30 de mai. de 2020

poesia




civilizam-se os humanos

pela arte

de todos os ódios e de todos os danos

só pelas alturas do criar deixa à parte

os medos e os fantasmas da tormenta



pela arte

se fazem os humanos menos cruéis

voa em asas embora frágeis e pequenas

pela aventura que se intenta

testemunhas imperfeitas porém fiéis

de ascensões de ícaros em busca do sol

certos de que da arte a cera que liga suas penas

levá-los-á ao arrebol

entre nuvens e sentindo apenas

o vento entre suas artérias e ossos



soltarão os humanos para o mar a arrogância

deixarão para trás toda a ganância

e toda a falsidade

verão então surgindo dos poços

nua e dadivosa a verdade



e essa verdade trombeteará para o mundo

o pensamento mais profundo

– a mensagem

que de todas artes a mais pura porque entretecida

nos fios de ouro da liberdade e da libertinagem

aquela que mais aproxima o ser humano

da filosofia

e da compreensão da vida

– é a poesia





27.2.2020


(Ilustração: Roberto Matta, “À beira de um sonho”)


28 de mai. de 2020

poema revolto



folga a imaginação a correr pela rua

longa a noite em que está morta a lua

e os gemidos de angústia e saudade tua

deixam às sombras um tom que flutua

em busca da nota perfeita que se insinua

em beijos e carícias de passados remotos

sei e sabes também que o tempo passa

em ondas que às vezes parecem maremotos

sem rastro que nos permitam avaliar a desgraça

de jamais dar folga à imaginação do desejo

sempre o perigo de morrer por um ensejo

como o de escrever um poema quebrado e revolto

que termine num verso completamente solto

a decretar um tempo que nunca haverá



26.4.2020




(Ilustração: Alejandra Pizarnik - dibujo1)

26 de mai. de 2020

pequena sonata da solidão




presto



          madrugada o ouvido

          colado à parede

          o leve ruído

          balanço da rede

          um breve gemido



adágio



          sobre o piano o velho gato adormecido

          a cortina da janela tremula só um pouco

          de muito muito longe um breve ruído

          acorda o gato o grito abafado e rouco



prestíssimo



          o gato estremece

         o olho congela

         o dia anoitece 





15.2.2020

(Ilustração: Martin Leman - Musical Cat)




24 de mai. de 2020

passado



o passado ficou preso na pegada do tempo

e lá deve estar como um fóssil na pedra

objeto talvez de estudo e nunca de culto

nem fantasma nem inspiração – seja apenas

a lição do tempo para os alunos atentos

que não querem as mãos secas a comandar

os cordões de fantoches de olhos arregalados



somos o hoje de olho não no espelho côncavo

mas no buraco negro aberto por foguetes

lançados para as estrelas em busca da matéria

que formou há bilhões de anos os novos horizontes



portanto que seja o passado pregado na pedra

ou no fundo do átomo perdido entre as estrelas

não o guia de outros passos mas apenas o traço

pontilhado de esperança e construção do futuro



25.1.2020

(Ilustração: Robert Fisher - Outback Journey - Wattle Trees)



22 de mai. de 2020

paradigma



não matei os cães vadios

que uivavam dentro de mim

não pisei a garganta da serpente

que crescia dentro de mim

se sofri ou se chorei por ti

que importa – se o choro é livre

e o ponto de encontro nunca foi

o nosso momento de prazer

não desci aos subterrâneos dos teus mares

para buscar a pérola do teu olho

não parti pelos caminhos da terra

em busca de encantos que estão em ti

desce dos teus castelos e resgata

o que ainda existe de escolhos em mim

não esperes de meus beijos loucos

o que eu nunca te prometi

deixa que em teu peito o renascer em rosas

seja o desejo que um dia tu me prometeste

não matei os cães vadios

que uivavam para a lua dentro de ti

sou apenas o teu soldado raso a cumprir

a promessa de que um dia não vou trair

o teu paradigma que um dia eu perdi



27.12.2019

(Ilustração: Marie Laurencin)



20 de mai. de 2020

palmo de terra



o prêmio do destino está

no teu olho torto para trás

lá no passo do fundo da grota

escrito em código de estrelas



está teu futuro no passado

vives e viveste cada pedaço de vida

na vontade possível

da tua ânsia de desejo e paz



jaz o espaço entre o nada e o futuro



diz o passado que te prende

na roda do tempo há um furo

e nada passa por ele nada rende

o pouco da vida que ainda te resta



todo o teu cabedal aqui não presta

e a onda que te leva e te enterra

não é mais que a luta meio besta

por um único palmo de terra



18.1.2020


(Ilustração: Adolph Menzel)

18 de mai. de 2020

outras auroras




um tempo o mundo era o meu mundo

depois o tempo apertou e tudo quanto havia no mundo

coube em poucos metros quadrados

todos os sonhos na gaiola aprisionados

na gaiola do meu coração

esse pássaro de cantos desencantados

hoje espero e desespero no meu silêncio

que haja ainda asas que aos ventos de outroras

busquem por anseios não revelados

de um anoitecer de planuras de um caminho

por onde sombras não obscureçam outras auroras 




16.1.2020

(Ilustração: Alfred Henry Maurer)

14 de mai. de 2020

orgasmo




não era vento a inflar

a vela do teu barco

era uma ponta molhada

de chuva de primavera

a provocar voragens e marés

na viagem sem volta do teu orgasmo



16.1.2020

(Ilustração: Frida Castelli)


12 de mai. de 2020

o sonho é assim



o sonho termina na beira do leito

de lençóis não amarfanhados

soçobra nas trevas do olhar perdido

entre destroços de páginas de poetas loucos

suicida-se o sonho

quando o cuspe amargo respinga

nos pés tortos de caminhadas inúteis

e depois que o sonho desvanece

restam sombras de projetos e pontes destruídas

veios de ouro em igrejas barrocas

pétalas de asas de anjos despossuídos



sob chuvas ácidas nos campos de trigo

fica o grito enjaulado no olho do gato

fica o susto enrustido nos passos do lobisomem

e a lua cheia enevoa-se em desejos desesperados



o sonho é assim

um pouco de loucura

numa selva de brancura 





28.1.2020


(Ilustração: escultura de Camille Claudel - Femme accroupie)

10 de mai. de 2020

o sentido do mar



talvez um dia o mar faça sentido para mim

quando o que está dentro de mim for profundo e triste

quando no azul de mim eu encontre o desejo de paz

sem que a solidão envolva em vagas o que sinto

talvez então seja o mar o oceano que me naufraga

a engolir os barcos que flutuam em mim como sargaços

talvez haja sereias com encantos de antigos navegantes

no abandono das ondas que se quebram na praia

onde mergulham corpos nus de ninfas e faunos perdidos



para quem o mar tenha sentido e seja o orgulho da paixão

sofro pela eternidade de amar a minha total ausência de fé





27.3.2020

(Ilustração: Catherine Chauloux - le capitaine)



8 de mai. de 2020

novo sonho



quando se busca um novo sonho

não se deve percorrer os mesmos caminhos

e se o sonho for impossível

peça ajuda a todos os passarinhos

e faça duas asas com suas penas

não as que estão dentro de você

mas aquelas que servem apenas

para voar e sonhar pelos novos caminhos



...



e então se eu tenho as asas que pedi

voarei e voarei para beijos e abraços

voarei como voa o colibri

sem deixar rastro atrás dos passos

voarei feliz – meu amor – voarei para ti



29.2.2019

(Ilustração: Leszek Sokol)


6 de mai. de 2020

novas solidões



que me importa se meus pés já não pisam o barro das trilhas tortas

dos morros molhados por entre pés de capim-gordura e gabiroba

em busca de riachos e cachoeiras em tardes quentes de verão



que me importa que não haja mais o jogo disputado

com bola de capotão rasgada no campinho ao lado estrada de ferro

as pernas bambas até que a noite despejasse desejos de banho

e de um prato de sopa quente na cozinha da minha mãe



que me importa que já não suba pelas ruas lentas da velha cidade

todas as manhãs sonolentas para os bancos do colégio de padres

os mapas do mundo e a geometria das fadas lutando contra o sono

a sirene aguda anunciando o lanche magro e as correrias no pátio



que me importa se não sonho mais com a menina de saia azul

esfumada no tempo em tempos de poesia calcinada de falsas dores

encantada ao som do velho rádio nas noites de lua cheia



que me importa se já não tenho o viço e a força para ainda lutar

se tudo o que fiz e tudo o que não fiz tenho guardado no cofre

das minhas memórias sem jaça mas totalmente minhas e sem as quais

não seria hoje o que sou e o que sou repete apenas o poeta solitário

das madrugadas de umas minas gerais que ficaram no passado

e explodem hoje em novas solidões nas noites frias da grande cidade 





2.3.2020 

(Ilustração: Eric Lacombe - dark abstract portraits)


4 de mai. de 2020

navegação




navega o barco pelo mar

navega a língua pelas pregas

o mar em ondas afoga o barco

a boceta em sumos afoga a língua

assim o mar do barco se vinga

assim a língua na boceta se extenua



29.12.2019

(Ilustração: Gerda Wegener)


2 de mai. de 2020

naquele dia



paixão de 16 anos

aos 16 anos a paixão

sem trégua

se bebia água pensava em ti

se jogo futebol penso em ti

se subi na mangueira pensei em ti

o tempo dentro de mim era o tempo de pensar em ti

não havia em mim nada que não fosse o pensar em ti

obsessivamente eu penso e penso e penso em ti

és tu a vida que palpita ao brilho do sol na manhã de primavera

és tu a responsável por esse lugar comum de falar do brilho do sol

na manhã de primavera como se fosse um verso de camões

eras tu a fruta proibida no quintal do vizinho que eu desejava

mas não ousava pular a cerca de arame farpado que nos separava

só as mãos trêmulas sujas de barro e sangue

serias tu a essência absoluta do encanto e do desencanto

paixão aos 16 anos

aos 16 anos a paixão

absoluta

e um dia tu

e um dia você

e um dia não houve amanhã

e um dia abriu-se o abismo

meus olhas não tiveram talude

que impedisse o derrame das águas de verão

águas que vieram como lavas de um vulcão

deixaram sulcos profundos no meu corpo

cicatrizes que contemplo no espelho embaçado do meu quarto

sessenta anos depois

porque naquele dia tu foste

porque naquele dia você foi

porque naquele dia

naquele dia

naquele dia não a vi nunca mais

nunca mais

nunca



16.12.2019

(Ilustração: Alyssa Monks)