô idiota repetindo sandices
14.8.2018
(Ilustração: Manabu Mabe)
Nenhum comentário:
Postar um comentário