29 de dez. de 2021

estranhos

 




estranhos num tempo estranho

trepam como gatos vadios

pelos becos escuros

agonizam seus orgasmos

nos trilhos retos de trens elétricos

brincam pelas matas ao som dos grilos

tosam seus pelos nos fornos siderúrgicos



são apenas estranhos num tempo estranho

espantalhos em campo de milho

braços abertos um para o outro

esquecidos agora de todos os antigos folguedos

a murmurar ao vento seus vazios segredos



19.6.2021

(Ilustração: escultura de Javier Marín)


26 de dez. de 2021

estranho olhar

 


 



pelos campos viceja o azevinho

enquanto no meu quarto a noite

enche o copo e o meu corpo de vinho

e a saudade bate o seu açoite

no peito ferido de estranhas paixões

cobrindo de sangue o pelourinho

onde deixo exangues impressões

de um tempo de luz e pavor

das noites e pernoites de desamor

entre pústulas de gozos esfomeados

no delírio torpe de meus espantos

no fetiche dos teus encantos

na cruz de fogo de teus abraços

enquanto nos campos o azevinho

decora de cores e vinho

o estranho olhar que tece os laços

da minha vida como a rede

que prende meu destino para sempre

na fogueira que arde sob a trempe

e com estrépito projeta na parede

a sombra do meu desejo perdido nas trevas

pelo olho com que me olhas e me entrevas



4.9.2021

(Ilustração: Alyssa Monks)

23 de dez. de 2021

estranha ferida

 



quero o silêncio do último canto do grilo

quero o silêncio do desabrochar da pétala de rosa

quero o silêncio do último suspiro

da corda de um violino na última nota do concerto

quero o silêncio do ponto no final de uma trova

quero o silêncio da lua nova

quando eu possa sozinho dentro de mim

exsudar de meus olhos em gotas de alecrim

o desejo de que um dia essa lua e as estrelas

surjam no céu das minhas tardes de espanto

e quando eu pudesse vê-las

através do meu pranto

que essas lágrimas dissessem de cada dia da minha vida

em que não pude mitigar

em que não pude curar

dentro do meu peito esta estranha ferida



2.11.2021

(Ilustração: Oswaldo Guayasamín - prisionero, 1949)



20 de dez. de 2021

estio

 






espero teus beijos como a terra seca espera a chuva

na manhã de qualquer primavera cheia de espantos



o desejo bate na vidraça da janela e quebra as asas

se tu não vens para fazer jorrar de novo a seiva

nos meus braços ressequidos



não haverá prímulas e avencas nos meus trópicos

não haverá sementes no meu chão crestado

se os teus beijos não choverem húmus

que alimentem dos meus desejos a espera

e tragam o tempero exato para a minha flor exausta

colorir outra vez de vermelho

o cair da tarde desencantada dos teus mistérios



sou teu deserto a esperar gotas mágicas

ainda que amargas

para o tronco seco ao bico do pica-pau



que se abram asas para o meu desespero voar

para trás dos horizontes

cruzar o arco-íris

e deixar no fundo do lago

os ossos inúteis dos corpos ressequidos



que se dispam de sonhos as tuas asas

e voem no silêncio dos ventos alísios

que chovam os teus beijos na pele arrepiada

a fazer renascer minhas esperanças imateriais

e declarar enfim que meu estio

findará no renascimento das águas do teu rio





25.4.2021

(Ilustração: Jindrich Styrsky - marriage, 1934)

17 de dez. de 2021

espanto

 



para que o espanto

seja o grão que alimenta

a vida

semeia-se o pranto

para colher a pimenta

ardida



nos olhos o futuro brilha

- onda que tudo arrebata

e no meio da tempestade a ilha

é porto seguro do tédio que mata



para que o espanto

seja oxigênio que se respira

não deixes que o canto

se torne a mentira

que se canta no dia a dia

- na manhã que se inicia

ergue o braço e inspira

o ar da esperança

busca a luz da verdade

não temas a mudança

que logo a liberdade

- sol imorredouro

será nosso tesouro



que seja o espanto

a erguer o seu canto

que seja nosso guia

para um novo dia




8.9.2021

(Ilustração: James Ensor - masks looking at a  tortoise - 1894)

14 de dez. de 2021

escolha (poema com pós-escrito inútil)

 






quando eu era jovem eu fui velho

agora que sou velho eu sou jovem

mas o corpo não sincroniza uma idade com a outra

não adianta ser isto ou aquilo

quando o jovem que se vê um velho

não viveu porra nenhuma

não adianta ser isto ou aquilo

quando o velho que se vê jovem

não tem no corpo porra nenhuma de vigor



(o exato sentido disto ou daquilo é ser o que se é sem correr atrás de ventos que não movem moinhos quando os moinhos não estão com suas pás na direção correta)



talvez seja besteira

talvez seja bobeira

pensar uma coisa e sentir outra

ou sentir o que não se é

o sentimento não muda a realidade

nem a realidade matura o sentir



ser apenas o que se é

talvez seja o elixir que está na taça da vida de cada um

e bebê-lo seja a única escolha



o pós-escrito inútil:

derramá-lo (ao elixir) é buscar o espanto

e nem sempre o espanto da vida

consegue trazer vida a um coração machucado




21.11.20121 (São Vicente / SP)

(Ilustração: escultura de Franz Xaver Bergman 
(or Franz Xaver Bergmann) - 1861–1936) 

11 de dez. de 2021

época da inocência

 





relendo edith wharton



numa sociedade convencional

as regras são muito claras

para o bem ou para o mal

à jovem a quem te declaras

nunca dirás que em ti se disputa

um sentimento de força tanta

que te leva a amar uma puta

mas te casas com uma santa



8.3.2021


(Ilustração: Berthe Morisot - devant le miroir -1890)


8 de dez. de 2021

epifania

 


sonhou e desejou tanto o poeta

uma epifania

que o tornasse um grande esteta

lido e apreciado por toda gente

que um dia

assim de repente

lhe surgiu

como um raio que fulgiu

no meio da noite e da escuridão

a musa da poesia

supreendentemente rota e rasgada

quase nua e mal tratada

bem no meio da pandemia



assustou-se o poeta

com tal visão sem sentido

já que tanto sonhara

já que tanto desejara

uma bela inspiração

uma jovem alegre e de belo porte

que aquela aparição

pareceu-lhe muito mais a morte

do que a esperada poesia



pensou bem por que teria

sido o seu desejo enganado

por tão vil patifaria

e não encontrando solução

pensou e pensou e como era um poeta

um poeta que nunca dizia não

abraçou enfim a musa feia e fedida

nos seus rotos trajes de mendiga

lambeu-lhe até mesmo uma e outra ferida

do seio murcho e da face encardida



ajoelhou-se a seus pés e pediu

que aquela pobre e velha senhora

de musa da poesia travestida

acendesse de novo o seu desejo

mesmo sem qualquer epifania

e que fosse sem nenhum pejo

a partir daquela hora

a sua companheira e a sua alegria

já que se resignava

como sua musa velha e feia sugeria

a ser um poeta de pobre poesia



seu desejo a musa logo atendeu

e partir daquele dia

o pobre poeta muita poesia escreveu

mas nunca ninguém jamais o leu





29.9.2020

(Ilustração: Aleah Chapin)


5 de dez. de 2021

emoções

 





quando não se tem mais nenhuma escolha

é preciso que furemos a bolha

que aspiremos o ar de volta aos pulmões

para sentir da montanha o suspiro matinal

arrostar as emoções

montar num foguete para o espaço sideral

lançar nossos espinhos como faz o ouriço

correr atrás do sonho encolhido no cipoal

de desencantos que nos maltrata

porque só nós sabemos o que é isso



5.5.2021


(Ilustração: Leonor Fini, 1960)

2 de dez. de 2021

em busca de ouro

 





se tu me lavras

- e escalavras

em busca de ouro

dou-te o meu desdouro



tudo o que faço

é isto – amar o laço



se te toco

e se te provoco

é para que tu te aguces



e se me deixo lavrar

e escalavrar

é para que tu te debruces

sobre minhas lavras

e escalavres as palavras

que de lá podes tirar



porque não há ouro nem prata

só palavras e dor que não se acalma

nas minas dentro dessa lata

dessa lata de lixo que é minha alma



30.10.2020

(Ilustração: Edvard Munch)

29 de nov. de 2021

efêmero

 



na concretude da pedra

um nome

duas datas

jogam aos nossos olhos

a transitoriedade da vida



a azálea murcha

com seu vermelho desbotado

pinta o traço da possibilidade impossível

o inefável desvelado

que a pedra escura simula eternizar

no efêmero do nome sobre duas datas



12.10.2020

(Ilustração: exposição do Egito antigo 20.2.2020
 / São Paulo: foto do autor)

26 de nov. de 2021

e então

 




e então o tempo

passou

ufa!

regresso a ti

meu pensamento

surfou

nas ondas do ontem

no antes de ti

o tempo

quantas vezes

escrevo essa palavra

tempo

em meus poemas

tento engaiolá-la

aqui e ali

escorre e borra

o pensamento

o sentimento

e tu

ali

onde um dia

na praça

te vi

sorrias

e ias

na esteira

sem eira

nem beira

das águas da chuva

te vejo

te beijo

no sonhar

esqueces a luva

no dedo partido

no dedo ferido

que aponta para onde?

para o futuro

e o futuro passou

na lente

doente

para a foto

que não ficou

ouçamos os blues

cantemos osanas

anjos não há

nem esperanças

apenas um dia

menina – toquei

tuas tranças




19.6.2021

(Ilustração: Julio Reyes - ascension)

23 de nov. de 2021

dúvidas

 



talvez ao pôr do sol o profeta deixe suas profecias

e caminhe pela fímbria do horizonte macio de certezas



talvez o menino de dedo sujo não escarafunche mais o nariz

em busca de róseas doses de acrobáticas abelhas



talvez o bêbado se desequilibre no meio da cumeeira

para gáudio de seus ilustres companheiros de viagem



talvez o poeta transcreva de novo os versos do bardo

para colorir o dia que se esfumaça nos olhos da amada



talvez a mulher que tece a renda do vestido da noiva

descubra a inutilidade do sim diante do altar vazio



talvez o canto da sereia no entreato da ópera

soe aos ouvidos de mercador do político corrupto



talvez a porta que bateu com o vento e assustou o gato

prenuncie a chuva de pétalas no gramado seco do jardim



talvez o canto do bem-te-vi transforme a tarde triste

em momento de felicidade na varanda dos namorados



talvez os passos que ressoam na calçada escorregadia

vagueiem ao luar sob o estranho desejo de não voltar



talvez os deuses dos campos de papoula circulem

pelos salões de baile da burguesia espantada



talvez o desejo de paz do menino palestino pouse

na mesa dos urubus que voam cada vez mais baixo



talvez meus sonhos sejam apenas sonhos e a vida

- a vida seja apenas o que eu penso que ela seja





20.5.2021

(Ilustração: Elisa Riemier)


(Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, neste endereço de podcast:






17 de nov. de 2021

do fundo da noite

 





do fundo da noite o tropel

do meu coração disparado

bate nos ossos como um corcel

que teve seu cavaleiro baleado

e corre como louco à luz da lua

tropeçando em raízes e afundando nos alagados

os olhos de medo arregalados

para pisotear a carne nua

no fundo da noite despojada

entregue à sanha de hienas famintas

como se fosse o legado do desespero

o rosto em fogo coberto das tintas

do degredo e do concerto sem tempero

ao som do violoncelo desencantado

dos sons do profundo estertor da noite

da mente de villa lobos desentranhado

para o gozo que a carne aceita como açoite



6.2.2021

(Ilustração: Lyonel Feininger - ruin by the sea, 1930)

14 de nov. de 2021

dilemas de deus – 4

 




deus acorda de um cochilo

(acordou-o explosão de estrela ou canto de grilo?)

coça a barba branca e rala

passa a mão pela carapinha

pelo aposento divino pensa e caminha

e de repente solta pelo infinito a voz ainda clara

- gabriel raphael qualquer um

(deus ainda pronuncia o efe com pê hagá

mas não – não está nada gagá)

- vem aqui um dos dois e já

quero aos meus pés um dos dois ou qualquer um

apresenta-se o anjo espantando um muçum

assustado e sem saber o que vem depois

- quem é você? – pergunta deus

esfregando ainda sonolento os divinos olhos

- venho do fundo dos mares e dos abrolhos

e não sou ninguém aos olhos teus, ó meu senhor de todos os céus

e de todos os infernos

- e como ousas usar comigo o tu

ó cara de urubu?

não és gabriel nem raphael – és por acaso algum dos modernos?

- perdoai-me vossa divindade que estou confuso

com esse horário infinito e o fuso...

- bate essas tuas asas inúteis e traga rápido aqui o meu menino

deve estar ele lá no playground se divertindo

- mestre dos mestres, o vosso menino há mil anos ou mais

não frequenta mais o parquinho

e se vós não vos lembrais...

- cala-te demônio dos mares ou dos ares –

de tudo lembro-me bem

vai procurar meu filho em virgem concebido

e não abras mais esse teu bico de enxerido



corre o anjo por todo o céu

e traz enfim aos pés de deus

o filho que encontrara fazendo escarcéu

e se metendo na encrenca entre palestinos e judeus



- filho meu – começa deus a sua fala

quanto tempo não nos vemos nem nos abraçamos

- já lá vai para quinhentos anos ou mais ó meu pai

se a minha lembrança ainda é clara

desde que discutimos e quase brigamos

por causa dos rumos da tua igreja

- esqueçe essa bobagem ó filho amado

quero apenas que tu vejas

esse retrato que ti pintaram e dele reproduziram

por tantos e tantos anos esses idiotas

como se pudessem de tua raça fazer chacotas

- eu sei de todos eles ó meu pai e foi durante o teu cochilo...

- e não fizeste nada – tu não fizeste nada

para impedir aquilo?

- fazer o quê – ó meu pai dorminhoco

se a tela está assim pintada

e milhares e milhares de vezes reproduzida

por ser essa a minha imagem mais querida

com cabelos lisos e olhos azuis

a cútis branca e transparente - se tudo quanto fizer será pouco

para sair da armadilha desses pauis

porque todo o povo lá da terra ficou completamente louco

com a farsa bem articulada de todas essas pinturas

- disseste-o bem ó meu filho crucificado

que há muitas e muitas loucuras

por esse mundo sem eira nem beira mas não posso ficar calado

e tenho que te perguntar como tu vais sair dessa treta

como tu pretendes um dia à terra voltar se foste assim pintado

e lá a todos os crentes assim te apresentares com essa tua cara preta?





10.11.2021

(Ilustração: Príncipe da Paz, de Alicia Sault)





11 de nov. de 2021

dilemas de deus – 3

 




deus descansava e contemplava sua tarefa

havia feito um mundo especial – uma experiência para o universo

um mundo cheio de água

plantas

animais

de vida enfim

e lá colocara duas criaturas que – diziam as más línguas – eram sua imagem e semelhança

e deus descansava

enquanto lá no mundo a eva se masturbava

e o adão flanava

(gazela entre gazelas entre flores e animais e lagos – um paraíso

belo – de perder o juízo)

e deus descansava

e não vigiava

satisfeito estava

e o mundo girava

e a eva se masturbava

e deus pensava

e de olhos abertos sonhava

e não vigiava

e a eva enfim gozava

e uma serpente lá embaixo serpenteava

e para a eva falava

(nem deus imaginava

que serpente falava)

que solitário o prazer não prestava

e deus para o infinito olhava

e a serpente à eva explicava

que o adão era meio bicha e afescalhado mas eva precisava

não de dedos mas da cobra que ele tinha dependurada

que era essa a cobra desejada

que bem usada

a história do mundo mudava

e deus lá em cima satisfeito suspirava

e a eva depois de gozar com fome mastigava

uma doce maçã

ouviu a serpente e pensou olhando a pequena flor em botão

que vermelha ainda vibrava

– por que não?

amanhã de manhã pego de jeito esse adão

mostro para ele o meu botão

e boto pra fumar a cobra que a cobra

disse que ele tem dependurada

e deus verá para sempre mudada

a história de sua obra

[lá no céu sereno deus de nada desconfiava

e sorrindo feliz o seu mundo de paz abençoava]





13.9.2021

(Ilustração: Carlos Barahona Possollo)

8 de nov. de 2021

dilemas de deus – 2

 




deus amanheceu de mau humor

- espere: deus não amanhece

nem anoitece

deus não dorme – nunca

nem cochila – só descansa de vez em quando

principalmente no sétimo dia de alguma tarefa

- então que o poema recomece

“deus está de mau humor”

(sem as aspas por favor)

deus está de mau humor

já havia até chutado a bunda de um pobre e belo anjo

que – distraído – tocava harpa numa nuvem passageira e ficou no seu caminho

- chamai aqui já o maomé – deus trovejou e o céu todo se assustou

correram santos

correram santas

correram anjos e anjas e tantos e tantas

que num piscar de olhos

lá estava o maomé de bunda pra cima

- salaam aleikum meu senhor

- deixa de salamaleques e levanta-te daí seu filho da puta

- mas... mas... – maomé ficou branco como o pó puro de cocaína

(e desejou como sócrates ter tomado uma boa dose de cicuta)

e o céu todo mais uma vez se assustou e o céu todo se arrepiou

- eu disse para tu não fazeres o que fizeste – isto...

- isto o quê meu deus meu senhor poderoso e único

- olha para isto seu cretino – e deus apontou para um ponto em chamas

lá em baixo – duas torres de nova iorque em chamas

desabavam como um tijolo de sorvete num forno de microondas

desabavam num rolo em torniquete de fumaça e fuligem

- ah isso... não é nada (maomé)

- como é? como é? – não é nada?... não é nada?...

- ora meu senhor e que a paz esteja convosco

(e maomé deu de ombros – a cabeça já aliviada)

já vos esquecestes de tudo o que fizestes?

desde a tal da sarça em fogo no deserto agreste

e todas as cidades – sodoma e gomorra por exemplo – que destruístes

e todas as guerras que em vosso nome aconteceram

milhões e milhões de vidas em cada uma pereceram

– e agora dais chilique

porque duas ou três mil vidas foram torradas...

- pode parar por aí com suas palavras desgraçadas

(e deus cuspiu um raio que chamuscou a alva túnica de maomé)

- todas as desgraças por ti nomeadas

tiveram começo e tiveram um fim

mesmo as lutas mais encarniçadas

mas... agora... não te esqueças do que te vou falar

(olha bem para mim e entende de uma vez)

a merda que que vai dar - isso que tu

(pausa/dedo em riste

os olhos chamejantes)

isso que tu fizeste – muito mais do que todo o mal que já causei

e que tu te referiste

essa é uma cagada tão gigante

que tu não sabes quantos demônios ela vai despertar

demônios que não vão nunca mais descansar




11.9.2021

(Preston Sandlin - Twin towers)

5 de nov. de 2021

dilemas de deus - 1

 



deus está lá – sentado no seu trono sobre uma nuvem etérea

rodeado de santos e santas com longas túnicas brancas

e anjos de asinhas sibilantes e nus e belos como retratados por pintores renascentistas

e deus está lá – na sua imensa majestade com a mão apoiada sobre os joelhos

segurando o queixo – pensativo como uma estátua de rodin

pensa no quê?

relembra o quê?

imagina o quê?

com seu olhar perdido no horizonte infinito daquele céu monótono como um concerto de música new age

pensa no seu pau esse deus meditabundo

um pênis escroto e murcho desde a eternidade de todas as eternidades

ali pendente entre as suas pernas – uma coisa inútil

eternamente inútil

já que seu único filho foi concebido na terra por um carpinteiro velho

no ventre de uma virgem

(era também o carpinteiro tão broxa quanto ele

e foi preciso sua intervenção para realizar o milagre da concepção)

- então esse deus meditabundo broxa e ainda por cima corno

pensa

por que criou a si mesmo com um pau no meio das pernas

e nunca viu esse pau com uma bandeira na ponta – e fez mais

deu um pau funcional ao adão no paraíso pensando que

seria só um enfeite para a eva

(que era rachada e ia morrer de inveja –

deus dá uma risadinha marota e cobre a boca com a mão)

e depois deixou que seu adão comesse a eva com esse mesmo pau

que ele não queria que adão usasse mas a eva – essa insidiosa serpente –

alegou que não queria ser virgem para sempre e deu a maçã

- ou melhor – abriu as pernas para o adão que não era bobo e comeu

comeu e se lambuzou e ele – deus – nunca pôde fazer o mesmo

porque pensou que não precisava dessas coisas

que sua escolha por adiar e adiar para sempre o ato

(como fazem esses meninos idiotas de certas seitas)

fosse a coisa certa

e agora está velho demais para essas coisas

e deus relembra

que lá no princípio do mundo havia uma tal lilith

que ele podia ter comido e se lambuzado como adão

ah! mas essa lilith era tão insidiosa como eva e muitos diziam que era um demônio

e então deus imagina

– se ele tivesse tido uma mulher

não – uma só não – muitas – tantas quantas maomé

(aquele profeta fajuto que promete para os seus mártires setenta mil virgens)

e ele teria setenta mil virgens para seus setenta mil dias

a povoar pelo menos um tantinho de tanta eternidade perdida

e deus imagina

– o céu todo povoado de filhos seus

todos eles eternos e todos eles deuses – a infernizar

(oh meu deus – ele tapa a boca para esconder um riso)

todas essas santas que andam por aí

escondendo suas perseguidas sob mantos imaculados – mas eu sei

(e deus mais uma vez tapa a boca para esconder um sorriso matreiro)

- eu sei que elas todas de vez em quando se escondem atrás de uma nuvem

(o céu não tem moita – e deus ri agora às bandeiras despregadas)

para catar um desses santos e mártires até mesmo os filhos do maomé

e deus de repente para e pensa

- porra! teria centenas

talvez milhares – uma infinita horda de pretendentes ao meu trono

e isso – caralho! – seria um inferno

(agora ele não ri – está furibundo)

e deus olha para o infinito

olha para o céu infinito

olha para toda a sua criação

e pensa

– melhor um deus broxa que um deus mergulhado numa guerra de sucessão

- teria que contratar um coach

e isso seria pior que ser broxa a suprema humilhação



10.9.2021

(Ilustração: escultura de Lilith como serpente
 - fachada da catedral de Notre Dame de Paris)

3 de nov. de 2021

difícil convivência

 



está o meu corpo em luta comigo mesmo

a despeito dos tantos anos em que em harmonia convivemos

está o meu corpo insatisfeito comigo

não sei se por cansaço de comigo estar há tanto tempo

se por algo que impensadamente lhe infligi



sei apenas que se abriu um fosso entre mim e meu corpo

com acusações silenciosas e contundentes de ambos os lados

a ponto de quase nos tornamos inimigos figadais

depois de tanto tempo que um com o outro conviveu



se ele – o meu corpo – desdenha de minhas preocupações

e coloca na conta de seus desconfortos apenas o cansaço

não consigo eu – por mim mesmo – aceitar como constatação

que ambos desgastamos a convivência por muitos silêncios

por não conversarmos mais amiúde e nos relatarmos um ao outro

certas confissões íntimas e tão pessoais guardadas como segredo

como se não tivéssemos um com o outro o compromisso

o misterioso e enlaçado entre nós compromisso da vida

e agora que essas relações de tal forma se acham estremecidas

olhamos um para o outro e não mais nos compreendemos



1.5.2021

(Ilustração: Gustave Caillebotte - homme au bain)


(Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, neste link de podcast:







31 de out. de 2021

desova

 


 

na noite de lua nova

no meio da mata

a polícia desova

mais um fresco presunto

não há bala de prata

nem marca de chicote

nem uivo de coiote

agora só se trata

de um e único assunto

como não deixar rastro

no meio da mata

para qualquer impiastro

quando se desova

em noite de lua nova

mais um fresco presunto

 


26.9.2020

 

 (Ilustração: Debora Arango - 1907-2005; violencia)

 

 

 

27 de out. de 2021

descrença

 




os braços lassos descaem ao longo do corpo

sem os abraços

a boca de desejos atrás das cortinas se retraem

pelos não beijos

a esperança morre em cada morte – em cada

criança

a morte esperneia em cada adeus – em cada

sorte

fecham-se túmulos sem flores e sem choro

o vento carrega a lágrima seca nos olhos baços

sem beijos e sem abraços

murcha o desejo e não canta o cordão de carnaval

você pensa – vai passar – vai passar – vai passar

mas volta o vírus à revolta dos que o renegam

morre o pai

morre a mãe

morrem o avô e a avó

os lamentos sobem morros e morrem no mar

o piano no sótão cobre-se da poeira do tempo

no chão de pedra não nascem flores

e os espinhos perfuram os corações solitários

você pensa – vai acabar – vai acabar – vai acabar

mas volta o vômito podre dos defuntos no frigorífico

e o chão de vidro tem marcas de rostos que não sorriem

criança – não verás país nenhum como este

e o arremedo de paixão contraria todos os prognósticos

sabe-se apenas que há vultos brancos em estertores

sabe-se apenas que há pulmões implodindo nos balões vazios

sabe-se apenas que há silêncios que nunca entenderemos

morre-se aqui

morre-se ali

morre o fulano e a menina ainda virgem

morre o cientista e morre o motorista

morre a mulher do chefe e até mesmo o chefe da estação

respira – alguém diz – respira

o giroflex gira e leva o anão do bairro

e leva o banqueiro – todos se congraçam agora

no mesmo desejo de ar e de vida

há o cheiro de uma guerra que se perdeu há um século

e há o tubo de ensaio no laboratório

mas não há juízo para quem quer abraços e beijos

e os braços que eram lassos apertam corpos

e o vírus muda seus espinhos e caminha pelos paços

e caminha pelas travessas

e entra pelas casas

derruba fronteiras e entranha-se nas entranhas

das aeronaves e dos salões de baile

o churrasco de domingo queima o novo tempero

a festa de aniversário tem confetes invisíveis

e a dança macabra tem trejeitos de espantalhos

quem morre não descansa – apenas morre

quem vive não se emenda – apenas vive

porque não se crê naquilo que não se vê



21.1.2021

(Ilustração: Monika Meglić - danse macabre)

24 de out. de 2021

depois do abandono

 




depois que tudo isso houver passado

e o tempo renovado

trouxer de volta os eflúvios de encantos e desencantos

vou tirar sua máscara como tiraria sua calcinha

e vou tirar sua calcinha como tiraria sua máscara

nos escaninhos de trilhas já percorridas

para me entregar ao seu sorriso maroto

como a pétala de rosa se entrega ao vento

depois de ter desnudada a sua corola

não sei o quanto de espanto ainda nos aguarda

mas tudo quanto sofreei

desaguará no espetáculo de sua nudez

no depois de tudo

no depois do abandono





26.3.2021

(Ilustração: Alexander Yacovlev - desnudo)

21 de out. de 2021

dentro

 



muito bom beber uma cachaça

dentro da noite nem quente nem fria

ouvindo o som fantástico

de uma orquestra sinfônica

sons de violinos e violoncelos

baixos e clarins

trompas e madeiras

percussão

ao ritmo do coração

as mãos flutuantes do maestro

a comandar o solo dos violinos

brisa a beijar folhas de bananeiras

o coração sossegado ao vibrato

só o amor batendo na aorta

e o céu de lua e estrelas sobre cabeça a rodar

a rodar de prazer

ao som da orquestra sinfônica

ao calor da bebida descendo suave

se esse momento não é feliz

completamente feliz

mesmo que orgasmático

é porque dentro de mim pulsa

como pulsa a noite

o desejo inelutável de estar dentro de você



4.10.2020

(Ilustração: Luis Borrero - Incubus)

18 de out. de 2021

delírios

 



refletidos nos vários espelhos

os corpos contorcem-se

em meneios e floreios

cipoados em lianas e ventosas os amantes

esplendem e explodem

na correnteza dos rios

encachoeirados

que descem a montanha

pedras e troncos se misturam em redemoinhos

os olhos

inúteis remansos

logo engolidos pelo turbilhão de águas e ventos de fogo

os amantes

destroem-se a si mesmos

na antropofagia de se comerem

como peixes elétricos nos raios de luz

nos retorcidos troncos

pernas e seios e coxas e ventres em tempestades

até que o rio nebuloso engula

enfim

o espasmo final dos amantes

os corpos

em mil estilhaços dos espelhos partidos

em mil pedaços no espasmo

da pequena morte

os corpos

em delírios refletidos

contorcidos

exaustos da tempestade

perdidos

em si mesmos

em seus próprios cipoais

de amor

e tédio



26.3.2021

(Ilustração: Alona Kovalska - orgasm time - 2018)

15 de out. de 2021

deleitosas mamas

 





deleitosas mamas

de maciez de algodão-doce

sugo teus róseos mamilos com cuidados de beija-flor

nelas pulsa o suave regaço de seda

ao roçagar de meu anseio



nelas percorro reentrâncias de rosas brancas

no gosto leitoso de doces memórias maternais

ambrosia servida em festas bacantes

agora ao meu paladar edipiano e faminto

a escorrer em gozo aos lábios e à língua líquida



nelas mergulho lentamente

ao marulhar do mel

- delícias dulcíssimas dos teus seios -

no gorgolejar do teu leite

do teu vinho e do teu gozo



12.1.2021

(Ilustração: foto de Augusto P. Gomes)



12 de out. de 2021

decreto

 


preencho o espaço entre teus seios

com meus anseios

molho teus mamilos com minha língua

lambendo tuas aréolas como lobo

desço a língua ao teu um umbigo

exploro o teu corpo em poucos segundos

logo serás tu a bendizer orações

de puro prazer à vara que te abençoa

tudo se alumbra na penumbra da droga

da droga do amor em piras eternas

o teu grelo de encontro à minha língua

a tua boca de encontro à minha glande

aos deuses que se ocultam entre tuas coxas

tributo meu culto com fogos e folganças

teus olhos espertos explodem folguedos

teus gemidos descobrem teus segredos

sou teu prisioneiro em tendas de areia

és meu tesouro no fundo de vasta bateia

e enquanto o olimpo se fecha em breu

soluço o espanto final que decreta

que sou para sempre somente teu



7.6.2021

(Ilustração: Frida Castelli) 

9 de out. de 2021

cuidados

 



tenho contigo cuidados de amante

sem no entanto estender sobre ti

redes que dilacerem e aprisionem



tu só és minha no momento da entrega

quando teus olhos reviram teus orgasmos

tu só és minha neste etéreo instante

sem olhos de sangue a seguir teus rastros



tua é a vida e assim te vislumbro

asas abertas sobre o pó das estrelas



que sejas deusa ou simples caminhante

beijo teus pés e venero teus gestos

tendo sempre contigo cuidado de amante

sem prender em qualquer de meus arroubos

teus desejos ou mesmo os teus desencantos



19.12.2020

(Ilustração: Georgy Kurasov)

7 de out. de 2021

cuando tengo miedo

 



cuando tengo miedo

desejo ainda mais o teu segredo

e venço o medo de ter miedo

com os espasmos de tu cuerpo

soy el bandido

escondido

estarrecido

sem qualquer segredo y sin miedo

que arromba tua barragem

deságua as tuas águas

diciendo em tus oídos uma sacanagem

que descobre que tus deseos

son mis deseos y que tus ojos

abrem os caminhos para os meus enleios

sobre todos os teus despojos

cuando los cantos de la piedra

quebra os encantos dos teus seios

lá onde la rosa negra medra

e as águas da montanha

represadas em tus entrañas

são o pão do pecado da minha gula

que ao fundo de tu cuerpo macula



24.9.2020

(Ilustração: Hans Bellmer)

3 de out. de 2021

cortinas do passado

 




o tempo de vida abriu as cortinas atrás das quais havia

espantos inauditos

de momentos mal vividos

de momentos bem sofridos



no entreato de fantasmagóricas visões

o pisado tempo de perdidas ilusões

no despertar de sonhos represados



amores eternos que se dissiparam na névoa

beijos trocados que resistiram à tempestade

abraços perdidos em estradas não percorridas

olhares de ternura no meio das neblinas densas



e só o que resta a se entrever

através da janela de cortinas abertas

é o sonho inefável de que novas descobertas

acendam o fogo de um vulcão extinto



e seja no desamparo da noite um grito perdido

a esperança de uma vida que só tem sentido

quando expilo de mim tudo o que sinto



18.6.2021

(Ilustração: Andrea Kowch - 1986)