29 de fev. de 2016

AMAR-TE É TRAMA

26  

três canções


(Érika Cardoso)



canção da pedra


Seja pedra, posto que minério
em cujos veios o tempo guarda
eras primeiras de primeiras dores;
esteja pedra, posto que caminhos
em cujos passos marca o tempo
primeiras auroras, primeiros sonhos;
faça-se pedra, posto que silêncio
e em silêncio permanece a pedra:
sem dor, sem tempo, sem sonho.


canção da folha


Não te importe de onde venha a brisa,
balança ao vento como se folha fosses.
Enquanto passa o vento, se não resistes,
verás que há um depois antes do fim.
Folha, não te importe o calor do sol,
que ao processo de te tornares verde
acrescentas vida que te dará força.


canção da asa


O sumo que sugas mata quem te hospeda
e seca o caule que te alimenta: destino, apenas,
a transformar em asas o que vem da terra.
Do vento que te leva à pedra que te abriga,
serás apenas o traço que se apaga e se renova
a cada aurora, sofras ao vento ou seques ao sol.



21.4.2014

28 de fev. de 2016

AMAR-TE É TRAMA

25


solidão, conhece-a?



(Guy Baron - le kioske)



Sabe a solidão? Aquela coisa
que nos paralisa quando
bate no peito
e nos deixa no chão
como se de repente desfeito
em nada, em dor, em tristeza,
arrebenta o pobre coração
e com destreza destrói
cada fibra, cada veia? Pois, é:
a solidão!
Fria, invisível,
insensível como as cordas
de um violão,
um violão esquecido num canto,
coberto de folhas mortas...
É, essa mesma, a solidão
que você conhece e despreza,
aquela que frequenta os versos
de poetas e de candidatos a poetas,
como toda musa que se preza,
é ela, sim, que aquece
a chama de nossa derrisão....
A velha, boa - e maldita -
solidão: o estar mais só
do que num túmulo,
aquela que não tem dó
de nossas possibilidades de angústia,
e aperta na garganta um nó
que não desata,
musa discreta e barata
a tingir de cinzas o dossel
sob cujas franjas nos acolhemos,
a solidão, sim, a solidão,
essa mulher que nos toma
em braços e enlaços e embaraços
para jogar-nos numa espiral
de vento, de pó, de nada...
essa a solidão de que falo,
essa a solidão que a todos maltrata...
tenho-a em alta conta, sim,
mas não dentro de mim,
que convivo muito comigo
e preencho comigo mesmo
cada canto de meu ser
para não ter nunca de convidar
assim sem outro jeito
essa ilustre dama para o meu festim... 



(s/d)




27 de fev. de 2016

AMAR-TE É TRAMA

24 


rio e vida


(Foto: Fátima Alves - Rio Grande)



lá em baixo, no vale, corre o rio
cavando com calma seu caminho
no tempo da seca
e alargando seus domínios
no tempo da chuva

lá em baixo, no vale, serpenteia o rio
contornando montanhas
despecando-se em cachoeiras
indo sempre para a frente
em busca do mar

lá em baixo, no vale, vejo o rio

daqui de cima, espelho de calmaria
daqui do alto, serpente sem dente

assim também minha vida vista lá do alto
parece calma em seu caminho no tempo sem guerra
parece larga em seu serpentear no tempo sem abismo

assim também minha vida lá em baixo
no vale das minhas angústias
busca um sentido ao despencar em incertezas
e parece sempre caminhar para o inevitável

vida e rio
rio e vida
não há pacto entre eles
apenas o caminhar




17.5.2013

26 de fev. de 2016

ARMAR-TE É TRAMA

23  


pedido ao tempo



(Bernadeth rocha - caçador-de-sonhos)




Amigo, faça-me um favor:
vá até a velha cidade perdida,
há lá uma praça, na praça uma tipuana,
suba a alameda ao lado dela
logo depois do coreto,
à sua esquerda: um banco, talvez seja um banco novo
- não importa -
faça de conta que é o velho banco de cimento
de assento curvo e o nome do doador
já quase apagado, no encosto;
vá lá, por favor,
você ainda vai encontrar um pequeno grupo
de rapazes
todos muito jovens, todos muito pobres,
todos repletos de esperanças.
Entre eles estou eu:
fácil será reconhecer-me,
já que sou o mais falante
e aquele que mais claro tem o brilho no olhar,
bata no ombro desse jovem - que sou eu -
e diga-lhe, diga-lhe para olhar para o alto,
para o alto das velhas palmeiras imperiais
e manter por alguns segundos o olhar
naquele céu recortado de folhas verdes,
para fotografar na retina da memória,
para sempre, aquela nesga de azul,
porque, amigo - e você deverá dizer isso a ele,
ao jovem que sou eu - que ele nunca mais
terá de volta aquele instante da mais pura

e efêmera felicidade.


s/d

25 de fev. de 2016

AMAR-TE É TRAMA


22     


ócio de amor



(Sara Allinquant  - blue sensualitée)



num oco qualquer, em qualquer lugar do mundo,
te espero sonhando, porque te espero dormindo;
mesmo que venhas no passo da brisa,
enquanto não chegas, preparo meu corpo
com calma e talento das ondas mais mansas,
colhendo enredos de doces mistérios
que prometes em teus enleios, quando chegares;
não venhas tão rápido, amada, que o tempo
de anseio deve alongar-se como se alonga
pela praia a sombra do luar; e quero,
quero muito antecipar teus suspiros
no farfalhar das folhas do teu caminho;
quero poder ouvir-te ao longe, no horizonte
da floresta, porque, devagar, felinamente devagar
deves tocar as pedras do caminho, que não te firam
os pés os seixos, nem os espinhos;
no devaneio da brisa, no canto do pintassilgo,
preguiçosamente te espero e preguiçosamente
deves enredar-me quando chegares
para que o nosso amor - sem nenhum espanto -
seja serpente em doce elegância de abraçar,
e goze, lento como o lento marulho do mar,
lento, como lasciva foi a formação da terra,
e tenha, depois, o doce cansaço do canto
de carros de bois subindo a serra.



14.9.2012/4.11.2012/29.11.2012

24 de fev. de 2016

AMAR-TE É TRAMA



21


o velho


(Peter Fendi - selbsporträt, 1830)




olhei-me de longe
no espelho
não reconheci
o velho
quase gordo e meio calvo
os olhos
tão tristes e tão calmos
não eram
o que eu queria rever

devagar
então me aproximei
olhando-me
desconfiado e de esguelha
mais e mais
já olho no olho de tão perto
e lá no fundo
finalmente eu vi - no fundo de meus olhos
no fundo de mim
o velho de agora no jovem de outrora.


24.9.2014


23 de fev. de 2016

AMAR-TE É TRAMA

20 


o tempo


(Duarte Monteiro - solidão)



há dois tempos, o tempo pequeno
que dura o tempo de um piscar de olhos,
da queda de uma folha,
do breve alongar de uma nota musical,
de uma paixão inescrutável,
de um grito de prazer ou de dor,

esse tempo não conta, é o tempo vivido,
o tempo que nos conduz ao centro de nós mesmos

mas há outro tempo,
esse, mais terrível, consome nossa pele,
amolece nossos ossos,
escurece nossos olhos,
delonga nossos passos,
é o tempo dos meses que passam,
dos números que marcam
na folhinha da parede
cada ano que perdemos
num atroz e decisivo anseio,
esse o tempo que nos leva

escolha o seu tempo, meu amigo,
escolha o seu tempo, minha amiga,
e fiquem nele, não olhem para trás, deixem
que cada um faça o seu trabalho silencioso,
pois o tempo pequeno é também o tempo do gigante
e o tempo do gigante coabita em nosso peito
em cada batida de nosso coração
inexoravelmente
inexorável

não lutem o mau combate contra o tempo
seja ele qual for:
nosso destino de mortais traz ao tempo
o prazer de nos ignorar

porque, afinal, tudo o que vivemos,
tudo o que sofremos ou amamos
tem o dedo do vento
e o dedo do vento é apenas o lento
e oportuno destino
de cada lágrima que nossos olhos
produzirem
inexorável
inexoravelmente
como o tempo a nos roer
como o tempo
o tempo
tempo



25.7.2013

22 de fev. de 2016

AMAR-TE É TRAMA


19 

o hospital é sylvia plath


(Danny Quirk - anatomical selfdissections)



traduzo sylvia e piro
quero escrever assim quando crescer
mas não quero sofrer assim quando viver

salto no tempo da memória
para achar que deus é hospital
tão louca a vida e era ela a louca
maura lopes cançado

salto no tempo de outrora
para buscar meus encantamentos
e encontro apenas acasos
a flor murcha do mandacaru depois da chuva

por que lembrar o que não quero?
por que escrever apenas o que dita a razão?
por que seguir fantasmas e almas mortas?
por que fazer perguntas que já têm respostas?

lá em washington obama adoça seu café
com duas colheres de açúcar de cuba
acende um charuto presente de fidel
e diz que o mundo ficou melhor

142 crianças - talvez mais, muitas mais -
que estudavam numa escola do afeganistão
são recebidas pelas virgens do alcorão
no céu encomendado pelo talibã

agora ouço que uma criança acabou de morrer
em belo horizonte trancada ao sol dentro do carro
e o papa afirmou que cachorro tem alma e vai para o céu
as crianças do talibã ficaram ainda mais felizes

o mundo gira e meu cérebro repuxa de dor
não quero encontrar a sylvia nem a maura
quero gritar o meu quase desespero
sem precisar derramar lágrimas

salto de novo no tempo da história
e olho meus companheiros de outrora
os que sobreviveram e o outros tantos que morreram
e não há o que fazer quanto a isso

se ainda tenho estrada à frente
tomo consciência de que o caminho está mais lento
e em breve acaba - preciso calcular cada passo
e devo evitar as pedras e os espinhos

fugiram-se-me os encantos do recomeço
ficaram os encargos das pílulas e dos colírios
se abraço à noite meu travesseiro
é para evitar pesadelos e mau despertar

traduzo poetas que arrostaram o medo
e reviraram as vísceras
tenho deles apenas o estranhamento
de tentar viver o tempo que ainda me pertence



s.p./20 de dezembro de 2014.



20 de fev. de 2016

AMAR-TE É TRAMA


18

  

na serra da Mantiqueira



(Gerson Santos – Vista do Marins, na Serra da Mantiqueira)



gosto de caminhar
e olhar
para trás e ver
a marca de meus pés
na poeira,
na poeira do caminho
na Serra da Mantiqueira

porque é assim que deixo
na poeira do caminho
o traço da minha vida:
ficam marcas, finas marcas,
dos passos lentos
que o vento,
o vento frio da Serra da Mantiqueira
vai apagando,
aos poucos, aos poucos, aos poucos



13.5.2013/25.5.2013

19 de fev. de 2016

AMAR-TE É TRAMA

17     


mulheres por quem chorei







todas as mulheres por quem chorei:

primeiro, por minha mãe - depois
que ela muito por mim chorou -
quando morreu


segundo, minha irmã, linda e mãe
da terceira mulher por quem chorei:
sua filha, tão jovem quanto a mãe,
quarta geração de seu amor;

quarta... a quarta mulher por quem chorei...

não, vou enumerá-las mais
foram tantas e tantas amigas
jovens amigas, velhas amigas,
amigas,
consoladoras que não viveram o tempo
de consolar
meninas, mulheres ou simplesmente
as que a vida me fez conhecer e amar

foram muitas as mulheres que amei

e foram todas as mulheres por quem chorei
as que se foram, sim,
que não sei hoje quantas,
quantas ainda ficaram para
- quando eu me for, enfim -
derramarem pelo menos
uma lágrima por mim




8.3.2013