28 de fev. de 2021

sem problema - 2

 





- espere – devo dizer-lhe – não tenho uma perna

- e eu – eu não tenho um braço



e os dois se amaram como loucos

loucamente se amaram

porque não precisavam

nem de perna nem de braço

eles se amavam sem nenhum problema

(tinham cada um o tesão e alguns buracos)

- eles se amavam



12.11.2020

 (Ilustração: Hans Bellmer)

26 de fev. de 2021

sem problema - 1

 


  



- espere – devo dizer-lhe – não tenho uma perna

- e eu – eu não tenho um seio



e os dois se amaram como loucos

loucamente se amaram

porque não precisavam

nem de perna nem de seio

eles se amavam sem nenhum problema

(tinham um pênis e uma boceta)

- eles se amavam

 


29.6.2020

(Ilustração: Hans Bellmer)

 

24 de fev. de 2021

secreções

 



cuspo na tua boceta

cospes no meu pau

chupamo-nos

amor é isto – secreções

e um abraço apertado no metrô




7.7.2020

(Ilustração: autor não identificado)

22 de fev. de 2021

saudade

 




deixa que eu lentamente te dispa

percorra minha língua cada centímetro de tua pele

acenda no fundo dos teus olhos a chispa

do tesão que me arrebata e para ti me impele

como barco à deriva no meio da tempestade

será este o momento epicamente aguardado

no fundo de mim como o instante abrasado

no fogo da pira eterna que se chama saudade




1.7.2020

(Ilustração: Antonio Bonilla - El Salvador - el libro rojo)

19 de fev. de 2021

saudade da saudade

 




tenho saudade da saudade que eu sentia

quando não tinha por que sentir saudade



um tempo de saudades de um passado não vivido

um passado inventado para dar asas

a versos tortos

e a sentimentos de flor em botão



sinto saudade de mim a sentir saudade

da saudade que eu sentia

de um passado que não existia

quando era o tempo a viver

muito maior do que o tempo já vivido



hoje eu sei que a saudade é sentimento empacotado

num canto qualquer da memória

varrido como sujeira para debaixo do tapete

uma pulga na camisa de dormir que nos acorda à noite

e que esmagamos na ponta da unha

e voltamos a dormir como se nada tivesse acontecido

e voltamos a sonhar com a saudade que viceja

lá no quintal do passado

debaixo da jabuticabeira em flor

fruto bicado pelo bem-te-vi

regato de águas turvas depois da chuva



a noite passa

o sonho se esvai

leva o vento da memória

a nuvem da saudade

fica apenas o gosto de um sonho de padaria

melado na boca mas doendo no estômago




16.2.2022

(Ilustração:  Edvard Munch - Melancholy -1894)

17 de fev. de 2021

sanidade

 



mantenho a sanidade escrevendo

poemas loucos

para ouvidos moucos

- uns versos poucos

que se vão formando num crescendo



caço os monstros que habitam em mim

mastigo seus ossos

cuspo-os nos poços

no meio dos destroços

que se vão ajuntando antes do fim






7.12.2020

(Ilustração: Eric Lacombe - dark abstract portraits)

15 de fev. de 2021

salvação

 



há pessoas que transformam qualquer ruído em música

mas há pessoas que não têm nenhuma vocação musical



há pessoas que criam pratos novos

e cozinham especiarias com carnes exóticas

mas há pessoas que não sabem nem o que é um fogão



há pessoas que dançam alucinadamente

num apartamento de quarenta metros quadrados

mas há pessoas que tropeçam no próprio pé

se tentam dois passos num salão



há pessoas que criam universos paralelos

e fazem de cada objeto a busca transcendental

mas há pessoas que só enxergam coisas tangíveis



há pessoas que se enroscam sozinhas ou acompanhadas

nos meandros do prazer e de pequenas mortes

mas há pessoas que se enojam com sua própria pele



há pessoas loucas que agem como normais

há pessoas normais que agem como loucas

há pessoas que enxergam vida onde há morte

há pessoas que enxergam morte onde há vida



mas para todas há o tempo certo de viver

para todas há o espaço do passado e o espaço do futuro

ainda que o presente se lhes pese nos ombros



no mundo em que há pessoas cujos olhos se reviram

para dentro porque não suportam a luz do dia

e em que há pessoas que se contraem no espaço vazio

eu só me não enlouqueço porque me salva a poesia




29.12.2020

(Ilustração:  escultura de Matt Verginer)

13 de fev. de 2021

sagrada família





o pai – a mãe – o filho – a filha

a família

o concurso do urso na floresta negra

falsa a família

o urso abraça o laço do braço da dor

nas ventanas de vento e flor

o pai – rei de tangos e lorotas

a mãe – hetaira de lençóis puídos

a filha – perdida ilha

o filho – veado assumido e varrido

até que num dia de inverno

o sol que queima a bunda vagabunda

traça na mão o sinal do medo

não há mais urso nem abraços

só ventanas de vento e dor

e a filha come o talo da folha da taioba

deus em pessoa abençoa

a sagrada família que se esboroa



23.7.2020

(Ilustração: Matilda Forsberg)


11 de fev. de 2021

sacanagem

 




quando no teu corpo realizo

a festa dos meus desejos

traço o caminho preciso

de cada um de todos os beijos

que começam na tua boca

e acabam na tua racha profunda

quando te deixo ainda mais louca

- beijo teu cu e fodo tua bunda





21.9.2020

(Ilustração: Frida Castelli)

8 de fev. de 2021

rotinas

 




prendo meu corpo nas rotinas do dia a dia

para soltar meu pensamento para os páramos da imaginação

preso à terra e a essa rotina

viajo ao mundo das estrelas e dos dragões

e sou livre para pensar que penso no que penso

porque sou um ser humano e sei pensar

a liberdade está contida entre as sinapses de meu cérebro

faíscas de elétricos transbordamentos

criação de mundos supra reais de deuses inúteis

que ruminam a grama reservada aos unicórnios

viajo dentro de mim como um colombo de mil mares

viajo dentro de mim como viajantes estelares

das galáxias de isaac asimov

e isso é o que me move – esse voar estando aqui

esse voar sem sair do lugar

para dizer para mim mesmo que vivi e sobrevivi

muito além das rotinas do meu lar




28.7.2020

(Ilustração: Boris Vallejo) 

6 de fev. de 2021

ritual

 



trança teus cabelos como cipós

e amarra meus desejos

no ritual do fogo e da carne

deixa que eu queime minha língua

nas labaredas dos bicos dos teus seios

trança tuas tranças em meu pescoço

que minha língua penda como a de um enforcado

e ganhe vida entre tuas coxas

para lamber cada chama do teu ventre

até que jorre tua fonte

trança teus pelos da boceta

como cordas de uma harpa

que o vento tange no amanhecer vazio

senta o teu ventre sobre o meu ventre

dobra tuas pernas ao longo das minhas

cavalga teus sonhos – não os meus

sê valquíria e diana e puta

esquece teu tempo e teus projetos

canta a canção do engasgo

desperta a pomba no seu ninho

espanta os morcegos da caverna

estremece teu corpo de fogo

sobre as dobras despertas

do meu desejo

tenta

tenta desafiar as forças do vento

despeja teus fluidos na minha garganta

canta – canta – canta

a performance do tempo de desejos inauditos

bebe – bebe – bebe

a espuma do resto dos meus tremores

tatua na pele do meu prepúcio

o préstimo de todas as tuas viagens

alcança os meus olhos com teus olhos

inflama com o fogo dos teus seios

todos os meus antigos anseios naufragados

deixa que eu marque em teu umbigo

a data de um tempo que nunca existiu

sê meu anjo na derrota da carne

sê meu demônio no apogeu do meu orgasmo

amplia teu tempo de poderes

na angústia dos parcos poderes de meu pênis

entrega tua língua ao fogo que brota

de raízes mais profundas do que o tempo

sê tu a minha escrava assim como

escravizado estou aos teus delírios

trança tuas tranças com tuas mãos de sangue

e deixa-me enfim descansar a teus pés

do fogo do teu ritual totalmente exangue



7.7.2020

 (Ilustração: Raffaele Marinetti)

4 de fev. de 2021

rios

 



dentro de mim correm rios de sentimentos

que fazem frutificar flores estranhas

nas suas margens – flores de nuvens ocas

beijadas por colibris de asas quebradas



são rios barrentos que correm lentos

ou rios azuis que correm prestos

barcos que neles buscam horizontes

perdem-se nos remoinhos e nas cachoeiras



não há neles águas remansosas

não há neles possibilidades piscosas

carregam lodo e húmus que ficam pelas margens

adubando com ossos e vísceras de afogados

as floradas de estranhas flores que não viram frutos



rios tortos e rios mortos

correm dentro de mim de algum lugar

para lugar nenhum

fazem de mim o que sou e o que não sou

de sentimentos e angústias povoado

como todos os rios mortos e todos os rios tortos

que correm pelo mundo sem qualquer destino



29.9.2020

(Ilustração: Ciparis (Christelle) - the wave)

2 de fev. de 2021

reflexões sobre o pântano

 



fico às vezes pensando

- o que são as palavras?

- para que servem as palavras?

- por que o poema?



a música sem palavras – por exemplo –

o que ela comunica?

por que viajamos no som de uma orquestra?



sou humano e nada do que é humano

seja indiferente para mim – plagio um grego

- inutilmente –

porque tudo o que sei vem das palavras

e eu sei que as palavras mentem



quando digo – poema –

o que realmente eu quero dizer?

e o que você – que talvez nunca vai me ler –

o que você entende?



fico às vezes pensando

- o que é a vida?

- por que vivemos?

- por que fazemos tudo isso que fazemos?



a vida é só o que pulsa nas minhas veias

ou o que pulsa também nos meus órgãos genitais?

a vida é o que está no meu cérebro – essa máquina

de sentimentos e sensações – que nunca vamos entender –

ou a vida é o lento desabrochar da rosa?

o verme que corrói a matéria putrefata?

- talvez o vírus que nos mata –

para que entender a vida se só o que sabemos é viver?



as palavras estão aí e a vida também

sem que haja qualquer manual de instrução

de como usá-las



quando os deuses do universo – e isso o que eu escrevi é uma bobagem –

inventaram a vida lá nos confins de algum buraco negro –

esqueceram de escrever a bula

- esse tipo de bula que relata até mesmo os mínimos efeitos colaterais



nos seres mais sensíveis foi relatado que em zero ponto um por cento

há intolerância e até mesmo um certo enjoo no ato de viver

mas que isso na ordem total do universo

pode ser mais do que uma simples estatística

para se tornar uma epidemia – quiçá uma pandemia –

e os ventos soprados do norte registrarão aos narizes

um cheiro de matéria orgânica em decomposição

- algo que pode indicar apenas que há estrelas na noite

ou que não há segredos em viver e morrer



fico às vezes pensando

e as palavras – assim como a vida –

tresandam em algo impensável dentro de meu cérebro

nulificam-se por si mesmas

inutilizam-se em si mesmas

desmancham-se em pó

em teias de areia

em grãos insossos



por isso emudeço e ensurdeço

e digo – abusando do dizer ao nada dizer -

que sou só mais uma folha seca – menos do que um elétron -

batida aos ventos cósmicos do universo

- esse paul –

que não entendo nem entenderemos jamais





12.11.2020

(Ilustração:  escultura de Fernando Botero - Maternidad - Oviedo)


(Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, neste endereço de podcast:

https://open.spotify.com/episode/0gEZ8MFFln29dsIWHX82S7?si=f8eb6abb0dd84cf6)