30 de dez. de 2018

terra redonda







quando um dia descobri

a redondez da terra

então a bola de meia

fez sentido para mim



rolava a bola na terra dura

como rola a terra no céu macio

e o espaço entre uma perna

e o gol quase vazio

preenchia-se de estrelas e estrilos



terra e bola

bola e terra

unidas no jogo

de buscar e saber

menino sabe

de bola e da terra

quando corre livre

levantando poeira

gritando gol

porque a terra

gira redonda

em torno do sol



fez todo o sentido para mim a bola de meia

quando um dia descobri a redondez da terra







30.10.2018


(Ilustração: Cândido Portinari)



28 de dez. de 2018

stephen hawking






físicos não dançam

o universo baila em sua mente

físicos apenas sonham

estrelas fundidas em buracos negros

e a dança fica por conta

de átomos em cadeiras de rodas

eu não preciso falar

preciso apenas pensar

tenho meus olhos para ver

tenho meu cérebro para inventar

e tenho o universo inteiro para sonhar

sou eu e tudo o que sonho

estrelas que brilham

numa xícara de chá

o universo num piscar de meus olhos

tudo o que tenho é o tempo

e então eu chorei

mas os físicos não choram

ora que importa

que não chorem os físicos

importa é que o universo inteiro

está chorando por mim

eu sou deus e danço

porque não tenho limite

eu espero e desejo

apenas ouvindo bach




10.12.2018

26 de dez. de 2018

sonhos não realizados





os sonhos que não realizamos e nunca

realizaremos

transformemo-los todos em palavras

e as palavras que se transformem todas

em poemas

soltemos esses poemas como pipas

presas a nós pelas linhas de nossa ilusão

terão então esses sonhos que sonhamos

e que nunca tiveram a forma da água

ou a sombra das mangueiras em flor

o seu momento de magia em nossos olhos

voando quase livres pelas nuvens

presos a nós e ainda nossos mas para sempre

ao vento sem eira nem beira saltitantes

assim como nós os seus donos aqui na terra

pulamos de alegria de os ter sonhado um dia






13.12.2018


(Ilustração: Cândido Portinari - meninos soltando pipa, 1952)



23 de dez. de 2018

sonhos congelados







bebe tua cachaça velho bebe

aí sentado no banco alto do

bar imundo bebe o cotovelo no

balcão os olhos baços procurando

talvez a última prostituta que

ainda queira fazer contigo o

último programa da noite

bebe teu veneno que te protege

dos teus fantasmas e do teu

passado ninguém se importa

mais contigo se tiveste sonhos

estão todos agora congelados

neste copo imundo por onde

passaram patas de barata durante

a noite passada bebe velho o teu

veneno que não é esta cachaça

vagabunda que desce queimando

tua garganta teu veneno velho

é a tua vida mal levada e mal

lavada pela chuva que cai ali

fora e leva de enxurrada um

monte de besteiras que carregas

nas rugas de teu rosto roto e o

rato que viste agora há pouco

passando pelo fundo do bar

não é fruto da tua imaginação

mas é sim fruto de teus sonhos

frustrados a calcinha roxa da

puta sem dentes que sorri para

ti do outro lado do balcão e tu

sabes que tua vida escoa pelo

bueiro como a chuva e teus

desejos têm a mesma consistência

da carne do rato que viste há

pouco não te iludas velho e

bebe do teu copo ainda pela

metade enquanto tua vida já

é o copo vazio da tua solidão

teus dias são tão vazios como

tuas noites e teus desencantos

têm o mesmo tom soturno das

nuvens que despejam o aguaceiro

lá fora e este bar imundo é teu

último refúgio o teu último

porto de uma metáfora já gasta

como o teu trajeto para a cama

imunda onde te aguardam as

tetas murchas e as carnes

nauseabundas de tua última

companheira para cumprires

nesse banquete de urubus os

gritos e gemidos derradeiros

dos teus sonhos congelados





7.11.2018

(Ilustração: Bernard Buffet - 1928-1999)




21 de dez. de 2018

pobre poeta






o poeta urinava na rua as pernas abertas o corpo

balançando um pouco o poeta nem dava conta

de que estava urinando na rua como um bêbado

e o poeta estava bêbado o pobre poeta urinando

na rua como um mendigo o seu pênis flácido

à sanha dos moralistas que o xingavam em vão

o poeta nem se dava conta de que estava na rua

a sua urina escorria pela calçada amarelando tudo

como amarela estava a sua alma perdida na tarde

o vagabundo que balança devagar o corpo mole

as calças rasgadas e o sapato furado pobre pobre

como sempre fora o poeta agora ali bêbado

a urinar na rua as suas rimas e os seus sonetos

que ninguém lia e ele vira motivo de zombaria

do bairro todo que nunca apreciou seus versos

e ele está urinando na rua como podia estar passeando

por bosques floridos cultivando suas musas loucas

seu ato não tem nada de desagravo e ele o faz

não porque deseja urinar na boca dos que não leram

seus versos talvez até ele quisesse mas não bêbado

talvez até fizesse isso num salão elegante quando

todos os seus não leitores estivessem perfumados

e dançando com suas mulheres decotadas e adúlteras

ele talvez até trepasse numa mesa e pusesse o pênis

para fora num longo mijo na boca daqueles idiotas

mas agora ali na rua como um pateta bêbado na rua

como um mendigo sem eira nem beira o poeta não

pensa em vingança nem nos burgueses que ele odeia

e que nunca deram importância a seus versos pobres

o poeta apenas urina para se aliviar de muita muita

bebida que tomara no bar da esquina para esquecer

amores esquecidos e vidas não vividas apenas isso

nada mais e é por isso apenas que o poeta urina na rua





13.12.2018 

(Ilustração: Peter Brueghel the young - pissing at the moon)



19 de dez. de 2018

pesadelo







trancado dentro de mim 

fechado em meu quarto escuro 

meu corpo assimila os ruídos da noite 

são terríveis e assombrosos os ruídos da noite 

perpassam pelos meus ossos 

fantasmas de outrora revividos agora 

tenebrosos na surdez de seus estampidos 

não dão trégua aos batimentos do coração 

a amarga recompensa que evocam 

não alivia o sono nem recupera o pesadelo 

assombram o desejo de tempos remotos 

o estalido da madeira na casa por um fio 

o pigarro do avô e o susto materno 

o pulo o grito o não saber o que ocorre 

o espanto de um desastre interrompido 

o sangue gelado nas veias esperando o amanhecer 

o menino de doze anos subindo à claraboia 

a escorar com um padeço de pau 

a cumeeira rompida pronta para desabar 

e depois o nada o sono o vento o frio a noite 

trancado dentro de mim no meio da noite 

os ruídos da madrugada arrepiam a memória 








30.11.2018


(Ilustração: Odilon Redon)


17 de dez. de 2018

palimpsesto









raspo um pouco a sua memória e salta uma sombra

recuo contra o fantasma a minha curiosidade

sei que a vida está assim cheia de peles sobre peles

eu curto também meus mortos ou melhor as mortas

aquelas que me amaram e que eu amei e aquelas

que nem sempre amei mas marcaram meu couro

não briguem nossos fantasmas por um espaço curto

somos a soma de camadas nem sempre muito etéreas

sangramos quando não queremos e nem sempre a unha

arranha o fantasma procurado nem sempre toleramos

que sombras que deviam ter desaparecido nas sombras

ganhem um brilho de líquen ou de fogo-fátuo inesperados

e ocupem entre os lençóis o caminho da exasperação

deixemos os mortos a si mesmos entregues eu penso

e você me olha como se fosse eu o fantasma transparente

que tolda o seu susto e seu não convencimento e então

sabemos que os mortos estão ali são eles que não querem

nos deixar em paz entulhados os nós em nossos abismos

desatados os nós em nossa memória dominados os nós

que não queríamos desatar quando somos nós os únicos

a não vencer a batalha do esquecimento de um relógio

que não fabricamos e cujo pêndulo corta-nos a carne

na noite fria você se assusta com a sombra em meus olhos

eu me assombro com a coragem acesa em suas entranhas

e nos enrolamos em nossos fantasmas como cobras no ninho

chorando o destino que não nos revelou a tempo o abismo

caímos e somos não anjos nem demônios em busca de fogo

ou de paz apenas os amantes que chegaram muito tarde

tarde demais na vida um do outro e por isso agora sabemos

que entre sombras e fantasmas para nós o tempo acabou







12.11.2018


(Ilustração: Roberto Ferri)











15 de dez. de 2018

os urubus







houve um tempo em que deram olhos de águia

a alguns urubus



houve um tempo em que deram asas de águia

a alguns urubus



houve um tempo em que deram garras de águia

a alguns urubus



e esses urubus armados dos olhos agudos das águias

e esses urubus armados das asas velozes das águias

e esses urubus armados das garras potentes das águias

descobriram com seus olhos os inimigos

perseguiram com suas asas os inimigos

estraçalharam com suas garras os inimigos



no entanto mesmo com olhos e asas e garras de águia

esses urubus não deixaram de ser urubus

e logo estavam todos se banqueteando da carniça

e mesmo com toda a acuidade de seus novos olhos

e mesmo com toda a beleza de suas asas nobres

e mesmo com todo o poder de suas tremendas garras

estavam todos logo logo tão sujos e tão fedidos

quanto são sujos e fedidos todos os demais urubus



27.10.2018


(Ilustração: Nicole Sanderson)



13 de dez. de 2018

os burgueses





pelas ondas do rádio o som do piano

invade a noite e transporta-me para

aquele tempo distante perdido nas

montanhas de minas o menino descalço

a descer à noite a rua comprida e torta

conduzido pelas mãos da mãe sob a luz

da lua à luz baça dos postes de ferro

a iluminação pública que deixa sombras

nas calçadas mal cuidadas que margeiam

os casarios baixos de janelas enormes

as ruas quase desertas e já silenciosas

o passo firme da mãe que rezara

a noite toda e do menino descalço

as pedras da rua ferindo seus pés

o cansaço do dia a escola no dia

seguinte bem cedo o café ralo o pão

seco os cadernos ajuntados na pasta

e então de repente a luz que ofusca

da janela enorme do vetusto casarão

ilumina a rua e o menino de olhos

vidrados o jorro de luz de brilho o som

de um piano dentro da noite pessoas

que falam que riem tilintam copos

de bebidas caras o vinho tinto a taça

enorme cheia de frutos boiando o

ponche servido às mulheres cheirosas

o frio da noite não tem ali guarida

só os pés do menino descalço na

calçada fria olhando tudo aquilo no

espanto dos olhos o brilho da festa

o calor do riso dos corpos burgueses

eles os burgueses lavrenses que riem

e se divertem dentro de seus ternos

de casimira inglesa bem cortados

suas gravatas borboleta os decotes

dos longos vestidos das mulheres

a saúde burguesa entrevista à luz

dos janelões iluminados os lustres

de cristais polidos a música a dança

eles me desprezam esses burgueses

lavrenses me desprezam e nem sabem

que me desprezam com seu riso sua

festa suas bebidas caras e suas caras

de saúde e frescor e beleza eles me

desprezam e eu hoje aqui agora ao som

desse piano dentro da noite solitária

o mesmo piano burguês de outrora

e eu me lembro deles os burgueses

e eu também os desprezo e o melhor

de tudo é que assim como eles nunca

souberam que me desprezavam

eu também os desprezo anonimamente

solitariamente mas profundamente e

não quero que eles saibam e acho que

eles nunca saberão e é melhor assim

que eles nunca venham a saber

o quanto eu ontem e hoje os desprezo

desprezo-os pelo menino descalço

e pelo poeta solitário na noite fria

e esse desprezo não pode ficar

apenas na mente que sonha na noite

mas deve transbordar nos versos

nas palavras nos olhos de hoje

que não esquecem o desprezo deles

na fria noite distante de ontem

nas velhas montanhas de minas





8.11.2018


(Ilustração: Leszek Sokol)





11 de dez. de 2018

o que importa








acima das nuvens

eu sei

brilha o sol

e daí

o que importa

não é a luz

o que importa sempre

é a minha escuridão




27.10.2018

(Ilustração: Zdzisław Beksiński)



9 de dez. de 2018

noturno número 10







no meio da noite por trás das nuvens finas a luz da lua

o rendilhado etéreo das folhas da pitangueira acentua

num leve e sedoso balançar ao vento que vem do sul

o som do vento mal se ouve ao longo do gramado à soleira

da porta que se abre ao sonho e à esperança agora azul

que brota da fonte da memória para um lugar qualquer

no meio da montanha o caminho de pedra e o canto agônico

de um pássaro ferido ao qual se junta o ritmo sinfônico

dos meus pés nas pedras e do som pelo vento abafado

das batidas do meu coração em busca dos olhos da mulher

que uma vez iluminou à luz da lua este coração angustiado




26.11.2018


(Ilustração: Konstantin Somov - masquerade)



7 de dez. de 2018

SOBRE LIVROS E CHEIROS






Sempre que surge uma nova mídia, apressam-se os apressados de sempre a decretar a morte da mídia anterior. E, quase sempre, erram suas previsões. A morte da vez é a do livro impresso, que seria morto e sepultado pelo livro eletrônico, com o surgimento de leitores digitais. 

Tudo bem, o livro impresso em papel pode até vir a desaparecer algum dia, mas não exatamente por causa do surgimento dos aparelhos digitais que ainda precisam evoluir muito – e parece que estão evoluindo – para se tornarem totalmente confiáveis. Afinal, que bibliófilo confiaria que a bateria de seu aparelho vai continuar sendo produzida pelos próximos séculos? Com a sanha obsoletista da indústria, modelos e mais modelos diferentes acabam sendo produzidos em série, sem que o pobre leitor consiga acompanhar ou mesmo atualizar seu aparelho, como acontece com os telefones celulares, cujo obsoletismo atinge paroxismos impensáveis. 

Eu disse que o livro de papel pode desaparecer, isso porque as florestas estão desaparecendo, ou seja, a sanha humana de destruir o planeta pode chegar às bibliotecas, mas não poderá provavelmente impedir que, mesmo moribundo, os nossos queridos exemplares encadernados e devidamente cuidados permaneçam por muitos séculos além do pobre leitor digital, que precisará de transplantes constantes para novos “corpos”, para resistir à passagem do tempo. 

Tenho um aparelho desses, um Kindle, e aprecio a possiblidade que ele me dá de acesso a obras que, de outra forma, não teria acesso, ou pelo preço muito alto, ou por estarem esgotadas ou, mesmo, por não saber onde encontrá-las. No entanto, se dentro dele já conto com mais de uma centena de livros que carrego para onde vou, coisa impossível se fossem exemplares de papel, também me preocupo com a fragilidade do aparelho, com a falta de energia elétrica para carregar de novo a bateria, com a duração mesma dessa bateria. 

Mas, não é exatamente disso que gostaria de falar, quando se trata de assunto tão atual, complexo e que provoca longas discussões. Sem dúvida, há vantagens e desvantagens em ambas as mídias, e ninguém está seguro de qual lado da balança tem mais peso. Há, no entanto, algo que os aparelhos digitais não têm nem terão nunca: o cheiro. Na sua anódina existência plástica e metalizada, há uma total impessoalidade odorífera. Ninguém cheira um Kindle, a não ser que ele tenha caído em algum lugar fedorento e necessite de uma boa higienização. Ninguém lembraria um momento esquecido no passado, ao cheirar uma tela ligada a um toque, no seu absolutismo existencial de ser apenas aquilo que é, uma tela feita de algum material que não sabemos bem o que é, mistura de plástico e outros materiais, definida por alguém para ser daquela exata tonalidade, totalmente inerte a nossos sentidos. Muito diferente, portanto, da página de papel de um livro, que tem um toque pessoal, ou seja, cada livro tem sua aspereza ou sua maciez característica e única e, principalmente, tem o seu cheiro, diferente de qualquer outro, personalíssimo, como uma impressão digital, de um ser vivo, ou que já foi vivo e parece trazer em si uma história que vai além da história do próprio homem. 

Exagero? Tente, então, caro leitor dessas loucas palavras, cheirar um aparelho digital e compare com o cheiro de um livro. Um querido amigo meu, cuja falta sinto até hoje, depois de vários anos, tinha por hábito levar ao nariz todo e qualquer livro que lhe caía nas mãos, mesmo antes de saber do que ele tratava, se era um romance ou um livro didático. Era essa relação íntima, de cheirar um amigo, de cheirar o que se gosta, que o livro nos proporciona. Nossas narinas são um órgão muito especial: guarda cheiros de que nem nos lembramos mais e nos fazem sonhar quando os respiramos de novo. E há cheiros inauditos, cheiros improváveis, cheiros de tempos e de memórias de que não desconfiamos que estão ali, guardados, catalogados, prontos para nos transportar para momentos esquecidos e, às vezes, jamais relembrados, mas que nos emocionam e nos fazem encher de lágrimas os olhos ou nos provocam um sorriso nos lábios. 

Ah, os cheiros... Veja bem que estou falando de cheiros, não de perfumes, que esses, os perfumes, são cheiros que pertencem a categorias especiais de especiarias e requintes reportados por alquimistas e químicos, artificializados por pesquisas e experimentos. Já os cheiros, e dentre eles os cheiros dos livros, são categorias espontâneas e volúveis, não provocadas, naturalmente captadas por nossas narinas e devidamente registradas por um determinado acontecimento ou momento de que podemos nos esquecer, sim, podemos esquecer o momento e o acontecimento, mas não podemos esquecer o cheiro daquele momento ou daquele acontecimento. E tantos são os cheiros que nos perseguem pela vida afora quantos são os livros que lemos, mas enquanto estou aqui a falar de cheiros, e lembrando de quantos cheiros está povoada a minha lembrança olfativa, quero terminar dizendo, por isso mesmo, por causa dessas tantas lembranças, que, se tirarem as crianças da sala, posso aprofundar o assunto para outras áreas tão ou mais prazerosas que a leitura.





6.12.2018 




(Ilustração: Alexander Bartashevich,1966, Belarusian)






5 de dez. de 2018

mis ojos son tus ojos




eu vejo o que tu vês

tu não vês o que eu vejo

eu vejo o sangue nos olhos

do povo que espera o que não virá

eu vejo o que não virá

no espanto de cada fome e de cada espasmo

e tu

tu só vês o que está escrito no livro

que diz coisas que ninguém come

tu só vês o invisível

tu não vês o que eu vejo

eu vejo a tripa roncando à bala perdida

eu vejo o pé descalço pisando brasas

eu vejo o olho arregalado no estampido

da última bala do soldado morto de medo

eu vejo o beco e corpos que se entregam

e tu o que vês

apenas encostas a cabeça no teu travesseiro

erguendo preces a um deus que não te ouve

vês o arrependimento forçado no dízimo

que encherá de vazio a panela dos teus adoradores

tu não vês os barracos de chão batido furados de bala

por onde entra o facho do medo nos transes da madrugada

tu vês o lucro

tu não vês o logro que eu vejo em cada palavra que tu dizes

para o penitente que agoniza ao assinar o cheque para o teu deus

e te tornas o agente de todas as pestes que sobem dos esgotos

tu não vês o que eu vejo e mis ojos son tus ojos somente nos dias de chuva

quando a lama desce do morro para o teu copo de uísque

tu fazes a festa e a feira e a farra de dólares suíços cheios de sangue

e eu vejo exatamente o que tu és

e eu vejo exatamente o que tu não vês

e eu vejo que isso absolutamente não importa para teus planos

porque não sou nada e tu és aquele que tem a caneta e o decreto

na mesa de mogno de onde disparas teus mensageiros engravatados

para semear tua palavra podre e arrecadar pelo mundo mais asseclas

que irão fazer de ti o que tu nunca foste o potentado de deus

a esbanjar ouro que tiras do nariz para encher tuas astronaves

buscas apenas o rio jordão dos pesadelos de quem paga

aquilo que eu vejo agora mais do que nunca em teus delírios

à passagem de teu cortejo sobre os corpos mortos no esgoto

y tu ojos non son mis ojos pois a tempestade lavou para sempre

a retina de meus olhos que agora cegos apenas podem chorar





25.11.2018 


(Ilustração: Henrique Alvim Correa)


3 de dez. de 2018

lua cheia






à luz da lua cheia eu sinto o cheiro do vento

na serra da mantiqueira entre pedras e musgos

mesmo estando agora deitado em minha cama

a centenas de quilômetros de seus picos e vales

e somente à força da imaginação minhas narinas

se abrem ao cheiro de mato e ao cheiro de terra

pisando as flores do caminho que se constrói

na medida dos meus passos de poeta da cidade

que há muito perdeu o jeito matreiro de andar

sob a lua que flutua sobre a sombra dos vales

deixando um rastro de saudade em cada tropeço

porque sangra ainda o meu coração na lembrança

de amores distantes perdidos na serra da mantiqueira









22.10.2018 

(Ilustração: Samuel Palmer)

1 de dez. de 2018

ignorância









você sempre sabe

de onde a bala sai

o que você não sabe

é aonde a bala vai





27.10.2018


(Ilustração: Fernando Botero)