6 de mai. de 2020

novas solidões



que me importa se meus pés já não pisam o barro das trilhas tortas

dos morros molhados por entre pés de capim-gordura e gabiroba

em busca de riachos e cachoeiras em tardes quentes de verão



que me importa que não haja mais o jogo disputado

com bola de capotão rasgada no campinho ao lado estrada de ferro

as pernas bambas até que a noite despejasse desejos de banho

e de um prato de sopa quente na cozinha da minha mãe



que me importa que já não suba pelas ruas lentas da velha cidade

todas as manhãs sonolentas para os bancos do colégio de padres

os mapas do mundo e a geometria das fadas lutando contra o sono

a sirene aguda anunciando o lanche magro e as correrias no pátio



que me importa se não sonho mais com a menina de saia azul

esfumada no tempo em tempos de poesia calcinada de falsas dores

encantada ao som do velho rádio nas noites de lua cheia



que me importa se já não tenho o viço e a força para ainda lutar

se tudo o que fiz e tudo o que não fiz tenho guardado no cofre

das minhas memórias sem jaça mas totalmente minhas e sem as quais

não seria hoje o que sou e o que sou repete apenas o poeta solitário

das madrugadas de umas minas gerais que ficaram no passado

e explodem hoje em novas solidões nas noites frias da grande cidade 





2.3.2020 

(Ilustração: Eric Lacombe - dark abstract portraits)


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