23 de dez. de 2018

sonhos congelados







bebe tua cachaça velho bebe

aí sentado no banco alto do

bar imundo bebe o cotovelo no

balcão os olhos baços procurando

talvez a última prostituta que

ainda queira fazer contigo o

último programa da noite

bebe teu veneno que te protege

dos teus fantasmas e do teu

passado ninguém se importa

mais contigo se tiveste sonhos

estão todos agora congelados

neste copo imundo por onde

passaram patas de barata durante

a noite passada bebe velho o teu

veneno que não é esta cachaça

vagabunda que desce queimando

tua garganta teu veneno velho

é a tua vida mal levada e mal

lavada pela chuva que cai ali

fora e leva de enxurrada um

monte de besteiras que carregas

nas rugas de teu rosto roto e o

rato que viste agora há pouco

passando pelo fundo do bar

não é fruto da tua imaginação

mas é sim fruto de teus sonhos

frustrados a calcinha roxa da

puta sem dentes que sorri para

ti do outro lado do balcão e tu

sabes que tua vida escoa pelo

bueiro como a chuva e teus

desejos têm a mesma consistência

da carne do rato que viste há

pouco não te iludas velho e

bebe do teu copo ainda pela

metade enquanto tua vida já

é o copo vazio da tua solidão

teus dias são tão vazios como

tuas noites e teus desencantos

têm o mesmo tom soturno das

nuvens que despejam o aguaceiro

lá fora e este bar imundo é teu

último refúgio o teu último

porto de uma metáfora já gasta

como o teu trajeto para a cama

imunda onde te aguardam as

tetas murchas e as carnes

nauseabundas de tua última

companheira para cumprires

nesse banquete de urubus os

gritos e gemidos derradeiros

dos teus sonhos congelados





7.11.2018

(Ilustração: Bernard Buffet - 1928-1999)




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