13 de out. de 2011

BIBLIOTECA

(Balthus)




Sonho que estou numa imensa casa onde
nunca estive.
Passeio pelos salões ovais e subo escadas em espiral
que ligam andares sobre andares – todos vazios. Vazios e frios.
Corredores cambiantes conduzem meus passos
para a grande sala, a imensa e profunda sala
onde estariam todos os poetas,
onde estariam todos os escritores,
mas onde não estaria nenhum dos filósofos europeus.
Entrei com respeito e peito fremente,
um pé baixando lento após o outro, sem ruído, a respiração
suspensa, os olhos atentos, os ouvidos abertos, a boca seca, a pele eriçada.
E, lá dentro, admirando-me ainda de meu reflexo no chão de tábuas enceradas,
ouvi apenas o silêncio das longas estantes vazias.
Perplexo diante de mim, não posso voltar sobre meus passos:
não há rastros a seguir.
Dos antigos tomos e dos livros encardidos que lá devia haver
brotavam apenas ervas daninhas e as batidas ecoadas
de meu coração desavisado.
Sofridamente, despedi-me de mim naqueles velhos e inexistentes tomos
e caminhei ao longo dos labirintos de vazia inutilidade,
certo de que o mistério da vida ali estava, na voz
que jamais ouviria, dos desencavadores de cantos e contos
a que chamamos escritores. Subi a espiral de madeira e ferro,
alcancei a fria madrugada e olhei para o espaço estrelado:
um buraco negro refletia meus pensamentos. Então, eu soube,
naquele breve instante em que o universo se comprime,
que não devia nunca, nunca mais, descer de novo aquela escada,
que nunca, nunca mais ouviria a voz dos tomos que não havia,
dos livros que não havia na biblioteca,
naquela biblioteca do meu sonho de quando
eu era apenas e tão somente uma criança.








22.7.2011

16 de set. de 2011

BRASILIANAS - II

(Leda Catunda)




21. falação final,

por último, nesse canto
meio sem eira nem beira,
vou buscar inspiração
no lençol bem urdido
que fazia a minha avó:
de retalhos de cetim,
bem ligados com o brim
e o brim entretecido
com fitas de gorgorão,
pra formar o sete-estrelo,
ou outra figura igual,
não tem plano, não tem máquina
tece a mão, tece com zelo
e depois, se chega o frio,
não distingue quem mais sofre
vai cobrir com precisão
tanto o rico quanto o pobre

e assim eu me proponho,
sem batida de pandeiro,
sem a rima tão certeira,
a louvar cada retalho,
cada praia, cada serra
dessa terra brasileira


1.

vêm, vêm, vêm,
será que vêm de lá,
será, meu bem, será,
as rendeiras do Ceará.

2.

puxo, puxo e repuxo,
lacei muito bem laçado
o boi que já vem salgado
pro churrasco do gaúcho

3.

na viola, um repinico,
ao pé do fogo, o jogo é tranca:
balança, balança a carranca,
subindo o velho são chico.



4.

da arara não pára o grito, não pára,
cobrem d’ água a terra plana
os rios do Pantanal:
sobe e desce uma chalana.


5.

e o tesouro o que é?
tem cana aí, cumpade?
se tem paulista, tem café,
se tem caipira, tem vontade.





6.

rio-mar-montanha
mistura da mais brejeira:
soa o samba, soa a sanha
de passistas na gafieira


7.

pororoca, pororoca
num verde que não tem mais fim
pororoca amazônica
nos olhos do curumim

8.

vem da ilha, o catarina,
vai sonhando o paraná,
para lá,
para lá do rio grande do norte
e vem aqui o paiuí,
dança ali o maranhão
trocam flautas tocantins,
serra-serra mato grosso,
não se sabe se pro norte,
não se sabe se pro sul,
joga brasília a amarelinha
pulando de cá para o pará,
rondônia cutuca o acre,
amapá roça roraima,
coça a costa, paraíba,
enchem d’água as alagoas,
puxa o trabuco, pernambuco
frita o peixe, capixaba,
e a bahia? Ah, logo ali
de cochicho com sergipe

9.

assim, de retalho em retalho,
entreteço o meu trabalho,
minha colcha de azul-anil:
nossa terra desinfeliz, brasil.





(Brasilianas II )



FIM



14 de set. de 2011

BRASILIANAS - II

(Autor não identificado)


falando de baixo,





é preciso olhar para cima
para ver o gigante



e o gigante nunca se mostra
como ele é



é preciso olhar de longe
para ver o gigante



e o gigante nunca pisca o olho
amistosamente



é preciso subir muito mais alto
para ver o gigante



e o gigante nunca deixa a andorinha
voar sozinha



é preciso olhar para o norte
para ver o gigante



e o norte quando olhado de repente
dá torcicolo



é preciso derrubar o gigante ao solo...



ah, mas isso o gigante nem pensar
que vai deixar



assim, só nos resta
xingar muito, mas muito mesmo,
o gigante



(dizem que ele se faz de surdo quando é xingado,
mas eu acho que ele não está nem aí
pra quem o xinga:
o que gigante quer
é continuar revirando os olhos
de cobiça e dólar)

12 de set. de 2011

BRASILIANAS - II

(Autor não identificado)



falando sozinho,





tem gente que pensa que
liberdade
é uma coisa que se acha na rua



tem gente que pensa que
liberdade
é o sonho numa cama limpa



tem gente que pensa que
liberdade
uma vez conquistada fica



e tem gente que pensa que
liberdade
é uma coisa que não serve para os outros



(tem gente
muita gente besta
neste mundo)

8 de set. de 2011

BRASILIANAS - II

(Sergei Aparin)


falando de trabalho,





nos desvãos da pátria
há muitos ossos que não foram enterrados





nos desvãos da pátria
há muitos contos que não foram exorcizados





nos desvãos da pátria
há muitos heróis que se esqueceram do mito





nos desvãos da pátria
há milhares de destroços entronizados





nos desvãos da pátria
cabem todos os sonhos e todos os pesadelos





(é preciso aplainar os desvãos da pátria)

6 de set. de 2011

BRASILIANAS - II




17. falando da vida,



a vida vale o que a vida é
a vida vale o que a vida vive
a vida vale o que a vida sopra
a vida vale o que a vida sonha
a vida vale o que a vida canta
a vida vale o que vida pensa
a vida vale o que a vida ama
a vida vale o que a vida sofre
a vida vale o que a vida abraça
a vida vale o que a vida escreve
a vida
a vida vale
a vida é
e não vale a morte de quem quer que seja
simples assim
só isso
nada mais


(Ilustração: Orlando de Santana)

4 de set. de 2011

BRASILIANAS - II


(Jean-Pierre Ceytaire)



16. falando de paixões,






sempre resta uma nação
atrás de um povo



sempre resta uma paixão
atrás de um grito



sempre resta uma tesão
atrás de um espanto



nação: paixão: tesão
e os tolos não percebem
que é preciso um povo
que é preciso um grito
que é preciso um espanto
pra tesão virar paixão
e construir uma nação

2 de set. de 2011

BRASILIANAS - II




15. falando de pessoas,



1.



amor, um dia tu me contas
o que soprava na cana o vento:
dos três picos de Três Pontas
cantaria Milton Nascimento





2.



quem lá de Minas vem
nunca jamais esqueceu
(mesmo que fosse menino)
quando partiu aquele trem
levando ao planalto central
nossos sonhos e... Juscelino





3.


de versos entendo e gostara eu mais
se sonhar pudera ainda da cítara ao som
(tão bom inverter, tão bom!)
não de poetas de Grécia ou de Roma,
(desculpem-me Virgílio, Catulo e que tais)
mas de Camões, Pessoa e Drummond


(Ilustração: Erma Y - Ouro Preto)


31 de ago. de 2011

BRASILIANAS - II






falando da carta do índio,



(1)



grande piroga
lá longe ficou
pequena piroga
com gente sem corpo
na praia bateu



índio pensou:
se tem carne por baixo
comida ruim





(2)





piroga maior
que oca de índio
piroga com medo
lá longe ficou:



ao vento
folhas de buriti
com traço cruzado
da cor do urucum



tronco em cima de tronco
em cada tronco
anhangás apinhados
embaixo alguns, outros em cima
piroga de viva planta



índio com medo
com muito medo:
piroga de branco
tem muito segredo





(3)




da pele sobre a pele
nariz desperta
uma onça molhada



da pele sobre a pele
nariz descobre
carnaúba queimada



da pele sobre a pele
nariz desespera
a bosta de macaco



povo que vem
em oca tão grande
não gosta de rio





(4)





povo que tem cabelo na cara
povo que tem piroga na cabeça
povo que tem piroga no pé
povo que tem a arma que brilha
povo que tem barriga amarrada
povo que tem coisa que vê
povo que bebe a água que arde
povo que fala mais que enrolado
povo que adora dois troncos cruzados
povo que reza com o joelho no chão
povo que cheira a porco molhado
povo que tem um tanto de tralha



...e não tem cunhã!...




 

(5)





laguinho redondo:
e a cara de pêlo
de repente já era
riso de cunhã
bronca de cacique
espanto de pajé
careta de curumim
grito de macaco
trazendo alegria
a todos na tribo



mas índio pensou
que alma de índio
pra sempre ficou
naquela prisão
de laguinho redondo





(6)





índio chamou branco:
queria dançar



branco chamou índio:
queria rezar



índio dançou e rezou
branco só rezou



branco é besta
que nem anhangá





(7)





branco foi pro mato
no mato cortou árvore
da árvore serrou tronco
pegou tronco e cruzou
e na cruz pregou
seu deus



índio não quer deus
pregado num cruzeiro
índio quer deus livre
pra livrá-lo do cativeiro





(8)



brancos que aqui ficaram
depois que brancos partiram
índio agradeceu,
índio cuidou,
e cada branco que índio engordou
índio comeu



mas índios que branco levou
na piroga grande pro grande mar
índio nunca soube
se o branco de lá longe
deles gostou




(9)





tantas vezes branco aguçou
olho pra coisa que brilha
que índio pobre pensou:
só tenho riqueza na mata,
só tenho riqueza na gente,
tivera mais coisa que brilha
pau que mata de longe
muitos índios mataria



(ler futuro,
nem pajé inda sabia...)


(Ilustração: Dulcinea Brito)



29 de ago. de 2011

BRASILIANAS - II





13. falando da carta de Caminha,



(1)



na história de Portugal
há um Vasco que navegou
na história do Brasil
há um Vasco que não chegou




(2)



botelhos no mar
e mais: rabos-de-asnos



furabuchos no ar



mareados os mareantes
gritaram de cá:
- terras ao mar!
outros mareantes de lá:
- mas onde, ó pá?
de lógica navegante:
- se dos asnos os rabos avistamos
terras haverá



e terra se avistou:
estava para sempre a descoberto
o país que o luso povo pisou




(3)



mandaram a terra
pequena nau
a bordo um tal
de Nicolau



ah! que glória na terra
se índio fizera
fizera cara de mau
se índio sentara
sentara no pau
esse tal, esse tal de Nicolau




(4)




a feição deles
ai Jesus, ai Jesus
bons rostos
ai Jesus, ai Jesus,
narizes bem feitos
ai Jesus, ai Jesus
sem cobertura alguma
ai, Jesus, ai, Jesus,
andam todos nus
ai, Jesus, ai
todos nus,
Jesus, ai,
e as vergonhas
ai, Jesus, ai,
nem eram fanadas
ai, Jesus
pelo meu santo bento
ai!
que não me agüento!



(5)




é de bom tom
por uma seta
um cascavel, ai!
que bom!



de rodilha,
por um arco,
dou-te a manilha,
ai, que me muero!



toma lá um sombreiro
que na sombra te quiero!



de tanto troca-troca
coisa alguma por qualquer osso
que uma carapuça de linho
enfio-a até o pescoço



(6)




das cores das flores
das cores das aves
corpos de cores
quartejada a tez
de preto e azul
um jogo de xadrez
furado o riso:
e eu, Caminha,
na minha caminha, oh,
meu rei, que perco o siso




(7)




deus a mim ponha
em sua bondade,
majestade,
mas era cada vergonha
assim tão cerradinha,
assim tão limpinha,
que olhar para ela
era nossa a vergonha
não era vergonha dela



(8)




graciosa dessa moça,
a vergonha tão tingida
e tão bem feita
e tão redonda
e tão mais bela
- perdão, majestade -
que nem a rainha
igual à dela
beleza tão rara
não a tinha



(se bem gostara)



(9)




essa gente cá da terra
da missa rezada
nada entenderam
mas à missa dançada
logo, logo se renderam




(10)




do ribeiro, água – muita e boa
da palmeira, o palmito – logo comido



das gentes, o riso – sempre farto
dos corpos, o cheiro – sempre limpos



da terra, a grandeza – não mais
nem ouro, nem prata, nem ferro



mas de tudo o que nela há
fica a fé e nada mais


(Ilustração: Oscar Pereira da Silva)