31 de jan. de 2021

rede

 





é


uma rede

presa à parede

por um gancho torto

nela deitado como morto

viajo por países desconhecidos

reconstruo os espelhos partidos

à brisa doce do ir e vir do vento

que assobia ao balanço lento

dos meus sonhos enrolados

entre tramas e trançados

dessa velha rede

presa à parede

num




5.2.2020

(Ilustração: foto do autor)

29 de jan. de 2021

retorno

 




existe um vento

que sopra e não se vê

cata-o o cata-vento

girando só para você



existe um sentimento

que se sente

e não se compartilha

um veneno doce como o vento

que marca no chão a nossa trilha

e chega logo aos olhos seus



sabe a vento e venta

sabe a céu de nuvem lenta

mas não sabe dizer adeus



30.8.2020

(Ilustração: Marc Chagall)

27 de jan. de 2021

os dragões de komodo

 




abro a janela ao calor da noite

[tenho aberto janelas demais

ao longo da vida – todas inúteis]

lá fora o monstro invisível faz o seu trabalho

enquanto os seres humanos

[ainda tenho dúvidas quanto à humanidade desses seres]

soltam fogos e abraçam-se calorosamente

soltando no ar perdigotos nos quais nadam

[insensíveis e invisíveis]

os milhões de monstros que invadem

invisivelmente

insensivelmente

as carnes e os vasos sanguíneos de suas vítimas



à janela aberta do meu quarto

só chegam o farfalhar das folhas das árvores

e o som dos passos das formigas

[devo dizer que não ouço o barulho das folhas nem o caminhar das formigas

- mas há barulho no ar - sim!]

só um raio fugitivo de lua debruça-se

para dentro da minha solidão

o ronronar do sono da gata sobre o tapete

não quebra o silêncio que há dentro de mim



sob pontes e viadutos rastejam ratos

roem os pés dos inaladores de crack

e entopem seus cachimbos com o cheiro de suas fezes

há crianças sem narizes sugando seios que lambem o chão

coberto de baratas mortas que se fingem de vivas

os missionários de uma igreja qualquer

servem do caldeirão do diabo – ou das bruxas que gargalham

pela madrugada em cima de vassouras tecnológicas

– a sopa quente

a sopa rala de todas as noites

e o pãozinho bento que mata o desejo de continuar dormindo



nas fazendas distantes há ronco de porcos

e grasnar de marrecos

suas carnes gordas engordam os burgueses

que – gordos e balofos – arrotam champanha francês

dançando sambas incongruentes e funks depravados em seus palácios de cristal



dentro da noite de lua branca e passos de formiga

a classe média não consegue dormir ao ronco

dos aviões que viajam para miami

levando seus sonhos e arroubos de entorpecidas múmias

[o colchão é duro e os sonhos são marshmallows]



a janela aberta [mais uma que abro

dentro do meu peito] traz o cheiro de mim

para dentro de mim

- o cheiro que eu tinha quando um dia adormeci

na beira do abismo

e acordei assustado na boca dos dragões de komodo

- e nunca mais consegui dormir sem pensar neles

[os dragões que comem estrelas

e vivem – invisíveis e insensíveis –

na nossa corrente sanguínea]



2.1.2021

(Ilustração: John Kenn Mortensen)

(O autor, Isaias Edson Sidney, interpreta esse poema no podcast cujo link é:



25 de jan. de 2021

oswaldiana

 



lá evém o menino são paulo

vendendo cauim como se fosse droga

na ladeira porto geral

pegando uma piroga

e caindo no carnaval



lá evém o jovem são paulo

descendo a ladeira da memória

chutando a bunda da história

para enterrar o rio anhagabaú

e fincar no ibirapuera as penas do jacu

desentortar o tietê

e inventar a vinte e cinco de março

como a rua do fuzuê



lá evém o são paulo homenzarrão

do século vinte e um

soltando pum

como se fosse rojão

plantando vento na praça da sé

rodando baianas e havaianas

para sambar na ponta do pé

na porta do municipal

catando tijolo por tijolo

em cada feira de rolo

para erguer o palacete senhorial



não evém mais o velho são paulo

pensar feridas de guerras perdidas

espera apenas que seu povo

cante de dance de novo

e esqueça as velhas feridas



agora nos seus olhos brilha o fogo

de gentes do mundo todo

e quer esse velho são paulo de tantas línguas

beber no bar do ponto um gole de pinga

respirar na cantareira um ar mais puro

e olhar com seu olhar já baço

já cheio de desencanto e cansaço

olhar bem lá no fundo o olho do seu futuro



23.1.2021

(Ilustração: foto de 1954 - Vale do Anhagabaú - 
comemoração do IV centenário dia 25 de janeiro)



23 de jan. de 2021

quarteto de violoncelos

 




depois de mergulhar bem fundo

dentro de mim

no meu poço mais imundo

para recolher os escolhos da memoria

e os miasmas do tempo

dependurados na minha história

sonho pelos dias menos difíceis

sonho com dias mais belos

ao fugir do fundo de mim mesmo

ao som de um quarteto de violoncelos



17.9.2020


(Ilustração: Delphia Cello Quartet - USA)

21 de jan. de 2021

quaradouro

 



o nosso amor

- sabe minha querida?

tão gasto pelo tempo

- lavei-o bem

- deixei-o de molho no sabão

com alvejante e amaciante

- saiu limpo e cheiroso

da máquina

como se fosse novo

- e então coloquei-o no quaradouro

para secar

ao sol do verão

- que o tivéssemos brilhante e belo

mas lá ficou – esquecido – dias e dias

e quando o tirei – ah! querida –

estava seco e encolhido

seco como as folhas ao vento

encolhido como um cão sem dono

em noite de inverno

- era ainda o nosso amor

mas já não nos servia

já não nos vestia

nem latir mais para nós

ele latia



27.11.2020

(Ilustração: Al Margen)

19 de jan. de 2021

quando chove

 




quando chove de madrugada me lembro de ti

cobra coleante

coral de íris amorosas

teus seios e teu ventre de amante

que se perdeu nas noites vaporosas

de linhos e vinhos

e chegas sempre – úmida e cheia de cansaços –

mas toda vida e toda louçã

sob o sol molhado da manhã

ao aconchego de meus braços



1.7.2020

(Ilustração: Riccardo Mannelli)

17 de jan. de 2021

quando adormeço

 



não há desespero em meus sonhos

apenas a placidez do irrealizável



meço-os – aos sonhos – pela quantidade de suor

que empapa meus lençóis pela noite adentro

nas longas sequências de viagens a cidades

que intui o meu cérebro em atividade

enquanto se contorce o meu corpo em calores



não há desespero quando ganho asas

e percorro a cidade acima dos seus telhados

ou quando visito aquela casa estranha

de arquiteturas diferentes sendo sempre a mesma

ou encontro-me desnudo entre a multidão

a caminhar a esmo sem que me toquem



empesto o ar do quarto com meus suores

e acordo de madrugada em busca de socorro

na solidão de pensamentos fugazes

de ambíguas existências que palpitam em mim

sentindo que há em meu peito uma angústia infinda

e apenas o silêncio – o silêncio dos gatos adormecidos –

responde ao meu desejo por mais solidão ainda 





4.6.2020

(Ilustração: Catherine Chauloux)

15 de jan. de 2021

quadro negro

 



para George Floyd 



ar

aar

aaar

aaaar

aaaaar

aaaaaar

aaaaaaar

aaaaaaaar

o traço o braço o estresse

o troço negro o torso branco

o pescoço o braço a roda o esgar

o tranco o tombo o torso o joelho

ar / ar / ar / ar / ar / ar / ar / ar

o tranco o branco o esgar

a roda negra o carro negro

o negro o quadro o branco a mão

no bolso o esforço o pescoço

ar / ar / ar / ar / ar / ar / ar / ar

o ver não ver o olho cego o negro

o carro o ver não ver o joelho

cão / cão / cão / cão / cão / cão / cão / cão

no chão em vão em vão em vão o ar

o quadro o negro o esgar o joelho

ar / ar / ar / ar / ar / ar / ar / ar

não respiro o suspiro falta o ar

aaaaaaaar

aaaaaaar

aaaaaar

aaaaar

aaaar

aaar

aar

ar



7.6.2020 



13 de jan. de 2021

protesto

 


não faço parte 

dessa patuleia indigente 

dessa gente 

mais burra e cretina 

que vejo em cada esquina 

que votou no bosta 

pois é disso que gosta 



não – não me convide 

para o banquete escroto 

desses ratos de esgoto 

dessa gente sem noção 

lambedores de cus nazistas 

todos filhos de fascistas 

e puxa-saco de patrão 



não sou como essa gente 

que pensa com o cu 

e usa como pente 

uma pena de urubu 

gente que rouba e mata 

como reza na igreja 

que trata como barata 

o povo que a elegeu 

sou do povo que peleja 

sob essa nojenta batuta 

dessa gente filha da puta 

que até agora só nos fodeu 

mas não perdem por esperar 

que um dia a vingança chega 

e vamos a todos enforcar 

numa noite bem negra 

sem dó nem sentimento 

e numa corda a balançar 

cada pescoço nojento 

há de morrer sem gritar 



6.1.2020

(Ilustração de autoria não identificada)

 

 

 

 

 

 

11 de jan. de 2021

prisioneiro de sonhos

 



aprisionas-me ao sonho

e prisioneiro sou de mim mesmo

pois que tudo quanto me proponho

é seguir o sonho e caminhar a esmo 



prisão de azul e anzol

sou peixe em águas de antigas rotas

morto à chuva renasço ao teu sol

e não me importa se não me notas



o leito de rosas e espinhos

compõe o palco de luz e esplendor

onde instalas tuas asas de arminhos

e matas-me o sonho de que era o senhor 





27.6.2020

 (Ilustração: Theodore Ralli)

10 de jan. de 2021

preocupação social



não vejo ao sair de meu escritório acarpetado na avenida paulista

o vulto deitado sob a marquise na noite fria enrolado em folhas de jornal

(estou preocupado com meu motorista que não chega

– vou despedir esse nego safado – é a segunda vez que se atrasa)

não escuto o choro da criança que perdeu a mãe no prédio que desabou

naquela ocupação construída por grileiros pagos a peso de ouro

(estou ouvindo bach no silêncio do meu quarto e degustando meu uísque

e vou soltar já uma nota à imprensa dizendo que não tenho nada com isso)

não percebo o vulto que se esgueira atrás da lata de lixo atrás de um osso

de frango ou de uma lata com um restinho de sardinha para a sopa da noite

(estou trinchando uma lagosta ao lado de minha mulher e meus filhos

educados na europa que não comem frango com as mãos e odeiam sardinha)

não me atrai a notícia do jornal sobre a marcha dos sem terra

que querem a terra de quem tem terra demais desviando o trânsito da rodovia

(estou ocupado ao telefone negociando ações na bolsa de nova iorque

pois o preço da soja está instável e é preciso ser esperto ao comprar e vender)

não me comove a foto de uma criança negra de um país qualquer da áfrica

a brincar com seus olhos grandes no meio de uma poça de lama e esgoto

(por que me preocupar? - se um historiador de capuz pontudo e tocha na mão –

sinal de estudo e capacidade intelectual - me alertou ontem que os negros

os próprios negros africanos – esses safados - vendiam seus filhos e seus parentes

para as galés espanholas e portuguesas para virem povoar nossa terra branca)

não me espanta que a mulher negra dê à luz no alto do morro

de uma favela qualquer e o filho recém-parido morreu porque a ambulância

não conseguiu subir pelas ruas estreitas e sujas da tal comunidade

(um filósofo branco que mora lá nos states me preveniu

que se eu não tive escravos também não tenho nenhuma dívida social

para com esse povo que enche os becos de negrinhos desnutridos

- que o problema é deles que gostam de morar dependurados em morros

e fazer filhos às pencas – parece que só para escurecer o mundo)

há seca e fome no nordeste e famílias inteiras migram para o sul

mostra a televisão em reportagem sensacionalista – gostam de carniça

e de desgraça e de pobreza esses comunistas da televisão

(e eu com isso? – se esses paraíbas todos só sabem chorar miséria

para vir depois pedir esmola com seus filhos magros nas ruas

das cidades do sul – que procurem trabalho esses vagabundos)

e então meu relógio de ouro de trinta mil dólares foi levado

pelo trombadinha do farol e a polícia não fez nada para prender

o ladrãozinho safado e agora tenho que encomendar um outro

do meu joalheiro suíço e isso – porra – isso dá um trabalho danado

tenho que ficar um tempão ao telefone e tenho que explicar

tim por tim os detalhes que eu quero o modelo que eu quero

botem fogo na favela – derrubem os barracos todos – prendam

prendam e arrebentem esses ladrões miseráveis - fodam-se

fodam-se todos eles e todos os que defendem direitos humanos

temos sim que defender os direitos de humanos direitos – porra



1.6.2020 

(Ilustração: Oswaldo Guayasamín - lágrimas de sangre, 1973) 



(Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, neste link de podcast:

8 de jan. de 2021

preciosa dignidade

 






preciosa dignidade o que me leva a pedir-te

- como um cavaleiro medieval -

que comigo te cases numa tarde outonal

em meio a um bosque de faias

ao som de alaúdes e gritos de faunos

com as ninfas todas vestidas de saias

bem rodadas e bordadas de ouro

e tu – virginalmente tímida –

corada como uma menina -

trazida ao altar pelo teu pai – um mouro

de olhos frios e adaga assassina à cinta

e as cítaras e as harpas dedilhadas

a pontuar teus passos lentos

e eu vos espero com meus olhos sedentos

- desencantado príncipe sem jaça –

a ansiar por teus arpejos nos meus braços

depois do sim a fugirmos pela praça

e sob um dossel de luxo os meus desejos

ver saciados ao olhar para você

agora despida de uma calça jeans sem nenhuma graça 




12.8.2020 

(Ilustração: Julius Rolshoven - mujer desnuda en la luz suave)

6 de jan. de 2021

poesia e filosofia

 




se rimo poesia com filosofia

é porque ambas tecem amanhãs

nos enredos de sonhos e pensamentos



se uma sonha projetos e sentimentos

pensa a outra em possíveis leviatãs

que se estendam por caminhos estelares



nos passos de ambas estão todos os nós

que destravam a nossa voz

e nos levam a todos os lugares 




29.12.2020

(Ilustração: escultura de Edward Onslow, 
Inglaterra: 1852-1901 - A musa da poesia, 1891)

4 de jan. de 2021

Pensamentos vãos

 




Pensamentos vãos que voam pelos vãos da memória e vão-se aos ventos da noite vã. 

Uma mulher está deitada numa cama de plumas etérea e fina como o dia – a mulher, não a cama, é que é etérea e fina como o dia – e ela tem na boca uma rosa cristalizada que pinga o sangue de meus beijos 

Um poder misterioso emana de meus dedos e eu sei que o vento vazio da vida virá um dia por esses furos por onde o vento emana e encherá de mistérios o meu amor por ti – ó deusa construída de vapores e lírios das charnecas de países longínquos. 

Ouço os teus gemidos – ó desencantos de viver – e aprecio o desejo que se entranha nos desvãos da minha memória e acendem fogueiras ancestrais dentro de meu peito. 

Leio que há chamas e que tudo são chamas em Octavio Paz e empedra-se-me o peito pelas penetrações de pontudas pontas de flecha pelos meus poros e anseio os teus anseios – ó deusa de caminhos perdidos e de cantos medonhos dos mares profundos. 

Despacho para o espaço os fluidos de meus anseios e despeço-me de mim – fauno desencantado das florestas úmidas de teus pelos – e só posso retornar aos teus paraísos perdidos quando o céu se abrir em estrelas de porcelana na cama de plumas onde pressagias meus caminhos com uma rosa cristalizada na boca a pingar o sangue de meus beijos. 

Nua – tu me castigas com teus desvãos – deixas-te levar pelos ventos vazios e pelos meus pensamentos vãos aos cálix bentos da loucura e te vingas de meus ardores ao cortares os meus dedos em chamas e encheres de mistérios os meus dias. Digo-te adeus e persigno-me às cruzes de todos os demônios. 



12.7.2020 

(Ilustração: Francois Martin-Kavel)

2 de jan. de 2021

pela janela

 




pela janela espio lá fora um disco branco

desfocado ao meu olho estranho

salta às órbitas como um velho franco

a azular de branco o azul de estanho

entrevejo sombras no breu

folhas verdes na noite escura

não sei se há pio de coruja na brancura

da nuvem que voa ou se sou apenas eu

a chorar pela noite a minha clausura



9.6.2020


(Ilustração: Johan Christian Clausen Dahl: 
View of Dresden at Full Moon)