31 de mai. de 2015

abraço









se da vida


um certo cansaço


retarda teu passo,


aceita um abraço


não como um laço


que te prenda e retarde


mas como um sol que arde


de novo na tarde








Joinville/SC - 17.3.2015

30 de mai. de 2015

madrigal


(Antonio Tordesillas)



um sonho talvez
seja preciso
para falar do meu amor
um sonho talvez
seja impreciso
para compreenderes tudo
por isso, Amor, não sei
se te falo de meus sonhos
ou se te peço apenas
um doce beijo


quarta-feira, 27 de dezembro de 2000



OBS.: ESSA CANÇÃO EU IMAGINO ASSIM: 
UM LONGO SOLO DE VIOLÃO OU VIOLINO
E SÓ NO FINAL, A VOZ DO/A CANTOR/A.

29 de mai. de 2015

taças



(Barndog)


meia taça
de champagne,
meia taça
o sutiã

contêm ambos
o mesmo sonho:
ditirambos
que eu te proponho

e do champagne
a taça inteira
borbulha o fogo,
do teu seio
o leite branco
escorre o gozo

se te bebo,
me embriago;
se te toco,
enlouqueço

da meia taça
de champagne
sobem gotas
de prazer

na meia taça
do sutiã,
teu colo inteiro
são meus sóis
cada manhã


quarta-feira, 27 de dezembro de 2000

27 de mai. de 2015

sonhar contigo




(Paul Klee - full moon)




à mesa, enfarado,


empurrar o prato,


no sofá deitado


ouvir João Donato,


curtir a tarde


assim sozinho


o amor que arde


o amor feito espinho


só deixar a preguiça


tomar conta do corpo


ouvir o vento na treliça


roncar como um porco


sonhar contigo


com teu carinho


dormir contigo


mesmo sozinho






quinta-feira, 21 de dezembro de 2000



26 de mai. de 2015

Canção de Minas



(Foto de Fátima Alves)



Quero você
na garupa de  minha moto,
subindo e descendo
montanhas de Minas.

Liberdade é cachoeira
furando a pedra.
Liberdade é mandacaru
crescendo na serra.
Liberdade é maritaca
voando no céu.

Quero você
na viagem de meus sonhos
como nuvem que molha
as asas do bem-te-vi.
Quero você
na viragem do vento
no braço do rio
em banho de cachoeira.

Esqueça o que ficou
nas vidas que não vi,
em cada pedra de montanha
em cada espinho do caminho
deixe as tristezas do passado
e vamos os dois, amor,
na garupa de minha moto,
subindo e descendo
os meus sonhos de Gerais.





quinta-feira, 14 de dezembro de 2000

25 de mai. de 2015

SOBRE BEM-TE-VIS E MORALISMOS





Dizem que é o sabiá a ave símbolo do Brasil. Sem desdouro desse belo pássaro, acho que esse título devia ser dado ao bem-te-vi. Sabe por quê?

Porque bem-te-vi se vê em todo lugar. No meu quintal, por exemplo, moram vários. E por todo lado que se vai, é só prestar atenção, lá está um esganiçado bem-te-vi a tartamudear ou a gritar alto e em bom som o seu canto onomatopaico.

E seu canto (ou seria melhor dizer seu grito?) é uma espécie de consciência, de aviso, de alerta: se desmatam uma floresta, pode estar certo de que lá está o assanhado pássaro a lembrar: bem-te-vi, bem te vi que não prestas.

Em escritórios, seria uma ave bastante útil: cada vez que um empresário estivesse a tentar comprar um político, lá estaria o bem-te-vi a lembrar: bem te vi, bem te vi, seu corruptor.

Nos gabinetes de políticos, então? Seria uma festa, o festival de bem-te-vis a alertar a todos: bem-te-vi, bem-te-vi, bem-te-vi. Pena é que ficariam roucos, de tanto gritar e ninguém os ouvir.

Para os conservadores, então, não haveria bem-te-vis que chegassem!

Duas historinhas, de minha vida, sobre essa raça triste, que é a raça dos conservadores, dos hipócritas e moralistas. Vivo encontrando-os por aí, em suas casacas pretas, mesmo quando usam bermudas, nas praias ou nos clubes elegantes. São uma gente que tem sobre si uma nuvem negra de caradurismo. Em sua maioria, são aparentemente inofensivos, mas... cuidado! Não dê poder, por menor que seja, a um moralista, que logo ele vira um Edward mãos de tesoura. Lembra o personagem do filme? Aquele estranho de mãos em forma de tesouras, que tanto cortava magnificamente os cabelos das madames quanto dava formatos às árvores?

Pois, é: os moralistas, quando têm algum poder, são assim. Mãos de tesoura. Cortam tudo o que lhes desagrada. Sem nenhuma arte, no entanto.

Mas, vamos às histórias.

A primeira. Tinha eu uns quatorze anos, formava-me no antigo ginasial, as quatro séries que vinham logo depois do grupo escolar. Difícil explicar isso, mas seria hoje a oitava série do ensino fundamental, acho. Mais ou menos isso. Naquele tempo, tinha formatura. E então, ganhei do meu padrinho um livro: os Lusíadas, uma edição bastante interessante, da FTD. Li-o, encantado, embora ainda entendesse pouco da saga heróica de Camões. Mas, achei algo estranho, na tal edição: a numeração dos versos, lá pelo fim da aventura, tinha uma lacuna. Isto só fui descobrir mais tarde, na Faculdade de Letras: faltavam os versos do canto IX, o canto da Ilha Namorada, quando os navegantes, ao voltar para a velha terra, recebem da deusa o presente por suas conquistas, uma ilha povoada de ninfas, belas, loiras, nuas, para um banquete pantagruélico de sensualidade. Os padres da FTD, simplesmente, pularam o canto nono. Fico, agora, pensando: devia estar lá, atrás da cadeira do editor de batina, o nosso pássaro a gritar bem alto: bem-te-vi, bem-te-vi, seu imbecil!

Corta. Para a segunda história. Muitos e muitos anos se passaram. Até já me aposentei da dura lida de professor. Escrevo. E sempre que posso, atormento os amigos, para achar um lugarzinho onde publicar meus textos. E então, reencontro o José Arlindo. Camarada de lutas e lidas. Eu, aqui, em Sampa. Ele, lá, em BH. Correspondemo-nos. Por e-mail, claro. (Já estão dizendo que e-mail é coisa de gente velha, mas tudo bem). Gentil, como sempre, leva o Zé Arlindo a um amigo dele os meus textos. Para publicar numa revista de, digamos, certo prestígio: a Revista da Academia Mineira de Letras (afinal, embora não acadêmico, sou mineiro, uai!). Publicam dois contos meus. Exulto.

E o bem-te-vi, onde entra? Calma. Ele está sobrevoando e gritando por aí. Logo, logo, ele volta.

Para uma plateia seleta, aqui em Sampa, propus-me ler um de meus contos. Escolhi o que fora publicado pela Revista da Academia Mineira. Para isso, releio o original, no computador e, depois, o que está na revista, que vai ser a fonte da apresentação. Então, surpresa! Encontrei várias diferenças... e sabe em quê? Em trechos mais, digamos, fortes, do conto.

Explico. No conto, falo de um menino que tem o primeiro alumbramento com uma dançarina de cabaré, que ele espiona trepado (sem trocadilho, sem outras alusões) numa árvore, numa insone madrugada mineira. A descrição é realista. Afinal, um escritor (e isso é ponto de honra, para mim) não pode ter medo das palavras. Se elas estão aí, se existem, podem e devem ser empregadas, quando necessárias.

Adivinhem, no entanto: cortaram várias palavras, frases inteiras, sei lá por quê. Ofenderiam possivelmente o ouvido sensível de acadêmicos? Ou o de leitores da prestigiosa revista? Não sei. Apenas sei que a censura já acabou há muito tempo e, se as minhas palavras os ofendiam, que não publicassem o conto. Era uma prerrogativa que eles, os editores, teriam. E eu nem ficaria sabendo o motivo. E não precisaria convocar os meus bem-te-vis para gritarem mais alto o seu já tão estridente grito: bem-te-vi, seus urubus!

Pois, é: se os moralistas, os conservadores, têm medo das palavras, de simples palavras, quanto mais de outras coisas, mais importantes, mais vitais. O mundo, para eles, tem de ser o que eles imaginam, tem de ser sempre igual, com os mesmos e velhos paradigmas, e não o que o mundo é, na realidade, cheio de som e fúria, como diria o Bardo, cheio de incertezas e safadezas, humano, demasiado humano, como diria o Nietzsche.

Por isso, acho que o bem-te-vi poderia ser bem essa espécie de alerta, em nossas consciências, para que deixássemos de ser aquilo que ele, o passarinho sem-vergonha, vive apontando que nos viu fazer ou pensar, para que deixemos de ser sempre os mesmos, os mesmos.


Bem te vejo, meu bem-te-vi! 


20.11.2007



22 de mai. de 2015

RELENDO ROSA



(Carybé - cavalgada)




Redescubro Rosa, o Guimarães. Releio, calmo, estórias e mais estórias. Rumino seus bois, pastoreio em suas veredas, ouço como música o chocalho da cascavel, me curvo à sua picada, estremeço no miado das onças, ah! as onças, fugidias, pinturas impressionistas no sertão do velho Chico. Leio e releio cada invenção metalinguística, cada requebro vocabular, cada quebrada sintática, enquanto lá embaixo trabalham minhas tripas no ato de defecar. Sim, porque releio Rosa no trono, do qual nenhum homem escapa, aliás, nenhum ser vivo escapa. Comer, digerir, cagar, nisso se resume a vida, pode-se dizer. O caboclo diz descomer, para o inglório cagar. Rosa, não sei. Não se descome Rosa, só se digere, o que faz diferir o que entra pela boca do que entra pelos olhos: o primeiro vai aos intestinos e se transforma em fezes para manter a vida; o segundo vai direto ao cérebro e se transforma em possibilidades de encantamento para iluminar o pensamento. Porque o encanto, mais do que encantado, está lá, inteirinho, em cada frase, em cada invenção, em cada personagem bizarro ou não, os nhôs do Rosa. O encantamento sertanejo, sertão vivo, vivido, andado e palmilhado com diplomacia e elegância de analista. Nada se lhe escapa, enquanto tudo se lhe entrega em mistério, em música, em sombra e luz de veredas, em pata de cavalo ou chifre de boi. Rosa rasga o verbo e desentranha o sertanejo, o boiadeiro, usos e costumes singelos em metáforas de beletrismo, mas não o beletrismo de academia, mas aquele do linguajar rústico, de nonadas recheado, pleno de angústia e sarcasmo, mesmo diante da desgraça. Cago-me em Rosa, intestinos soltos, a mente livre, o encanto suspendido em silêncio, no único momento e lugar em que estou só, tremendamente só comigo mesmo. E Rosa é a companhia silenciosa, ruminante, um boi na privada, na vida privada de sonho.


7.6.2006

20 de mai. de 2015

ENVELHECER



 (Hugo Morbelli)



Envelhecer é ver amigos, parentes, conhecidos e, até mesmo, ídolos e personagens públicos sendo ceifados um a um pela indesejada e inevitável última companheira. Envelhecer é resistir. Sabendo que a resistência é inútil. Envelhecer é solidão, embora viver seja a única alternativa. Pior, no entanto, que perder pelo caminho as pessoas que amamos ou conhecemos é sentir o tédio da vida. Para a saudade, inventamos subterfúgios. Para o tédio, não há recurso possível. O tédio leva à indesejada, sem apelação. E quando bate o tédio, olhamos para trás e vemos que vida de ontem era tão melhor que a vida de hoje. Vemos que todos os nossos valores foram jogados, solenemente ou não, na lata de lixo da história. Morremos, então. Não literalmente. Mas por dentro. Como se não houvesse mais nada a viver. E essa é a pior das mortes. A morte dos valores. Dos valores daquilo que consideramos nossa geração. E essa morte traz o mais atroz de todos os sofrimentos: o tédio da vida. A incompreensão do que se passa à volta. A descrença no homem. 

Foi pensando nisso que resolvi escrever. Escrever para combater o tédio. Porque escrever é uma forma não apenas de continuar vivo, mas principalmente de racionalizar o irracional. De evitar que as emoções trazidas pelo tédio da vida tornem os anos por virem ainda mais cruéis e amargos. E começo, então, a pensar que envelhecer não é olhar para trás e contar cadáveres. E começo a pensar que envelhecer não é comparar valores e encher de fel os dias de tédio. Começo a pensar que, sim, envelhecer é combater a irracional vontade de dar emoção, através da saudade, aos inexequíveis velhos tempos. Envelhecer é, sim, resistir. Mas resistir às armadilhas da emocionalidade inútil de pensar que tudo era melhor no nosso tempo. Não existe nosso tempo com esse subtexto saudosista de que antes era melhor. O antes só era melhor porque éramos mais jovens e nosso organismo tinha menos problemas para funcionar. Porque, na verdade, mesmo, na verdade mais verdadeira, sem qualquer conotação passadista, o nosso tempo é o tempo em que estamos vivendo. É o hoje. Com todos os seus valores. Por menos que concordemos com eles. Aliás, discordar dos valores de nosso tempo não deve ter por origem o retrovisor do carro da vida, mas a surpresa que pode haver depois da próxima curva. Devemos discordar com o olhar no futuro. O passado não pode mais ser vivido nem modificado. O presente, não o dominamos completamente, pois escorre a cada segundo por entre nossos dedos. Só nos resta o futuro. Esse, sim, pode ser, mesmo que de forma sutil ou canhestra, moldado à nossa vontade. Deixar de pensar nisso, deixar de sonhar com isso significa ser dominado pelo tédio. E morrer a pior das mortes que é viver como cadáver insepulto a carregar nas costas o próprio caixão da vida.




Segunda-feira, Março 15, 2004

11 de mai. de 2015

A GATA KARINA(*)



(Alain Aslan)




Eu morava lá no Jaçanã
Com uma gata de nome Karina
Só chegava em casa de manhã
Com seu pelo purpurina

(bis) Purpurina, purpurina
        A gata é a Karina

 Segunda comigo ela saía
Na terça era com o João
Que ela me traía
Na quarta o João ela enrolava
E com o Pedro ela deitava
Na quinta dava um perdido
E o Antônio ela beijava

(bis) Beijava, beijava
        A gata só beijava

Na sexta o pelo mais brilhava
No bar de karaokê
No sábado ela dançava
Com o Carlos um rolê
No domingo descansava
A gata descansava
Nos braços de outro qualquer

(bis) Karina, Karina
        Isto, sim, era mulher

Com seu pelo purpurina
Essa gata me alucina
Karina, Karina
Com seu jeito de menina
Chega em casa de manhã
Karina, Karina
Meu nome sujo na praça
Para dar o que ela pedia
Karina, Karina
E a todos dava de graça
Eu pagava e só sofria
Karina, Karina
Só chega em casa de manhã
Karina, Karina
Me mudei do Jaçanã!


(*) Sugestão de letra para um “sambinha” à moda antiga, como os de Noel ou Lamartine, ou, até mesmo, que lembre Adoniran.




10 de mai. de 2015

meu olho



(Odilon Redon)





meu olho é meu inimigo

e preciso ficar de olho nele

mas o olho que vigia 

é o mesmo olho vigiado



por isso já não sei

se minha mente ainda confia

que esteja tudo concertado

entre os dois que são um só



que vire e revire o globo

ocular, que vire e se revire sem dó,

não quero que faça de bobo

o olho vigiado ao olho que vigia

ainda que ambos sejam um só



se fica torto o olho vigiado

que fique torto o olho que vigia

só não quero ser eu o logrado

a não ver em pleno dia



o que nunca vejo de madrugada

e cego como morcego

perca a paciência e o sossego

levando tombos pela estrada



que vigie o olho ao olho

que ao olho o outro olho confie

não fique eu assim zarolho

tropeçando em cada pedra



sei que cada olho que nega

enxergar menos que o outro

esconde em cada prega

a doença que me cega



então que o olho vigiado

seja cúmplice do que vigia

e também vigie por seu lado

dia e noite e noite e dia




24.4.2015


8 de mai. de 2015

SAUDADES



(Minha mãe, eu e meus filhos)


(Para minha tia Ceci 
para todas as outras mães 
que eu tive 
e que também me deixaram...)





Quando minha mãe morreu, quase não chorei.

Não sei bem nem o dia em que minha mãe morreu. Provavelmente, em janeiro, num dia qualquer de janeiro. Ano? Não sei. Não me lembro.

Sim, não chorei quando minha mãe morreu, nem guardei a data de sua morte.

Para que iria chorar no dia da morte de minha mãe? Para que vou guardar o dia de sua morte? Para levar flores a seu túmulo e chorar um pouco? Para quê. Sim, para quê?

Não chorei no dia em que minha mãe morreu, porque sabia que iria ter todos os dias do resto da minha vida para chorar por ela. E faço isso, sim, um pouco, só um pouco, à noite, no silêncio da madrugada, ou no meio do trânsito, quando fecha um farol ou vejo alguém que, por uma dessas armadilhas da visão, pode se parecer com ela. Quando frito na gordura bem quente um torresminho, que ela fazia tão bem.

Por isso, não chorei quando minha mãe morreu. Ou chorei muito pouco.

Porque há lágrimas que nos acompanham pela vida toda, mesmo que nossos olhos estejam secos, mesmo que nosso sentimento pareça arrefecido. Porque há lágrimas que somente nós podemos sentir, ao rolar, enxutas, de nossos olhos: não molham o rosto, mas molham nosso pensamento e nossa memória. Que não nos deixam esquecer jamais.

Não sei o dia em que minha mãe morreu.

Por que devo lembrar uma data, apenas, se me lembro dela todos os dias de minha vida? Se todos os dias minha mãe morre e renasce em meu pensamento? Não preciso de uma data para lembrar que ela me deixou. Apenas preciso saber, todos os dias de minha vida, que ela me deixou. Assim como vou deixar os meus filhos um dia. Assim como todas as pessoas que amamos nos deixam um dia.

Não há fatalismo na morte.

Não há tristeza na morte.

Não há desdouro em morrer. Há apenas, na morte de um ente querido, o vazio que nos acompanhará até o dia em que também seremos o vazio na mente e na vida dos que nos sobreviverem.

Por isso, não se deve chorar, quando morre alguém que amamos. Deve-se, apenas, deixar que o silêncio acompanhe o ato, porque teremos todos os dias do resto de nossas vidas para chorar a lágrima mais cruel: a saudade.


4.10.2006




6 de mai. de 2015

Trova - vou compor para você





vou compor para você
do mundo a mais bela trova,
e gravar num pé de ipê
do meu grande amor a prova.



são paulo, 5 de abril de 2006

4 de mai. de 2015

O QUE É FELICIDADE



(Airton das Neves - cochilo na rede)


Por causa de alguns artigos em que me confesso ateu e traço comentários sobre a inexistência histórica do Cristo, recebi um e-mail interessante. O remetente deve ser crente, seguidor dessas igrejas que abundam por aí e colocam o nome de Cristo na boca de seus seguidores como chiclete. Eles mascam, mascam e o cospem em qualquer lugar, a qualquer hora, sem pensar no que estão falando. Pois bem, nas entrelinhas, esse indivíduo me acusa de ser infeliz porque não creio no Cristo dele ou deles. E diz que, independente de sermos isso ou aquilo, o Cristo nos ama. Bem, isto é problema do Cristo: se ele me ama ou não. Absolutamente não interfere – esse pretenso amor do pretenso Cristo – nem um átimo em minha vida. Em segundo lugar, e isso é realmente o que interessa, tal assertiva me levou a pensar no que seja felicidade.

O missivista acha que sou infeliz e credita a felicidade à crença em algo que ele não sabe muito bem o que é e que chama de amor do Cristo pela humanidade. Ou seja, só é feliz o indivíduo que acredita nisso. Num valor que não precisa ser provado. Basta que se creia nele. Portanto, a felicidade está em algo absolutamente abstrato. É como achar que só é feliz quem acredita em saci-pererê ou na luz das estrelas, tanto faz. Com a diferença que a luz das estrelas, embora captada com milhões de anos luz de atraso, existe. O que eu quero dizer é que o ser humano se apega a crenças, a qualquer tipo de crenças, com o intuito de ser feliz. Coloca a felicidade como um bem que depende de outras coisas. De um bem que não está no ser humano, mas fora dele. Busca-o, principalmente, no abstrato ou, como o fez o ser humano primitivo, na crença em forças sobrenaturais, em deuses. Deuses que foram criados pelo ser humano com o intuito de explicar aquilo que ele não sabia. Logo, o ser humano continua na ignorância do que seja a felicidade.

Realmente, o conceito de felicidade não se acha registrado em nenhum dicionário e não está efetivamente explicado em nenhum compêndio de filosofia, por mais tinta tenham gastado filósofos, religiosos e outros na tentativa de explicá-lo. Voltaire, por exemplo, com seu Cândido, comete uma daquelas besteiras históricas – besteiras que se arraigam para sempre no imaginário do ser humano e se tornam paradigma – quando coloca na aceitação e numa pretensa pureza a origem da felicidade. Antes dele, a bíblia dos judeus já nos dera a história de Jó, também um paradigma equivocado de aceitação de todas as mazelas para agradar a um deus e alcançar a felicidade. Todas essas tentativas de metaforizar a felicidade através de exemplos morais e edificantes só serviram, mesmo, para estupidificar ainda mais a inteligência humana e reduzir uma das mais angustiantes buscas do ser humano a questiúnculas infantis e absurdas.

Na verdade, a felicidade não é um estado a que o ser humano possa chegar, como um lugar, ou um paraíso. Também não é um estado de espírito, ou seja, um sentimento que brota de uma motivação interior ou exterior. Porque simplesmente não existe o que se chama comumente felicidade. Ao dar um signo a um sentimento que decorre de um momento de adequação entre uma expectativa e sua realização, o ser humano criou o mito mais cruel de toda a sua existência – o mito da felicidade. Cruel, porque não se cumprirá: o ser humano, como entidade, jamais terá felicidade. Ou seja, não é um bem que possa ser alcançado pela humanidade. Não se coletiviza nem se corporifica no indivíduo. Nem a humanidade nem o ser humano individualizado, portanto, atingirão a felicidade. Simplesmente porque é um mito, algo inventado, transformado em moeda de troca por filosofias rudes que pretendem ver na busca da felicidade uma forma de escravizar o ser humano e explorá-lo politicamente e economicamente.

Se desmistificarmos esse mito, se compreendermos que o ser humano tem um destino muito mais nobre na terra, do que buscar utopias, muitas crenças sociais, políticas e religiosas desmoronam como um castelo de cartas. E o emprego de muita gente vai para o ralo. Fortunas deixarão de ser amealhadas. Deuses serão derrubados de seus pórticos. Líderes perderão seu poder sobre a multidão. Em compensação, livres de entraves escravocráticos, o ser humano poderá ganhar o respeito a si mesmo e ao outro e buscar valores mais palpáveis e necessários à sua sobrevivência no universo: a adequação à natureza, a busca de melhores condições de vida, o equilíbrio entre o ter e o ser, a evolução do conhecimento e sua utilização para a vida e não para a morte. E, acima de tudo, deixar de lado o culto da morte, apanágio de crenças primitivas, que serão banidas para sempre do imaginário humano.


Mas isso também é uma utopia. Infelizmente...


25.03.04

2 de mai. de 2015

QUANDO É OUTRA A CAVERNA (SOB OS BIGODES DE NIETZSCHE)




(Nietzsche, por Toni d'Agostinho)


Uma caverna se esconde
sob os bigodes de Nietzsche:
nela cabem destinos,
nela cabem desdouros.

Um sonho também ali se esconde,
sob os bigodes de Nietzsche:
sorri, sozinho, como um louco
mas sonha sonhos de homens livres.

Não há na caverna de Nietzsche,
ali escondida sob os bigodes,
nem mistérios de Platão
que, coitado, na sua idiotia
expulsou toda a poesia
que podia haver no mundo;
nem há também nesta caverna
as socráticas falsidades,
nem deuses de fachada,
nem cristianismos rastejadores
ou quaisquer crenças de vento e dor,
porque, da caverna sob os bigodes,
um trovão de liberdade
levou para o alto o ser humano,
como um vôo de águia em céu de abril.

Dos bigodes de Nietzsche
à caverna que se desenha embaixo,
limpa o vento todo o podre
de fraquezas ancestrais
que não podem ficar guardadas
por mais tempo dentro do homem:
nessa caverna, não se matam deuses,
que estão mortos desde sempre,
mas destrói seus altares
todo o vento que sai dali.

Universos para além do homem
cria o sábio na montanha:
palavras em dardos transformadas,
dali de dentro jorradas,
não palavras melindradas
de um sábio louco a ditar
à irmã mais idiota
um mar de símbolos que ela comeu
e aos pés de Hitler devolveu
em diarréia colossal:
os pêlos do bigode pensador
eram muito mais indigestos
que os pêlos do bigode ditador.

Dali bem de dentro,
da caverna que se esconde
sob os duros pelos dos bigodes
(tão plurais, tão magistrais)
nova aurora (ou um novo espanto)
fez o homem mais completo,
destronou o padre eterno,
e fez nascer um novo canto;
e esse homem renovado
constrói em cada passo
os mundos que hoje enlaço
e envio via Internet
a cada canto e a cada mente
que celebre, enfim, o novo tempo
do homem livre como o vento
que sai como um lampejo
da caverna que troveja
sob os bigodes de Nietzsche.




13.9.2004

1 de mai. de 2015

LETRAS DE MÚSICAS



(Dolores Duran)


Há uma discussão meio “sexo dos anjos” se letra de música é poesia. Primeiro, precisaríamos determinar ou definir o que é poesia. Há um poema de um autor espanhol, Gustavo Adolfo Bécquer, que diz assim:


            ¿QUÉ ES POESÍA?


¿Qué es poesía? -- dices mientras clavas
  en mi pupila tu pupila azul.
¿Qué es poesía? ¿Y tú me lo preguntas?
  Poesía... eres tú.




Então, embora POEMA e POESIA sejam usados correntemente como sinônimos, eu faço uma distinção: POESIA é algo abstrato, que existe em qualquer coisa ou pessoa que eu queira ou veja ou sinta: num por do sol, numa flor, numa mulher... Já o POEMA é a concretização ideal da poesia na literatura, sua forma literária. Assim, pode haver poema sem poesia, assim como pode haver poesia sem poema.

Não nos esqueçamos que a língua portuguesa começou a se formar, a se distinguir do galego, através das cantigas dos trovadores medievais, cantigas de amigo, de amor ou de escárnio, que nada mais eram do que letras de música.

Assim, uma letra de música, como qualquer poema, pode ou não conter poesia. E a palavra, quando cantada, adquire uma nova dimensão, dada pela música, pela melodia. Por isso, talvez, muitos relutem em dar à letra de música o status de poesia. No entanto, são sim, as letras de música, poemas. E muitas vezes poemas de grande beleza, seja por seu conteúdo, por sua mensagem, seja por suas palavras bem arranjadas na estrutura de poema. Claro que a letra de música terá uma “forma” ou “fôrma”, uma maneira peculiar, de ser escrita, assim como temos formas ou fôrmas fixas, como o soneto, o rondó etc.

Quando comecei a pensar numa letra de música que gostaria de ter escrito, entrei em parafuso. Se for pensar somente na música popular brasileira, que começa a tomar forma lá pelos finais do século XIX e começo do XX, eu lembrei que já compilara talvez umas três ou quatro mil músicas de que gosto.  E mais: cada canção tem lá um verso ou dois que eu gostaria de ter escrito. Querem ver? Como esquecer Chiquinha Gonzaga?

“ò lua branca, por quem és, tem dó de mim”

Ou os versos de Catullo da Paixão Cearense:

“não há, ó gente, ó não
luar como esse do sertão...”

Noel Rosa:

“quem nasce lá na Vila...”

Ou a valsa canção de Antenógenes Silva, com os versos de Hernâni Campos:

“tu passaste a vida a sorrir,
Pisando corações...”

São tantos os autores, são tantos os poetas de nossa música popular, incluindo letras de sambas, valsas, marchinhas, baiões, modinhas, bossa nova, jovem guarda, tropicalismo etc. etc. etc., que ficaria aqui a noite toda lembrando músicas e letras que eu gostaria de ter escrito. Assim, optei por uma letra de uma cantora e compositora das melhores que tivemos, uma mulher que nos deixou cedo, mas tem uma obra que eu considero das melhores de nossa música popular. Refiro-me a Dolores Duran. E a letra que eu escolhi me toca profundamente, por sua simplicidade e beleza:

A NOITE DE MEU BEM

Hoje eu quero a rosa mais linda que houver
quero a primeira estrela que vier
para enfeitar a noite do meu bem

Hoje eu quero paz de criança dormindo
quero o abandono de flores se abrindo
para enfeitar a noite do meu bem

Quero a alegria de um barco voltando
quero ternura de mãos se encontrando
para enfeitar a noite do meu bem

Hoje eu quero o amor, o amor mais profundo
eu quero toda beleza do mundo
para enfeitar a noite do meu bem

Mas como esse bem demorou a chegar
eu já nem sei se terei no olhar
toda ternura que eu quero lhe dar


29.9.2011