23 de jan. de 2009

ESCUTA OS TEUS DEMÔNIOS



Escuta os teus demônios - diz-me
a voz que trago em mim - não são
luminares, mas escuta-os.

Negrejam os caminhos quando,
distraído, não os ouves. Deixa
que dissipem o teu pranto
e sufoquem com suas vozes a tua queixa.

Naufraga o teu sonho, se
teimoso, não ousas
seguir-lhes os conselhos.
As vozes (de teus demônios) escondem
a sabedoria dos que se foram
e a experiência dos mais velhos.

Pára, pára a tua vida por um instante,
antes que do distante
visitante
recebas a admoestação mais vil.
Urge o tempo. Do fundo das fundas eras
o tropel dos séculos transforma em cinza
todas, todas as tuas primaveras.

20 de jan. de 2009

NO COMPUTADOR

ligo o computador e abro uma página do word
e tento escrever um poema

não há tesão nenhum em meu tentar

apenas murchas palavras num computador
apenas murchos pensares em letras minúsculas

o som suave das teclas apenas persiste
o sonho que em mim não mais existe

vejo a praça, a praça imensa de minha infância
o coreto redondo, a tipuana em flor
são lugares comuns como o porto aonde chegam
navios fantasmas em pleno luar

o bater das teclas no computador
diminui pouco a pouco a minha dor
enquanto analiso se permito no poema
a rima pobre surgida por acaso

mas é nessa rima que embarco
sofrendo a esperança que ali não há
naquela praça imensa morreram um dia
a criança e o jovem que no meu sonho espreitam
não posso baixar a guarda de meus pensamentos
que lá vêm os dois a me fazer chorar

inúteis versos na memória de sonho de bits e bytes
de meu mais inútil ainda computador

o som do teclado abafa um pouco o burburinho
de uma praça distante da cidade perdida
não quero voltar ali, não quero encontrar
aqueles que espreitam atrás do caramanchão
para apontar o dedo acusador para mim
sou o covarde que matou um dia o sonho
de nunca mais pensar que seria o que sou

então que se salve o poema lá dentro
de minha memória de computador
para que eu não chore, afinal,
uma lágrima apenas de arrependimento
num poema que tentei um dia
escrever inutilmente num novo documento do word

são paulo, 21.3.2005

18 de jan. de 2009

UMA TROVA!

VOU COMPOR PARA VOCÊ
DO MUNDO A MAIS BELA TROVA,
E GRAVAR NUM PÉ DE IPÊ
DO MEU GRANDE AMOR A PROVA.


são paulo, 5 de abril de 2006

16 de jan. de 2009

PAZ

- Amigos? - Não!
– Brigamos? – Sim.
- Por quê?
– Não o sabes? – Assim?
- Não o sei eu, também. Então, que
queres? – As pazes... – Sim, sim, as pazes...
- Amigo? – Sim. – Para sempre?
- Sim... até as próximas pazes... amigos.

Assim no coração da criança
a paz se implanta. Já adulto,
não se encanta, no entanto, de esperança
e o homem perde, inculto,
o foguete para a história.

Não mais amigos,
religiosos!
Não mais amigos,
políticos!
Não mais amigos,
cidadãos!
E como religiosos, políticos ou cidadãos,
mil detalhes a acertar,
mil palavras a atrapalhar,
mil fronteiras a separar.

Paz?
Ah! A minha paz, sim: assim,
sob o punho, a minha idéia melhor que a sua!
Paz?
Ah! Sim, fique sob o meu peso
o peso da sua inexistência.
Paz?
Sim, claro, não mais que minha
a sua ideologia vá pentear macacos.

E assim, de mão em mão,
de pedra em pedra,
um muro, uma vala, um livro de deus,
tudo a todos distancia.
E a paz, coitada, esconde o rosto
ao passear entre os homens,
como a perseguida de todas as gentes.

O gesto inútil de conquistá-la
morre, enfim, no pano verde
de todos os jogos do homem:
história apenas para boi dormir,
enquanto, no entanto, cada criança
sonha e morre em campos de batalha.

9.4.2004

15 de jan. de 2009

QUANDO É SER IGUAL

Nada como ser mulato, cafuzo ou mameluco,
ser índio e indiano,
ter nas veias o sangue de japonês misturado ao alemão;
ter olhos azuis e pele negra;
ser negro, branco, amarelo ou cor de rosa.
Nada como ser branco de olho puxado
ou amarelo de olho redondo.
Não pertencer a nenhuma tribo
e ter no peito o som de todos os povos.
Não ser xiita, moabita ou judeu.
Não ter por que jogar bomba
em quem não seja como eu.
Ser tudo e ser todos.
Cara-pálida em terra de viking,
usar cocar no Coliseu.
Aborígine na guarda real
das falsas majestades em todos os palácios
de Europa, França ou Bahia.
Não precisar erguer altares, nem templos,
nem catedrais nem sinagogas.
Dançar livre e solto ao som do vento
sem precisar levantar a bunda para um deus qualquer.
Nada como ser mulato em terra de branquelo
ou ser branquelo em Pequim ou Bombaim.
Não pertencer a nenhuma etnia e ter todas elas
rolando nas veias com meu sangue bem vermelho.
Não obedecer a príncipes, reis ou aiatolás,
não beijar a mão de papas, pastores ou rabinos,
todos eles inúteis na minha inocente ausência de fé.
Ser heterohomobitrissexual e amar a liberdade
de dizer desaforos nas fuças dos poderosos.
Ser catalão e beijar cada espanhol,
entrar de cabeça erguida em Israel,
mesmo sendo palestino.
Andar nu como índio no parlamento europeu,
usar gravata e paletó em terra de pigmeu,
colocar no pulso um relógio suíço
e esquecer as horas numa piroga
em pleno rio Amazonas. Ser caiçara e esquimó.
E, sobretudo, dançar livre e solto ao som do vento
em festas de casamentos de todas as raças,
andar por ruas e vielas e becos e praças
de cada taba, aldeia ou cidade
subir todas as montanhas e descer todos os vales,
caminhar sobre as areias de todas as praias e desertos
e encontrar em cada pegada do caminho
a mesma marca do mesmo pé do mesmo homem.


6.2.2004

14 de jan. de 2009

O que quer um guru?

Ah, o guru! Tem nome que rompe
com rimas de penas de urubu,
mas, na verdade o que se pensa
é em outra rima com mesma letra u.

O guru! Tem alguma coisa no ar
quando se fala em guru: tem carniça,
tem preguiça de pensar bem,
de lembrar quem, quem? quem é que gosta
de um cara de bosta
chamado guru?

Tem guru de turbante, de voz rascante,
de iogas e de salamalaques, de cara de fuinha,
de vestes longas e sunguinha
de tricô: mas são todos o que são,
o mesmo cocô, a mesma merda
que a gente herda quando se fala de urubu
ou de carniça ou de traição.

Boboca não é o guru
que tem o olho na tua grana
e palavras inúteis para a tua vida:
boboca és tu, que precisas de guru,
idiotas são todos os que seguem
de olhos fechados com todos os cadeados
as cretinices,
as idiotices,
as crendices
que levam as mãos maneiras,
as mãos faceiras,
as mãos mais do que leves do guru,
sim, do inefável e pobre guru,
a comer tua bunda e teu cérebro
enquanto cata do teu bolso
com jeito sonso e cara de urubu
com toda a tua grana toda a tua dignidade.

Ah! com quantos gurus se faz um idiota?

E fico por aqui, com o meu poema.
Não tenho mais paciência para nem mesmo escrever
a palavra guru.
E tu?
O que pretendes tu?
Sim, o que pretendes?
Ficarás aí, como um tatu,
enfiado e encralacado
no teu buraco,
esperando a dedada,
a dedada salvadora?
Ou irás, enfim, sacudir de ti
as penas de urubu
e sucumbir, enfim, à rima,
à rima que eu penso quando penso em guru,
e mandar o teu guru, sim, teu guru,
e todos os demais e nunca será demais,
com todas as letras, com todo o teu ódio,
e mandar tomar no cu o guru?

(E que bem entendido esteja:
seja sempre e tão somente bem no olho,
bem no olho do cu
de todo e qualquer guru!)

13 de jan. de 2009

É PRECISO DESTRUIR TODOS OS ALTARES

È preciso destruir
Todos os altares, todas as piras, todos os templos
No coração dos homens.
Há cheiro podre de cadáver putrefato no ar e
No coração dos homens.
É preciso destruir altares de um deus morto
No coração dos homens.
É preciso que todas as piras não mais exalem
No coração dos homens
O cheiro putrefato do deus morto.
Templos de ódio, templos de dor, onde jazem
Como se fossem no coração dos homens
Deuses mortos, fétidos por estarem podres.
Da carne suja dos deuses mortos
No coração dos homens
Gases exalam rancores e ódios e trevas.
Do coração dos homens
O tóxico de opiários espirituais enlouquece
E destrói e mata e mutila e rompe
A carne vermelha de corações em chamas.

Não mais templos, não mais piras, não mais sacrifícios.

Matar os deuses dos corações dos homens
Seja da paz o gesto final.

terça-feira, 18 de setembro de 2001

quando se mata um rei...

Devia-se poder todos os dias matar um rei.
Não importa que rei seja – de copas, de ouro, de espadas ou de nada –
Basta que seja um rei e seja morto.
Que o seu sangue cubra o céu, que seu sangue suje o mar,
Não importa: devia-se poder sempre matar um rei.
Quanto vale um rei? Quanto vale um mendigo?
O rei ao mendigo faz, mas um mendigo nunca fará um rei.
Devia-se, sim, devia-se poder matar a cada dia um rei.
Coroas regem destinos, mas o destino não se compactua
Com salamaleques de penacho e reinados de capacho.
Como seria melhor a vida, se se pudesse pelo menos um dia sim e outro também
Matar um rei.
Um rei que reina é cocô de cachorro na calçada: pisamos e sujamos e xingamos.
Mas não esquecemos nunca.
E assim como não se esquece da merda na calçada,
Não esqueçamos nunca de poder matar todos os dias um rei.
Uni-vos, todos, ó regicidas! E clamai para todos os povos:
É preciso, sim, matar todos os dias um rei,
Porque, quando se mata um rei, a vida volta a reinar!

terça-feira, 19 de junho de 2001

12 de jan. de 2009

QUANDO SE MANDA UM CONDE TOMAR NO CU

Tua dignidade, onde está, meu senhor, onde?
No cu do conde,
onde teu avô se esconde?.

Conde, condessa,
barão, baronesa,
príncipe, princesa,
tudo
título de nobreza

dado por quem?
hem? hem? por quem?
por um deus cagão
vestido de roupão
de seda?
ou por um deus pregado
e coroado
de espinho,
sem pena de passarinho,
num triste madeiro?

senhor conde, senhora condessa,
sois, mesmo, herdeiros
de que sangue mais ameno
que azul
de metileno?
o que tem nas veias o barão?
licor de alcatrão?
o que tem na cabeça
essa nobreza?
chifres de ouro?
e o conde, e o cu do conde?
tem menos pregas o cu do conde?

ah! essa nobreza que se esconde,
se esconde aonde?
no porão cheio de ratos
ou dentro de lava-jatos
de gasolina azul?

quando se come um conde,
cru ou assado,
com o dedo cruzado
em talheres de ouro,
pode haver maior desdouro
que não lhe respeitar as ventas?

que conde, que nada,
apenas rapadura maltratada
de heranças imbecis;
carne nobre é carne de boi,
dependurada
em ganchos de ouro no açougue
sem glória,
sem história,
de tempos servis;

teu preço em ouro, senhor conde,
onde se esconde, senhor conde,
no teu cu de conde
ou no teu vil porão de grandes castelos?

tua língua oculta, teu semblante vazio,
senhor conde, não cabem em chinelos
do teu desvario:
me diz, senhor conde, vergonha não há
em comer mortadela e arrotar vatapá?
em vestir esses trapos de sujas bandeiras
como se fossem reles trepadeiras
de unhas-de-gato?
brincando de rato, de chato,
coroas de lata,
falsos festins, luas de nada,
nem ouro nem lata.
nem punhal de prata,
teu anel de pedra-pome, onde
seu velho conde? onde?

na campina, um corcel;
no castelo, o bordel;
aqui, seu conde, aqui, ó,
cagando teu ouro,
teu tesouro,
não estou assim tão só:
há, para cada um só conde,
milhares e milhões de bocas
todas loucas, muito loucas,
para te comer, senhor conde,
e milhares de paus e pedras
para te foder, senhor conde,
e tu me perguntas onde?
ora, senhor conde, se me permites
(sim, tu concordas com tudo,
em teus trajes de veludo)
mando-te já, com espinho de mandacaru,
tomar bem no olho do conde,
bem no olho do teu cu.


15.12.2005

QUANDO SE INAUGURA UM TEMPLO

Quando se inaugura um templo,
devia-se poder fechar todas as portas
e deixar ali dentro para sempre a orar
todos os imbecis e filhos da puta
que construíram com o dinheiro ralo
de todos os idiotas e enganados
aquele monte de merda e estrume.
Quando se inaugura um templo,
morre um pouco a esperança do homem.
Quando se inaugura um templo,
abrem-se mais abismos para o homem.
Quando se inaugura um templo,
uma sombra imensa desce sobre o homem.
Quando se inaugura um templo,
mais um monte de merda cai sobre o homem.
Ah! Quando se inaugura um templo,
devia-se poder destruir mil e quinhentos altares
que consomem a liberdade do homem.


segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

11 de jan. de 2009

QUANDO SE FUZILA UM GENERAL

No uniforme de um general se prendem
estrelas e divisas e condecorações
de guerra...

Do peito nu de um general se desprendem
pedaços podres de carne que chamam
coração...

Dos colhões de um general se apreendem
botins de batalhas e balas
de canhão...

No cu de um general não há pregas:
apenas a boca de uma metralhadora
ligando o cu sem pregas ao cérebro
sem neurônios...

De uniforme estilizado, ou de peito nu,
na frente de um pelotão de fuzilamento,
um general não deve mostrar medo de morrer:
ele deve por pra fora os colhões de canhão ou
mostrar o cu sem pregas para as balas dos fuzis.

Por isso, quando se fuzila um general,
todo cuidado é pouco – escolhem-se armas
de grosso calibre ou balas de prata
(como se fosse matar um vampiro)
porque na guerra (para um general,
não há tempo de paz) o campo verde
onde ele pisa vira a cada passada
um poço de sangue coberto de pus.


quarta-feira, 23 de abril de 2003

10 de jan. de 2009

quando se enforca um papa...

O que é um papa, senão a mitra que apunhala?
O que é um papa, senão a mancha vermelha da história?
O que é um papa, senão a palavra torpe de velhos assassinatos?
O que é, afinal, um papa? Um papa torna-se infalível pela lei dos falíveis!
Um papa torna-se onipotente pela força de todos os fracos.
Um papa é apenas um pretenso símbolo de um deus morto há muito tempo.
Um papa é apenas um trono bichado em meio às ameaças de morte
Que sopram do Vaticano.
Um papa não é a besta apocalíptica, porque a besta apocalíptica não existe.
Um papa não é um cristo idiota fincado no coração de quem o teme,
Porque o cristo idiota do madeiro não deixou dores que não fossem humanas.
Por isso, quando se enforca um papa,
Devia-se ver que há anjos de cuecas zorba tocando punhetas magistrais.
Por isso, quando se enforca um papa,
Devia-se poder brandir aos ventos os rosários de contas de velhas bêbadas e carolas.
Por isso, quando se enforca um papa,
Devia-se poder celebrar missas de cunilínguas e penetrações anais em todas as igrejas
De todas as vilas.
Por isso, quando se enforca um papa,
Devia-se poder cantar hosanas a todos os deuses gregos e romanos e egípcios,
A todos os deuses etíopes e a todos os deuses dos povos indígenas do mundo
Que tiveram seus deuses massacrados por uma fé de guerreiros e torturadores.
Que se enforque, pois, cada papa que a fumaça branca denuncie.
E mais: que se enforque cada antepapa na antessala da antevéspera da mesma fumaça!

segunda-feira, 2 de julho de 2001

8 de jan. de 2009

QUANDO SE EMPALA UM PRÍNCIPE

Na estaca em que se empala um príncipe
devia-se poder escrever
que por todos os séculos os sinos bimbalhem
que por todos os tempos
os pianos dobrem canções de amor
canções de eternos amores
à impossibilidade de que aquele príncipe
ali empalado em carne e osso
fique para sempre ali empalado
e não espalhe mais o seu nauseabundo cheiro
pelo mundo de flores que se descortina, afinal.

Que se empalem, pois, todos os príncipes.
Que se glorifiquem sempre, afinal, todos
os príncipes empalados e empalhados
como eternas múmias e eternos espelhos
de tempos que não virão jamais
sob a batuta enferrujada de velhos reis
que não se cumprirão.
E assim seja!



quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

6 de jan. de 2009

quando se crucifica um profeta



(Caravaggio - Judith Beheading Holofernes)







Há deuses mortos no panteão da história.

Há deuses podres nos portões da glória.

Há deuses inúteis nos altares da memória.

E há profetas presos à solidão das palavras.


O profeta não vê o futuro: vê a si mesmo vendo o futuro.

Como um deus morto, tenta recriar a vida.

Como um deus podre, tenta afastar as moscas.

Como um deus inútil, afaga o tédio com olhar aflito.


Não se deve olhar o profeta com consternação.

Não se deve ver o profeta com gritos de horror.

Não se deve enxergar no profeta o louco que ele imagina ser.

Um profeta é o enxergão podre do lixo do futuro

E nada mais.


Assim, nem é preciso que se crucifique um profeta:

Basta que se lhe dêem as próprias palavras

Com que ele um dia sujou o panteão da história.





quarta-feira, 7 de maio de 2003

5 de jan. de 2009

quando morre um ditador...






(A. não identificado)








quando morre um ditador

o camponês devia poder assar

do trigo que ele colhe

o melhor pão que ele já fez em sua vida

e reparti-lo com sua família

juntamente com a garrafa do vinho mais nobre

da adega do patrão...


quando morre um ditador

o pescador devia poder devolver

ao mar o mais belo pescado

e voltar ao sabor da maré

para enrolar sua rede na praia

e dançar durante toda a noite a churrasquear um filé

com o dinheiro do patrão...


quando morre um ditador

o estudante devia poder colar

na prova todos os conhecimentos

que o mestre lhe ensinou

e jurar para o professor

que para sempre na vida se tornará de repente

o mais sábio de todos os homens

e nunca será um patrão...


quando morre um ditador

o caixa do banco devia poder esquecer

a diferença entre todos os homens

e levar para casa a féria do dia com todos os juros

que seriam do banqueiro

para pagar de uma só vez a prestação da casa

que ele deve ao patrão...


quando morre um ditador

a moça que trabalha na loja de calçados

devia poder escolher o mais belo par

com saltos bem altos e caminhar

pelas ruas como princesa

para esquecer todos os vexames com que ela calça

todo dia o pé de cada madame

e o pé roxo da mulher do patrão...


quando morre um ditador

a sambista da escola da favela devia

sair a requebrar no salão mais nobre

do palácio do governador

não como a sambista do morro de ruas tortas

mas como primeira dama de um governo novo

que se lembre do povo da favela

e não dance nunca na mesa do patrão...


quando morre um ditador

devia a dona-de-casa poder deixar no fogo

a panela de feijão até queimar

e sair para as ruas a ver vitrines

e comprar todos os sonhos

que guardou no peito durante tantos anos

que ela nem sabe mais quais são

tantos dados ao patrão...


quando morre um ditador

o jardineiro devia poder plantar

os mais belos ipês de todas as cores

e quaresmeiras e tipuanas para todos os bem-te-vis

e mangueiras e jabuticabeiras para todos os micos

e todos os pássaros da cidade que já esqueceram o que é

uma boa fruta no pé

no jardim do patrão...


quando morre um ditador...

ah! quando morre um ditador

em cada canto do mundo onde existe um sonhador

devia-se poder fazer

a festa mais encantada

o baile mais bem balançado

o churrasco mais bem passado

o bumba-meu-boi mais bem dançado

o samba mais bem requebrado

o jogo mais bem jogado

a missa mais bem rezada

o canto mais bem entoado

o riso mais bem fotografado

e o viva mais do fundo do coração

como um suspiro que afinal revele

haver ainda no mundo muito mais que uma esperança.






segunda-feira, 30 de outubro de 2000


(Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, no seguinte endereço de podcast:

4 de jan. de 2009

para deus


(A. não identificado)


Reinaste no coração dos homens por muitos séculos.

Agora basta.

Não te querem mais a exigir altares.

Não te querem mais a exigir mantras.

Não te querem mais a exigir promessas.

Que te aquietes, enfim, no fundo dos neurônios

do homem liberto, que nasce agora.

Em teu nome já não poderá matar,

em teu nome já não poderá odiar.

Em teu nome já não poderá viver o homem que nasce agora.

Tenho, tenho, sim, muita pena de ti:

das tuas artimanhas, dos teus desvarios, dos teus loucos sonhos.

Perdeste, enfim. Recolhe-te a ti mesmo lá dentro dos neurônios

do homem que nasce agora.

Não deixará, contudo, o homem de fazer o que sempre fez,

mas não mais em teu nome, não mais por tua palavra.

Penso, então: se foi o homem quem se libertou

ou foste tu, afinal, que te livraste da sina

de ter teu nome sempre ligado

a todas as loucuras do ser que te criou?

quinta-feira, 13 de março de 2003

3 de jan. de 2009

o que é um padre? - 1




(A. não identificado)



Perguntei-me um dia, num dia de todos os santos:

o que é um padre?


Não é uma dúvida filosófica, é claro,

pois um padre – em sua inexeqüível existência –

não chegaria a provocar tal consideração...


Não é uma dúvida vital, também,

pois um padre – em sua impossível importância

na ordem das coisas – não resiste

a uma necessidade diária...


Não, sem dúvida, não é preciso que eu me pergunte

o que é, afinal, um padre...


Mas num dia de todos os santos, perguntei-me!

E lá ficou a pergunta a atazanar-me os miolos,

como um chato nos pentelhos,

como uma vaca solitária em imenso campo verde,

ruminando-me a paciência.


De tanto besuntar-me o bestunto

a idéia do que fosse um padre dentro da ordem das coisas,

perdi algumas horas a remoer respostas:

um padre é... um padre é... um padre é...

afinal surgiu, clara como a tez

de um nobre norueguês,

a resposta tanto tempo buscada em meu bestunto:

um padre não precisa ser

para existir – basta que haja merda no mundo

para justificar sua pregação inútil.

E chega: não falemos mais nisso!



terça-feira, 22 de abril de 2003



1 de jan. de 2009

o deus do madeiro


(Félicien Rops)





Preso ao madeiro rústico,

o deus não chora

mas também não ri.

Não pode haver mais que a sisudez

nessa hora solene.

E o deus que sofre deve manter

a tez serena, os olhos firmes

e a boca apenas entreaberta

sem espanto e sem impropérios.

A hora é esta e sob o madeiro

soldados deviam atirar-se sobre os despojos

e jogar dados e soltar palavrões.

Mas não há nada disso.

No altar barroco, apenas seu corpo em sangue

implode a vista entre ouros e pratas.

E o deus, em seu ricto de dor, empresta

à catedral um ar soturno. Seus fiéis

vivem vidas em campos e cidades,

alheios aos olhos mendigos do deus do madeiro.

Ao deus, então, só resta

o olhar vazio dentro das órbitas mal desenhadas

e o doce desencanto de nada poder fazer

pela humanidade.








3.4.2004