que me importa se meus pés já não pisam o barro das trilhas tortas
dos morros molhados por entre pés de capim-gordura e gabiroba
em busca de riachos e cachoeiras em tardes quentes de verão
que me importa que não haja mais o jogo disputado
com bola de capotão rasgada no campinho ao lado estrada de ferro
as pernas bambas até que a noite despejasse desejos de banho
e de um prato de sopa quente na cozinha da minha mãe
que me importa que já não suba pelas ruas lentas da velha cidade
todas as manhãs sonolentas para os bancos do colégio de padres
os mapas do mundo e a geometria das fadas lutando contra o sono
a sirene aguda anunciando o lanche magro e as correrias no pátio
que me importa se não sonho mais com a menina de saia azul
esfumada no tempo em tempos de poesia calcinada de falsas dores
encantada ao som do velho rádio nas noites de lua cheia
que me importa se já não tenho o viço e a força para ainda lutar
se tudo o que fiz e tudo o que não fiz tenho guardado no cofre
das minhas memórias sem jaça mas totalmente minhas e sem as quais
não seria hoje o que sou e o que sou repete apenas o poeta solitário
das madrugadas de umas minas gerais que ficaram no passado
e explodem hoje em novas solidões nas noites frias da grande cidade
2.3.2020
(Ilustração: Eric Lacombe - dark abstract portraits)
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