abro a janela ao calor da noite
[tenho aberto janelas demais
ao longo da vida – todas inúteis]
lá fora o monstro invisível faz o seu trabalho
enquanto os seres humanos
[ainda tenho dúvidas quanto à humanidade desses seres]
soltam fogos e abraçam-se calorosamente
soltando no ar perdigotos nos quais nadam
[insensíveis e invisíveis]
os milhões de monstros que invadem
invisivelmente
insensivelmente
as carnes e os vasos sanguíneos de suas vítimas
à janela aberta do meu quarto
só chegam o farfalhar das folhas das árvores
e o som dos passos das formigas
[devo dizer que não ouço o barulho das folhas nem o caminhar das formigas
- mas há barulho no ar - sim!]
só um raio fugitivo de lua debruça-se
para dentro da minha solidão
o ronronar do sono da gata sobre o tapete
não quebra o silêncio que há dentro de mim
sob pontes e viadutos rastejam ratos
roem os pés dos inaladores de crack
e entopem seus cachimbos com o cheiro de suas fezes
há crianças sem narizes sugando seios que lambem o chão
coberto de baratas mortas que se fingem de vivas
os missionários de uma igreja qualquer
servem do caldeirão do diabo – ou das bruxas que gargalham
pela madrugada em cima de vassouras tecnológicas
– a sopa quente
a sopa rala de todas as noites
e o pãozinho bento que mata o desejo de continuar dormindo
nas fazendas distantes há ronco de porcos
e grasnar de marrecos
suas carnes gordas engordam os burgueses
que – gordos e balofos – arrotam champanha francês
dançando sambas incongruentes e funks depravados em seus palácios de cristal
dentro da noite de lua branca e passos de formiga
a classe média não consegue dormir ao ronco
dos aviões que viajam para miami
levando seus sonhos e arroubos de entorpecidas múmias
[o colchão é duro e os sonhos são marshmallows]
a janela aberta [mais uma que abro
dentro do meu peito] traz o cheiro de mim
para dentro de mim
- o cheiro que eu tinha quando um dia adormeci
na beira do abismo
e acordei assustado na boca dos dragões de komodo
- e nunca mais consegui dormir sem pensar neles
[os dragões que comem estrelas
e vivem – invisíveis e insensíveis –
na nossa corrente sanguínea]
2.1.2021
(Ilustração: John Kenn Mortensen)
(O autor, Isaias Edson Sidney, interpreta esse poema no podcast cujo link é:
Perfeito.👏👏👏👏👏👏👏👏
ResponderExcluirQuerido Isaías, um gatilho inesperado, com sua poesia ácida tal qual a saliva desses répteis, desenterrado da imberbe adolescência quando fantasiava ter uns paleolíticos dragões de komodo como bichinhos de estimação rsrsrs
ResponderExcluirAbração, Nabil