30 de nov. de 2017

pelas ruas do jabaquara



(Avenida Jabaquara, São Paulo/SP: fotografia de 1928)







perambulo pelas pirambeiras do jabaquara

suas ruas tortas de calçadas com degraus

caminhos esburacados de negros passados



vou só comigo mesmo deixando a cada passo lento e largo

as marcas de uma saudade que vem de longe

cada gota de suor de meu rosto pinga uma lembrança

de tempos outros de um menino que teima não crescer

dentro de mim e os passos perseguem rumos que não tracei

para minha vida perdida pelas pirambeiras pétreas do jabaquara




7.5.2017

29 de nov. de 2017

sonho





(Pablo Picasso)



uma noite qualquer de verão quando tilintavam estrelas no brejo

e os grilos cantavam sob as tábuas podres do assoalho da sala

o sonho subiu à sua cama e deitou com você sob o fino lençol

arrepiou suas costelas tocou o seu sexo e alisou seus cabelos

assenhoreou-se de seus desejos mais intensos e olhou bem fundo

no fundo de seus olhos que refletiam a febre de seu coração

aspirou o ar de seus pulmões e possuiu o seu encanto

sem lhe pedir licença e sem ao menos tentar um gesto de conciliação



você fechou as pálpebras e entregou-se a ele num assentimento

de cordas de violino ao arco que domina e as faz vibrar

sem nada pedir que não fosse o sossego infindo de ver estrelas

sob as mangueiras o verme rastejava em busca de sua língua

e os pássaros bicavam frutas azedas dentro de ninhos escuros

as vozes da noite vinham em arremedos de contágios e angústias

e o sonho arrebentou todos os segredos que você guardava

e num gesto supremo de prazer e pranto você nunca mais

desenhou estrelas em capas de livros nem desejou o fruto maduro

que o pássaro afoito deixou cair sobre seu leito vazio


12.9.2017


28 de nov. de 2017

quilombos




(Sítio da Ressaca - Jabaquara, São Paulo/SP)




lento o tempo quando vento ameniza

e em brisa transformado reveste a pele

de arrepios desveste o pólen revisitado

da abelha a estrela ao longe entorpece

o riacho que corre logo abaixo da estrutura

de ferro e cimento por onde escorre o sangue

dá ligadura ao espaço que outrora servia

o braço escravo a escavar a rocha e ancora

a serventia do navio no jardim o cravo

que brota a rosa que perfuma a profunda grota

o mar que espuma o navio fantasma a lavra

o sangue negro o povo exangue a palavra

não basta não chora mais o poeta emplasta

o chão de versos no espanto o meu pranto

não aplaca o tempo ao vento o sítio da ressaca


5.8.2017



27 de nov. de 2017

mundo novo




(François Boucher)




ventem-se todos os ventos

chovam-se todas as chuvas

sofram-se todos os dissabores

afoguem-se todas as esperanças

o coração continuará batendo

os olhos permanecerão acesos

os pés chutarão as pedras

o tempo virá para cada um

trará o acerbo conhecimento

a vida eliminará o caminho

nascerá assim o mundo novo

quando as armas permanecerão na forja

e as balas serão confeitos de padaria







7.1.2017

26 de nov. de 2017

tu





(Eliseu Visconti) 




impregne minha pele o teu perfume

construam rotas no meu corpo os teus beijos

sejam de veludo os passos que deixares em minha vida

quero o teu cheiro

quero as tuas marcas

quero os teu caminhos

impregnem minha vida os teus sentidos

construam pontes sobre o meu desejo os teus anseios

permaneçam nas minhas veias os teus sucos

quero os teus fluidos

quero os teus suspiros

quero os teus futuros

trafeguem os teus orgasmos por minhas muralhas

mudem-se em fontes os meus abalos e incertezas

transcendam em suores nossos momentos e prazeres

quero de ti

o profundo sentido da vida

quero de ti

o profundo sentido do amor

serás o orvalho que alimenta a semente

serás o espaço preenchido do vazio da minha vida

e só o que poderei deixar-te são esses versos tortos


1.9.2017



25 de nov. de 2017

vida humana





(Artemísia Gentilesch - Jael and Sisera)




viaja a vida humana no tempo e no espaço

pulsando nas veias e no bater de compasso

do coração e nas sinapses de raio

do cérebro o corpo correndo como um cavalo baio

pelas campinas e vales que levam à morte

viaja a bala no tempo e no espaço de sul a norte

impulsionando as ondas de ar e de fogo

do cano ao corpo humano como num jogo

em que não há campos nem vales no trajeto

e quando na noite tudo está parado e quieto

a vida humana não vale o chumbo que ela carrega

no tempo e no espaço ocorre a derradeira entrega





15.7.2017



24 de nov. de 2017

um assassino






(Edvard Munch  (1863-1944, Norway) - L Assassin; 1910) 




há um assassino à solta



a criança que corre

atrás da bola

tropeça e cai



há um assassino à solta



a moça de tiara folheia

no banco da praça

a revista de moda





há um assassino à solta



a senhora de bengala para

um instante e olha

se vem carro



há um assassino à solta



o entregador de pizza

confere o endereço

antes de apertar a campainha





há um assassino à solta



o pedreiro estende o fio-prumo

e assenta o último tijolo

antes de ir para casa





há um assassino à solta



o jovem empresário aciona

o portão automático

da garagem e buzina



há um assassino à solta





há um assassino

um assassino

assassino

à solta

o assassino





22.3.2013

23 de nov. de 2017

mistério da poesia




(Gustav Klimt _-_Wasserschlangen)







sinto o mistério da poesia na ponta de meus dedos

quando bato nas teclas do computador

letras que formam palavras

palavras que formam frases

frases que formam poemas

poemas que desvendam meus medos



sinto o mistério da poesia no fundo de meus olhos

quando vejo o mundo ao redor

o azul do espaço

tons de verde de heras e arvoredos

irisadas asas

peles que brilham



sinto o mistério da poesia quando ouço o riso de meu neto

sinfonias de beethoven

o choro do arroio ao vento da montanha

o pio da coruja e o marulhar das ondas

os passos na areia



sinto o mistério da poesia quando o vento traz perfumes de jasmim

de café quente com broa de milho assada em fogão de lenha

o cheiro de terra à primeira chuva da primavera



sinto o mistério da poesia quando em minha boca a jabuticaba

tem o mesmo gosto dos sumos do teu corpo

onde o doce amargo se desdobra em sal

e o prazer tem rugosidades de laranja em calda



e se me perguntas o que é poesia

sei apenas que cultivo o mistério

provo de seus encantos

desespero de seus desencontros

misturo-me aos prazeres sentidos

para achar em cada palavra que escrevo

não a poesia que se me escapa

mas a vida que vibra em mim

apenas porque tu existes



14.11.2017










22 de nov. de 2017

envelhecer





(Armin Mersmann - hyperrealistic eye)



envelhecer é pois colocar o ato de urinar

como o fato mais importante da vida

os sabiás cantam mais e melhor durante as madrugadas

cheiro de flores lembra hospitais lotados

o espaço e o tempo unem-se afinal como disse um cínico

que se uniriam o decote e a barra das saias das mulheres

talvez os ventos que sopram mais fortes

tragam tempestades noturnas

ou chuvas de granizo pelas tardes inúteis

paredes úmidas provocam rinites

enquanto se espalham pelo ar putrefações de cemitérios

o doce delírio em compotas amargas

faz do tempo de hoje o esboço do passado

jogam-se dados à sombra de alamedas

forradas de flores de azáleas

a morte espreita sob os bancos dos jardins

ah as madrugadas insones de tantas incursões ao banheiro

sente-se rondar o perigo quando as tardes de futebol

do domingo perderam afinal a graça

os dançarinos deixaram de olhar-se nos olhos

no tango horizontal de camas redondas em sórdidos motéis

há cheiro de adeuses nos frutos da pitangueira

noites inúteis noites de olhos espantados

talvez seja só isso a vida e nada mais



11.11.2017




21 de nov. de 2017

bloco concreto



 (Piet Mondrian)




um dia de garoa sem garoa

desprendeu-se de um espigão na avenida paulista

um big bloco concreto

bem no meio do caminho

bem no meio da passagem das pessoas

lá ficou o blocão desprendido

que foi medido

e conferido

observado

e fotografado

chutado

e xingado

comentado

e elogiado

cuspido

e escarnecido

por bancários e banqueiros

por funcionários públicos e escriturários

gente pobre e gente rica

jogador de futebol e padre de batina preta

até o cãozinho da madame não se furtou

a um xixi rápido de perninha levantada

tudo inútil

no meio da passagem das pessoas o blocão concreto

o bloco concretão

até que alguém

talvez um prefeito

um alcaide cioso de sua cidade

um vereador querendo publicidade

um dono de banco preocupado com a passagem obstruída

impedindo o livre tráfico do seu dinheiro

sei lá quem

alguém

foi lá e empurrou não sem muito esforço e com a ajuda

de um trator

o danado do blocão concreto

para um canto da avenida

que não estorvasse o dia a dia da cidade

na avenida dos paulistas da garoa



a garoa sumiu

o corinthians ganhou o campeonato

o padre jogou fora a batina preta

os casarões foram demolidos

mais espigões foram erguidos

o povão empobreceu e depois enriqueceu

e tornou a empobrecer

e até mesmo se acostumou

ou mesmo nem viu ou nem mais percebeu

que lá ficara o blocão concreto

o bloco concretão

ao vento

à chuva

à poeira dos carros

à poluição dos fumantes

servindo de vez em quando de púlpito

para o pregador de bíblia na mão

e lá o blocão concreto

em seu canto todo quieto

sem nada nem ninguém

que o cobrisse ou cobrisse

suas vergonhas

de vez em quando alguém

chega até ele

limpa um pouco o seu limo

tira umas fotos

publica no jornal

reclama no facebook

que paulista não tem memória

e fica tudo por isso mesmo



o blocão

não sai do lugar

não fala

não tuge nem muge

ou se tuge e muge

ninguém vê

ninguém ouve

fica lá

mudo e surdo

cego e tonto

como um blocão concreto deve ser

para sempre

sempre

sempr

semp

sem

se

s

.

.

.

sem saída



24.10.2017










20 de nov. de 2017

povo preto





(Makiwa Mutomba - Zimbawe)





funéreas vidas de meninos e meninas pretos os olhos de fuligem

de querosene a poesia branca preteja e procura o próximo capítulo

escrito nas pegadas da areia negra a página em branco tem pintas

pretas que nada dizem faço poesia de branco e penso no povo preto

do meu país penso em áfricas perdidas sonhos palacetes de palafitas

provisórias sobre rios de merda e lodo o rádio tocando uma sinfonia

de mahler frère jacques a marcha fúnebre transporta meu pensamento

de joão joaquim para a jaqueria meu povo preto jamais jogou no time

dos jacques afogado que foi em sangue jorrado de sob o chicote branco





13.5.2017









19 de nov. de 2017

SOLIDÃO, CONHECE-A?



(Pablo Picasso; absinthe drinker)





Sabe a solidão? Aquela coisa

que nos paralisa quando

bate no peito

e nos deixa no chão

como se de repente desfeito

em nada, em dor, em tristeza,

arrebenta o pobre coração

e com destreza destrói

cada fibra, cada veia? Pois, é:

a solidão!

Fria, invisível,

insensível como as cordas

de um violão,

um violão esqecido num canto,

coberto de folhas mortas...

É, essa mesma, a solidão

que você conhece e despreza,

aquela que frequenta os versos

de poetas e de candidatos a poetas,

como toda musa que se preza,

é ela, sim, que aquece

a chama de nossa derrisão...

A velha, boa - e maldita -

solidão: o estar mais só

do que num túmulo,

aquela que não tem dó

de nossas possibilidades de angústia,

e aperta na garganta um nó

que não desata,

musa discreta e barata

a tingir de cinzas o dossel

sob cujas franjas nos acolhemos,

a solidão, sim, a solidão,

essa mulher que nos toma

em braços e enlaços e embaraços

para jogar-nos numa espiral

de vento, de pó, de nada...

essa a solidão de que falo,

essa a solidão que a todos maltrata...

tenho-a em alta conta, sim,

mas não dentro de mim,

que convivo muito bem comigo

e não a convido nunca

para o meu festim...


(26.7.2012; 30.7.2012; 13.10.2012)

18 de nov. de 2017

urgência




(Georges Seurat)




dá-me às vezes uma urgência

de escrever um troço qualquer

que crie asas como um poema



penso duas vezes antes que

a folha a folha branca se preencha

com meus garranchos de sangue





12.12.2014


17 de nov. de 2017

o relógio








havia um relógio de parede na casa da minha tia

seu pêndulo monótono marcava os dias rápidos

da minha meninice

mas eu não sabia disso



na sala de móveis antigos

a mesa e as cadeiras compunham um cenário

de decadência e velhice

mas eu não sabia disso



o relógio de pêndulo monotonamente marcava

as horas fugazes da minha juventude

como um profeta de Poe sobre as sombras da noite

mas eu ainda não conhecia o Poe



o relógio da sala de jantar da casa velha da minha tia

marcava no seu monótono tiquetaquear

as horas felizes e fugazes da minha vida ali

mas eu nem desconfiava dessa fugacidade



as horas monótonas que o relógio de parede da casa da minha tia

marcavam no seu lento vai e vem

eram horas que não sabia que

iriam se acabar assim tão depressa



na janela da casa vizinha a minha amada não acendia a luz

e eu esperava inutilmente que as horas passassem

e as horas passaram tão fugazes como as fases da lua

mas eu nunca consegui saber nada disso



aquelas noites em que o relógio de parede da casa da minha tia

marcaram finalmente a meia noite eu só acordei

sessenta e dois anos depois

e mesmo hoje eu ainda nada sei da fugacidade do tempo

e só sei que um relógio de pêndulo da sala de jantar

da casa da minha tia foi um dia o movimento perpétuo

de um tempo que voou nas asas do corvo

espantado pelo toque da meia noite do relógio da casa da minha tia

voou do meu peito

voou da minha vida

ela a minha namorada que foi embora

não voltou jamais

e o tempo daquele relógio não volta

não volta mais

nunca mais

nunca

não


14.2.2017



16 de nov. de 2017

meu tempo




(Roy Lichtenstein - Kiss V)




não

não vou em busca do tempo perdido

caminhando penosamente por tortuosas vias



vou em busca do tempo vivido

rápido raio a rasurar meus dias

o tempo devidamente aproveitado

em cada dobra de coxa ou relevo de seio

o tempo de tremores e alucinações da carne

ao vento vário visitando madrugadas

o anseio de beijos em constantes amanheceres



não

não quero revisitar tempos que perdi

em inúteis atos de embolsar fortunas que não tive

quero as dobras de lençóis marcando minutos

na espera de esplendores ansiados e revelados

quero a maciez de peles renovadas

quero a tepidez de braços enlaçados

esse o meu tempo a ser revisitado

um tempo às vezes esquecido

a qualquer olhar reaquecido

um tempo ido e vivido nas noites insones

da fria pauliceia de encantos e desesperos


12.8. 2017

15 de nov. de 2017

roupas no varal





(Volpi)





uma coisa do cotidiano que me emociona

que gosto de olhar

de contemplar

são roupas estendidas ao sol num varal



principalmente se são roupas coloridas

bandeiras ou folhas de bananeiras

irregulares

tremulando ao vento presas a um fio



trazem à minha memória cheiros de limpeza

tardes mornas de sol

mangueiras agitadas ao vento

tico-ticos catando minhocas na terra úmida

o cheiro da terra úmida

de chuva mal chovida

pipoca pulando na panela ao fogo de lenha

água correndo na bica

coisas assim tão comuns as roupas no varal

são signos do banal da vida e do tempo

ali penduradas a secar depois de lavadas

são a nossa própria vida a secar ao sol

pronta a ser de novo vestida

pele de cobra que não se joga fora

que se veste de novo sempre limpa um pouco da última poeira

aviso de que há gente talvez humilde talvez pobre

gente como a gente gosta de pensar que é

e gosta de ser quando se é



roupas no varal

mais metafísicas só o meu encanto de olhar



25.10.2017



14 de nov. de 2017

palafréns




(Paul Delvaux - aurore-1964)




século XVIII

corre a carruagem pelo campo

rompendo a custo a estrada de lama

puxada por dois fortes cavalos

estala no ar o cocheiro ao chicote



dentro dela a dama de preto

esconde o rosto atrás do véu

seu seio sobe e desce no decote

e seu copo todo estremece ao anseio

do que a espera no castelo da montanha



século XXI

corre a ferrari pela autoestrada

rompendo a distância como o vento

roncam potentes cavalos no motor

estalam no ar as gotas de chuva



dentro dela a dama de jeans

aspira com prazer o ar da noite

seu seio sobe e desce no decote

e seu corpo todo estremece ao anseio

do que a espera na grande casa da fazenda

7.1.2017



13 de nov. de 2017

Um lugar para viver



(Almeida Júnior) 





Quero um lugar para viver,

onde eu não acorde ouvindo

latidos de cães,

freadas de automóveis,

brigas na rua,

discussões de vizinhos,

estampidos de tiros,

gritos desesperados,

motores zumbindo

sobre minha cabeça.



Quero um lugar para viver,

onde eu possa acordar

ouvindo o canto do bem-te-vi,

porque só os pássaros entendem

os amanheceres

de quem os viveu todos

e, agora, quer apenas

abrir os olhos e sonhar...



Quero um lugar para viver,

onde eu possa acordar

ouvindo no rádio

um concerto de Brahms,

porque só a música encanta os dias

de quem já os teve todos

sob a sola do sapato

e agora quer apenas abrir os olhos

e deixá-los dançar...



Quero um lugar para viver,

onde eu possa acordar

com sorriso de neto

a fazer folia na cama,

porque só as crianças entendem

o despertar de quem viveu

quase tudo o que a vida lhe deu

e enchem de esperança

o breve futuro

de quem espera o anoitecer.



Quero, enfim, um lugar para viver

o resto dos dias que tenho na terra,

com a calma certeza de que o mundo,

embora trágico, embora difícil,

entendeu os passos derradeiros

do - agora - lento, muito lento,

caminheiro em busca de paz.



sp/30.5.2012; 13.10.2012

12 de nov. de 2017

na serra da Mantiqueira





(Rose Naiana Bregolato Bossle - Terras Altas da Serra da Mantiqueira)




gosto de caminhar

e olhar

para trás e ver

a marca de meus pés

na poeira

na poeira do caminho

na Serra da Mantiqueira



porque é assim que deixo

na poeira do caminho

o traço da minha vida

ficam marcas finas marcas

dos passos lentos

que o vento

o vento frio da Serra da Mantiqueira

vai apagando

aos poucos aos poucos aos poucos


13.5.2013

25.5.2013

11 de nov. de 2017

mirífica vênus




(Roberto Ferri)





não como botticelli mas à caravaggio queria pintar

a deusa que sai dos meus lençóis

desperta dos sonhos de espumas

num mar de amores lícitos e ilícitos

feérica imagem formada em meu delírio

a pele iridescente à luz do néon

redondas formas em correta composição

longilíneas pernas bem torneadas

nádegas e seios e o ventre liso

do qual desponta a pérola rósea

de meus desejos mais profundos

vênus de múltiplos deuses enfim vencida

ao prazer total de meu enlace

renascida sempre de meus braços

para a vida e a fonte que para ela

se abre em flor e em caminhos degredados



8.2.2017



10 de nov. de 2017

naufrágio




 (Joseph Mallord William Turner -The Wreck of a Transport Ship) 





fez-se pranto o que alegre parecia

e toda a tarde clara virou noite escura

o navio que em mar calmo navegava

nos escolhos bateu e foi ao fundo

náufragos rotos e cansados ao fim de dias

às ilhas desertas enfim chegaram

dali ergueram as mãos aos céus

e aos deuses agradeceram o terem sobrevivido

porém os deuses de tais marujos famintos

desde tempos remotos deixaram de existir

e não lhes importou que sobreviessem

tempestades e terremotos e tsunamis

que as ilhas todas ao derredor afundaram

não restou dos sobreviventes do naufrágio

um só corpo para testemunhar a história

e assim fez-se pranto mais uma vez

aquilo que em esperança parecia renascer

que sirva então de moral a todos que esperam

a vida feliz sem ter da mesma um tanto de luta



21.1.2017


9 de nov. de 2017

lei da convivência número 6







deixa em paz a vida do teu vizinho e da tua vizinha

o que fazem ou deixam de fazer não é problema teu

a tua vida já tem problemas demais para te preocupares

com o que se passa na casa e na alcova dos outros



parágrafo único



execrem-se todas as cartas anônimas

postas a queimar em fogueiras públicas





26.9.2017


(Ilustração: Isabel Mahe - anonymous letter)




8 de nov. de 2017

TRÊS CANÇÕES




(Gustav Klimt; The Tree Of Life)





Canção da pedra:

Sê pedra, posto que minério

em cujos veios o tempo guarda

eras primeiras de primeiras dores;

está pedra, posto que caminhos

em cujos passos marca o tempo

primeiras auroras, primeiros sonhos;

faze-te pedra, posto que silêncio

e em silêncio permanece a pedra:

sem dor, sem tempo, sem sonho.



Canção da folha:

Não te importe de onde venha a brisa,

balança ao vento como se folha fosses.

Enquanto passa o vento, se não resistes,

verás que há um depois antes do fim.

Folha, não te importe o calor do sol,

que ao processo de te tornares verde

acrescentas vida que te dará força.



Canção da asa:

O sumo que sugas mata quem te hospeda

e seca o caule que te alimenta: destino, apenas,

a transformar em asas o que vem da terra.

Do vento que te leva à pedra que te abriga,

serás apenas o traço que se apaga e se renova

a cada aurora, sofras ao vento ou seques ao sol.


21.4.2014




7 de nov. de 2017

o hospital é sylvia plath



(Valquíria Cavalcanti)







traduzo sylvia e piro

quero escrever assim quando crescer

mas não quero sofrer assim quando viver



salto no tempo da memória

para achar que deus é hospital

tão louca a vida e era ela a louca

maura lopes cançado



salto no tempo de outrora

para buscar meus encantamentos

e encontro apenas acasos

a flor murcha do mandacaru depois da chuva



por que lembrar o que não quero?

por que escrever apenas o que dita a razão?

por que seguir fantasmas e almas mortas?

por que fazer perguntas que já têm respostas?



lá em washington obama adoça seu café

com duas colheres de açúcar de cuba

acende um charuto presente de fidel

e diz que o mundo ficou melhor



142 crianças - talvez mais, muitas mais -

que estudavam numa escola do afeganistão

são recebidas pelas virgens do alcorão

no céu encomendado pelo talibã



agora ouço que uma criança acabou de morrer

em belo horizonte trancada ao sol dentro do carro

e o papa afirmou que cachorro tem alma e vai para o céu

as crianças do talibã ficaram ainda mais felizes



o mundo gira e meu cérebro repuxa de dor

não quero encontrar a sylvia nem a maura

quero gritar o meu quase desespero

sem precisar derramar lágrimas



salto de novo no tempo da história

e olho meus companheiros de outrora

os que sobreviveram e o outros tantos que morreram

e não há o que fazer quanto a isso



se ainda tenho estrada à frente

tomo consciência de que o caminho está mais lento

e em breve acaba - preciso calcular cada passo

e devo evitar as pedras e os espinhos



fugiram-se-me os encantos do recomeço

ficaram os encargos das pílulas e dos colírios

se abraço à noite meu travesseiro

é para evitar pesadelos e mau despertar



traduzo poetas que arrostaram o medo

e reviraram as vísceras

tenho deles apenas o estranhamento

de tentar viver o tempo que ainda me pertence


s.p./20 de dezembro de 2014.



(Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, no podcast cujo link é:

6 de nov. de 2017

mulheres por quem chorei




(Pierre Bonnard - Jeunes Femmes Au Jardin)




todas as mulheres por quem chorei:



primeiro, por minha mãe - depois

que ela muito por mim chorou -

quando morreu





segundo, minha irmã, linda e mãe

da terceira mulher por quem chorei:

sua filha, tão jovem quanto a mãe,

quarta geração de seu amor;



quarta... a quarta mulher por quem chorei...



não, vou enumerá-las mais

foram tantas e tantas amigas

jovens amigas, velhas amigas,

amigas,

consoladoras que não viveram o tempo

de consolar

meninas, mulheres ou simplesmente

as que a vida me fez conhecer e amar



foram muitas as mulheres que amei



e foram todas as mulheres por quem chorei

as que se foram, sim,

que não sei hoje quantas,

quantas ainda ficaram para

- quando eu me for, enfim -

derramarem pelo menos

uma lágrima por mim





8.3.2013

5 de nov. de 2017

humanos




(Caravaggio)





cinco linhas cruzadas

uma estrela



dois triângulos equiláteros superpostos

um símbolo



jogamos sinais ao léu

e matamos e morremos

por eles



estúpidos seres que se dizem racionais





21.10.2017

4 de nov. de 2017

preguiça dos dias





(Almeida Júnior)




deixa-me viver em meu canto

o tempo que ainda tenho por viver

não me tire a zona de conforto

sem me oferecer algo em troca

algo que seja de tal forma compensador

que torne meus passos o prazer da manhã



toca-me o peito a preguiça dos dias

dos muitos dias de premência e fuga

quero agora a certeza do galho firme

onde pouse meu últimos anseios



dá-me pois não as esperanças

mas as certezas de que preciso





7.10.2017



3 de nov. de 2017

PEDIDO AO TEMPO





(Foto de Fátima Alves: tipuana)




Amigo, faça-me um favor:

vá até a velha cidade perdida,

há lá uma praça, na praça uma tipuana,

suba a alameda ao lado dela

logo depois do coreto,

à sua esquerda: um banco, talvez seja um banco novo

- não importa -

faça de conta que é o velho banco de cimento

de assento curvo e o nome do doador

já quase apagado, no encosto;

vá lá, por favor,

você ainda vai encontrar um pequeno grupo

de rapazes

todos muito jovens, todos muito pobres,

todos repletos de esperanças.

Entre eles estou eu:

fácil será reconhecer-me,

já que sou o mais falante

e aquele que mais claro tem o brilho no olhar,

bata no ombro desse jovem - que sou eu -

e diga-lhe, diga-lhe para olhar para o alto,

para o alto das velhas palmeiras imperiais

e manter por alguns segundos o olhar

naquele céu recortado de folhas verdes,

para fotografar na retina da memória,

para sempre, aquela nesga de azul,

porque, amigo - e você deverá dizer isso a ele,

ao jovem que sou eu - que ele nunca mais

terá de volta aquele instante da mais pura

e efêmera felicidade.



25 de abril de 2012

2 de nov. de 2017

lei da convivência número 5









não definitivamente não precisas amar

o teu próximo

deves apenas e tão somente respeitá-lo



parágrafo único



ficam abolidas todas as formas de amor

que não sejam espontâneas



26.9.2017

(Ilustração: Auguste Renoir)



1 de nov. de 2017

CHANSON D’AUTOMNE / CANÇÃO DE OUTONO, de Paul Verlaine





(Gilbert Baubeau - Les violons de l'automne)



CHANSON D'AUTOMNE





Les sanglots longs

Des violons

De l'automne

Blessent mon coeur

D'une langueur

Monotone.



Tout suffocant

Et blême,quand

Sonne l'heure,

Je me souviens

Des jours anciens

Et je pleure.





Et je m'en vais

Au vent mauvais

Qui m'emporte

Deçà,delà

Pareil à la

Feuille morte.




(A. não identificado)




CANÇÃO DE OUTONO




Violões de outono

sangram minha alma;

não me acalma

o som do vento

que traz um lento

sofrimento.





Eu tanto imploro

quando recordo

doce idade

do meu passado

que ainda choro

de saudade.





E não me importa

quanto sofri

por aí:

como a folha morta,

levada ao vento,

também morri.





(Tradução de Isaias Edson Sidney)