31 de out. de 2021

desova

 


 

na noite de lua nova

no meio da mata

a polícia desova

mais um fresco presunto

não há bala de prata

nem marca de chicote

nem uivo de coiote

agora só se trata

de um e único assunto

como não deixar rastro

no meio da mata

para qualquer impiastro

quando se desova

em noite de lua nova

mais um fresco presunto

 


26.9.2020

 

 (Ilustração: Debora Arango - 1907-2005; violencia)

 

 

 

27 de out. de 2021

descrença

 




os braços lassos descaem ao longo do corpo

sem os abraços

a boca de desejos atrás das cortinas se retraem

pelos não beijos

a esperança morre em cada morte – em cada

criança

a morte esperneia em cada adeus – em cada

sorte

fecham-se túmulos sem flores e sem choro

o vento carrega a lágrima seca nos olhos baços

sem beijos e sem abraços

murcha o desejo e não canta o cordão de carnaval

você pensa – vai passar – vai passar – vai passar

mas volta o vírus à revolta dos que o renegam

morre o pai

morre a mãe

morrem o avô e a avó

os lamentos sobem morros e morrem no mar

o piano no sótão cobre-se da poeira do tempo

no chão de pedra não nascem flores

e os espinhos perfuram os corações solitários

você pensa – vai acabar – vai acabar – vai acabar

mas volta o vômito podre dos defuntos no frigorífico

e o chão de vidro tem marcas de rostos que não sorriem

criança – não verás país nenhum como este

e o arremedo de paixão contraria todos os prognósticos

sabe-se apenas que há vultos brancos em estertores

sabe-se apenas que há pulmões implodindo nos balões vazios

sabe-se apenas que há silêncios que nunca entenderemos

morre-se aqui

morre-se ali

morre o fulano e a menina ainda virgem

morre o cientista e morre o motorista

morre a mulher do chefe e até mesmo o chefe da estação

respira – alguém diz – respira

o giroflex gira e leva o anão do bairro

e leva o banqueiro – todos se congraçam agora

no mesmo desejo de ar e de vida

há o cheiro de uma guerra que se perdeu há um século

e há o tubo de ensaio no laboratório

mas não há juízo para quem quer abraços e beijos

e os braços que eram lassos apertam corpos

e o vírus muda seus espinhos e caminha pelos paços

e caminha pelas travessas

e entra pelas casas

derruba fronteiras e entranha-se nas entranhas

das aeronaves e dos salões de baile

o churrasco de domingo queima o novo tempero

a festa de aniversário tem confetes invisíveis

e a dança macabra tem trejeitos de espantalhos

quem morre não descansa – apenas morre

quem vive não se emenda – apenas vive

porque não se crê naquilo que não se vê



21.1.2021

(Ilustração: Monika Meglić - danse macabre)

24 de out. de 2021

depois do abandono

 




depois que tudo isso houver passado

e o tempo renovado

trouxer de volta os eflúvios de encantos e desencantos

vou tirar sua máscara como tiraria sua calcinha

e vou tirar sua calcinha como tiraria sua máscara

nos escaninhos de trilhas já percorridas

para me entregar ao seu sorriso maroto

como a pétala de rosa se entrega ao vento

depois de ter desnudada a sua corola

não sei o quanto de espanto ainda nos aguarda

mas tudo quanto sofreei

desaguará no espetáculo de sua nudez

no depois de tudo

no depois do abandono





26.3.2021

(Ilustração: Alexander Yacovlev - desnudo)

21 de out. de 2021

dentro

 



muito bom beber uma cachaça

dentro da noite nem quente nem fria

ouvindo o som fantástico

de uma orquestra sinfônica

sons de violinos e violoncelos

baixos e clarins

trompas e madeiras

percussão

ao ritmo do coração

as mãos flutuantes do maestro

a comandar o solo dos violinos

brisa a beijar folhas de bananeiras

o coração sossegado ao vibrato

só o amor batendo na aorta

e o céu de lua e estrelas sobre cabeça a rodar

a rodar de prazer

ao som da orquestra sinfônica

ao calor da bebida descendo suave

se esse momento não é feliz

completamente feliz

mesmo que orgasmático

é porque dentro de mim pulsa

como pulsa a noite

o desejo inelutável de estar dentro de você



4.10.2020

(Ilustração: Luis Borrero - Incubus)

18 de out. de 2021

delírios

 



refletidos nos vários espelhos

os corpos contorcem-se

em meneios e floreios

cipoados em lianas e ventosas os amantes

esplendem e explodem

na correnteza dos rios

encachoeirados

que descem a montanha

pedras e troncos se misturam em redemoinhos

os olhos

inúteis remansos

logo engolidos pelo turbilhão de águas e ventos de fogo

os amantes

destroem-se a si mesmos

na antropofagia de se comerem

como peixes elétricos nos raios de luz

nos retorcidos troncos

pernas e seios e coxas e ventres em tempestades

até que o rio nebuloso engula

enfim

o espasmo final dos amantes

os corpos

em mil estilhaços dos espelhos partidos

em mil pedaços no espasmo

da pequena morte

os corpos

em delírios refletidos

contorcidos

exaustos da tempestade

perdidos

em si mesmos

em seus próprios cipoais

de amor

e tédio



26.3.2021

(Ilustração: Alona Kovalska - orgasm time - 2018)

15 de out. de 2021

deleitosas mamas

 





deleitosas mamas

de maciez de algodão-doce

sugo teus róseos mamilos com cuidados de beija-flor

nelas pulsa o suave regaço de seda

ao roçagar de meu anseio



nelas percorro reentrâncias de rosas brancas

no gosto leitoso de doces memórias maternais

ambrosia servida em festas bacantes

agora ao meu paladar edipiano e faminto

a escorrer em gozo aos lábios e à língua líquida



nelas mergulho lentamente

ao marulhar do mel

- delícias dulcíssimas dos teus seios -

no gorgolejar do teu leite

do teu vinho e do teu gozo



12.1.2021

(Ilustração: foto de Augusto P. Gomes)



12 de out. de 2021

decreto

 


preencho o espaço entre teus seios

com meus anseios

molho teus mamilos com minha língua

lambendo tuas aréolas como lobo

desço a língua ao teu um umbigo

exploro o teu corpo em poucos segundos

logo serás tu a bendizer orações

de puro prazer à vara que te abençoa

tudo se alumbra na penumbra da droga

da droga do amor em piras eternas

o teu grelo de encontro à minha língua

a tua boca de encontro à minha glande

aos deuses que se ocultam entre tuas coxas

tributo meu culto com fogos e folganças

teus olhos espertos explodem folguedos

teus gemidos descobrem teus segredos

sou teu prisioneiro em tendas de areia

és meu tesouro no fundo de vasta bateia

e enquanto o olimpo se fecha em breu

soluço o espanto final que decreta

que sou para sempre somente teu



7.6.2021

(Ilustração: Frida Castelli) 

9 de out. de 2021

cuidados

 



tenho contigo cuidados de amante

sem no entanto estender sobre ti

redes que dilacerem e aprisionem



tu só és minha no momento da entrega

quando teus olhos reviram teus orgasmos

tu só és minha neste etéreo instante

sem olhos de sangue a seguir teus rastros



tua é a vida e assim te vislumbro

asas abertas sobre o pó das estrelas



que sejas deusa ou simples caminhante

beijo teus pés e venero teus gestos

tendo sempre contigo cuidado de amante

sem prender em qualquer de meus arroubos

teus desejos ou mesmo os teus desencantos



19.12.2020

(Ilustração: Georgy Kurasov)

7 de out. de 2021

cuando tengo miedo

 



cuando tengo miedo

desejo ainda mais o teu segredo

e venço o medo de ter miedo

com os espasmos de tu cuerpo

soy el bandido

escondido

estarrecido

sem qualquer segredo y sin miedo

que arromba tua barragem

deságua as tuas águas

diciendo em tus oídos uma sacanagem

que descobre que tus deseos

son mis deseos y que tus ojos

abrem os caminhos para os meus enleios

sobre todos os teus despojos

cuando los cantos de la piedra

quebra os encantos dos teus seios

lá onde la rosa negra medra

e as águas da montanha

represadas em tus entrañas

são o pão do pecado da minha gula

que ao fundo de tu cuerpo macula



24.9.2020

(Ilustração: Hans Bellmer)

3 de out. de 2021

cortinas do passado

 




o tempo de vida abriu as cortinas atrás das quais havia

espantos inauditos

de momentos mal vividos

de momentos bem sofridos



no entreato de fantasmagóricas visões

o pisado tempo de perdidas ilusões

no despertar de sonhos represados



amores eternos que se dissiparam na névoa

beijos trocados que resistiram à tempestade

abraços perdidos em estradas não percorridas

olhares de ternura no meio das neblinas densas



e só o que resta a se entrever

através da janela de cortinas abertas

é o sonho inefável de que novas descobertas

acendam o fogo de um vulcão extinto



e seja no desamparo da noite um grito perdido

a esperança de uma vida que só tem sentido

quando expilo de mim tudo o que sinto



18.6.2021

(Ilustração: Andrea Kowch - 1986)