10 de jan. de 2021

preocupação social



não vejo ao sair de meu escritório acarpetado na avenida paulista

o vulto deitado sob a marquise na noite fria enrolado em folhas de jornal

(estou preocupado com meu motorista que não chega

– vou despedir esse nego safado – é a segunda vez que se atrasa)

não escuto o choro da criança que perdeu a mãe no prédio que desabou

naquela ocupação construída por grileiros pagos a peso de ouro

(estou ouvindo bach no silêncio do meu quarto e degustando meu uísque

e vou soltar já uma nota à imprensa dizendo que não tenho nada com isso)

não percebo o vulto que se esgueira atrás da lata de lixo atrás de um osso

de frango ou de uma lata com um restinho de sardinha para a sopa da noite

(estou trinchando uma lagosta ao lado de minha mulher e meus filhos

educados na europa que não comem frango com as mãos e odeiam sardinha)

não me atrai a notícia do jornal sobre a marcha dos sem terra

que querem a terra de quem tem terra demais desviando o trânsito da rodovia

(estou ocupado ao telefone negociando ações na bolsa de nova iorque

pois o preço da soja está instável e é preciso ser esperto ao comprar e vender)

não me comove a foto de uma criança negra de um país qualquer da áfrica

a brincar com seus olhos grandes no meio de uma poça de lama e esgoto

(por que me preocupar? - se um historiador de capuz pontudo e tocha na mão –

sinal de estudo e capacidade intelectual - me alertou ontem que os negros

os próprios negros africanos – esses safados - vendiam seus filhos e seus parentes

para as galés espanholas e portuguesas para virem povoar nossa terra branca)

não me espanta que a mulher negra dê à luz no alto do morro

de uma favela qualquer e o filho recém-parido morreu porque a ambulância

não conseguiu subir pelas ruas estreitas e sujas da tal comunidade

(um filósofo branco que mora lá nos states me preveniu

que se eu não tive escravos também não tenho nenhuma dívida social

para com esse povo que enche os becos de negrinhos desnutridos

- que o problema é deles que gostam de morar dependurados em morros

e fazer filhos às pencas – parece que só para escurecer o mundo)

há seca e fome no nordeste e famílias inteiras migram para o sul

mostra a televisão em reportagem sensacionalista – gostam de carniça

e de desgraça e de pobreza esses comunistas da televisão

(e eu com isso? – se esses paraíbas todos só sabem chorar miséria

para vir depois pedir esmola com seus filhos magros nas ruas

das cidades do sul – que procurem trabalho esses vagabundos)

e então meu relógio de ouro de trinta mil dólares foi levado

pelo trombadinha do farol e a polícia não fez nada para prender

o ladrãozinho safado e agora tenho que encomendar um outro

do meu joalheiro suíço e isso – porra – isso dá um trabalho danado

tenho que ficar um tempão ao telefone e tenho que explicar

tim por tim os detalhes que eu quero o modelo que eu quero

botem fogo na favela – derrubem os barracos todos – prendam

prendam e arrebentem esses ladrões miseráveis - fodam-se

fodam-se todos eles e todos os que defendem direitos humanos

temos sim que defender os direitos de humanos direitos – porra



1.6.2020 

(Ilustração: Oswaldo Guayasamín - lágrimas de sangre, 1973) 



(Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, neste link de podcast:

Um comentário:

  1. Coisa mais triste essa situação social.Parabéns poeta por pensar nessas pessoas!

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