11 de set. de 2018

biografia







houve um tempo e eu era ainda menino em que

mal aprendera a ler e já devorava toda semana

a revista católica que minha assinava e me envenenava

com hagiografias mal contadas e histórias de papas

um deles um tal de pio XII em seu andor conduzido

e padres e rezas e ladainhas e todas aquelas lendas católicas



houve um tempo e eu já era jovem quando lia tudo

o que me caía às mãos até mesmo os lusíadas o longo poema

daquele vasco complicado que era também o nome do time

de futebol para o qual eu torcia não deixava dúvidas de que

a poesia ali contida era mais do que sonhava a minha imaginação

e só tanto tempo depois eu descobri que o livro que eu lia

publicado por padres idiotas tinha censurado a farra lusíada

naquela ilha de delícias e de amores de ninfas nuas e banquetes



houve um tempo e eu ainda o jovem sonhador do interior

quando ouvia meio que sem nem entender muito tudo aquilo

a rádio nacional do rio de janeiro e seu teatro que transmitia

até mesmo um ibsen com sua casa de bonecas e suas sinfonias

e os cantores da época dos anos sessenta e ouvia e me deliciava

e me enchia com os sons que vinham do mundo para meus ouvidos

em boleros e tangos e valsas e foxtrote e chá-chás-chás achocolatados



houve também o tempo nesse mesmo tempo de sonhos e esperanças

que descobria as notícias do mundo e pensava que o mundo era

formado por homens que falavam bonito em comícios grandiloquentes

e a política embora de forma tosca tomava o meu tempo e eu pensava

que os militares tinham vindo salvar o país de alguma ameaça estranha

e não sabia que eram eles a ameaça que iria tingir tudo de negro

e matar tantos sonhos e esperanças que eu nem mesmo sonhava ainda



e houve um tempo em que lia e descobria as notícias e o mundo

nos jornais pendurados nas bancas de ruas e avenidas da grande cidade

e eu pensava que eram gênios aqueles indivíduos que inventavam

aquelas manchetes engraçadas sem nem perceber ainda que eles

construíam enganos em palavras garrafais para que achássemos que

estava tudo bem e não havia estertores em porões imundos e matanças

inúteis pelas ruas e pelos becos e pelas florestas povoadas de baionetas



houve um tempo em que eu lia revistas e comprava ilusões em fotos

cada mais coloridas e cada vez mais despidas de mulheres inalcançáveis

retocadas e irretocáveis em sua nudez e as notícias da semana eram sempre

as mais rebuscadas em páginas semanais de análises que pintavam o mundo

como se o mundo fosse uma roda a girar em torno de poder e dinheiro

dos banqueiros e dos fazendeiros e dos donos das indústrias num capitalismo

mais que selvagem mais que maluco e que eu nem mesmo entendia direito



houve mesmo um tempo em que as notícias do mundo me chegavam

pelas ondas do rádio e eu as ouvia e mastigava toda manhã

e até mesmo assinava um jornal ávido de saber tudo o que se passava

no mundo inteiro política esportes finanças comportamentos e literatura

e poesia tudo aquilo misturado em letra de forma em fotos e comentários

e opiniões de especialistas até que eu descobri um dia toda a verdade

em torno de tanta notícia que talvez somente eu lia naquele mundo podre



e chegou enfim o tempo da descrença em tudo o tempo em que não mais leio

as notícias dependuradas nas bancas nem as que colorem páginas de revistas

e se ainda pensasse em ver nuas as belas mulheres de outrora já sei que elas

nem eram assim tão belas e que tudo aquilo que se escreve nem sempre se lê

e que a verdade está em algum outro lugar que não na letra impressa

talvez num foguete rumo às estrelas e nesse meu pensar atual quando viajo

pelas asas do ceticismo me sinto mais completo como ser humano embora

sinta falta das mentiras que me contavam e das quais ainda guardo o ranço

de um sorriso também falso como se tudo aquilo tivesse sido um pesadelo

e nesse meu desconsolo escrevo o que me vem à cabeça como um poeta

que navegasse pelas águas do atlântico vindo da europa e atravessando o cabo

da boa esperança em busca de especiarias das índias e talvez até descobrisse

que há civilizações no fundo do mar mas o mar continua revolto e inóspito

e o que está afundando num tsunami de inverdades é todo um povo enganado

que tinha encontrado um caminho e esse caminho de repente foi bombardeado

por forças inauditas de atraso e desespero e tudo se desmorona na mentira

mentira agora veiculada e passada de cada um para cada um não mais

nas ondas hertzianas ou nas imagens de televisão e nem mesmo nas páginas

em branco e preto ou coloridas de jornais dependurados na banca

ou nas revistas impressas em papel brilhante com fotos de mulheres nuas

a mentira agora vem na tela de meu computador como se fosse bulbos

de cebolas de que se arrancam as pétalas e elas vão revelando cada vez mais

mais e mais camadas de gente ignorante que acredita em tudo o que

se escreve na tela e em tudo o que se publica e em tudo o diz o amigo

que está na nuvem ou é apenas um robô idiota repetindo sandices





14.8.2018

(Ilustração: Manabu Mabe)







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