30 de out. de 2018

Mereces un amor / Mereces um amor, de Estefanía Mitre








Mereces un amor que te quiera despeinada,

con todo y las razones que te levantan de prisa,

con todo y los demonios que no te dejan dormir.

Mereces un amor que te haga sentir segura,

que pueda comerse al mundo si camina de tu mano,

que sienta que tus abrazos van perfectos con su piel.

Mereces un amor que quiera bailar contigo,

que visite el paraíso cada vez que mira tus ojos,

y que no se aburra nunca de leer tus expresiones.

Mereces un amor que te escuche cuando cantas,

que te apoye en tus ridículos,

que respete que eres libre,

que te acompañe en tu vuelo,

que no le asuste caer.

Mereces un amor que se lleve las mentiras,

que te traiga la ilusión, el café

y la poesía.



Tradução de Isaias Edson Sidney:


Mereces um amor que te ame despenteada,

apesar dos pesadelos que te acordam de repente,

apesar dos demônios que não te deixam dormir.

Mereces um amor que te proteja,

que enfrente o mundo se caminhares a seu lado,

que sinta que teus abraços aquecem o seu corpo.

Mereces um amor que queira dançar contigo,

que vá ao paraíso cada vez que contemple teus olhos,

e que não se canse nunca de olhar para ti.

Mereces um amor que te escute quando cantas,

que não ria quando fores ridícula,

que respeite tua liberdade,

que voe contigo,

sem medo de cair.

Mereces um amor que aceite tuas mentiras,

que te traga esperança, café

e poesia.






3.10.2018

(Ilustração: Marc Chagall - la-pareja-azul)

28 de out. de 2018

réquiem









nosso amor de outrora é hoje um casarão abandonado

por onde perambulam os fantasmas de nossa imaginação

saudades escorregam pelos corrimãos de escadas podres

as aranhas entretecem seus fios com fios de nossas mágoas

nos buracos dos assoalhos enterra o tempo nossos sonhos

os cupins do tédio já corroeram por dentro as estruturas

sexo e tesão rangem as escadas por onde sobem e descem

flanando inutilmente em busca de novos arrebatamentos

ouvem-se ainda gemidos inconstantes no vazio dos quartos

abandonados aos ventos os ecos de nossos antigos estertores

o pacto outrora de amor queima num fogo frio da velha lareira

o ciúme é o cão sem dono que enterramos no porão sem janelas

e esse casarão hoje abandonado que é o nosso amor só resiste

aos ventos à chuva às intempéries porque foi construído

com o cimento e a areia e mais todo o sal de nossas lágrimas





17.10.2018


(Ilustração: Manabu Mabe - sem titulo - 1959)

26 de out. de 2018

renovação








um verso que se me escapa pelos meandros da memória 

dentro de uma noite insone em que revejo em mim a história 

de quando eu menino corria pelos matos de minas em busca 

de uma bola perdida ou de uma cachoeira para o mergulho 

nas tardes quentes de pardais e bem-te-vis pelas mangueiras 

o comboio de vagões seguindo lento a maria-fumaça 

o sol estiolando mamonas e os pés descalços pisando espinhos 

as duas caranguejeiras arrancadas ao buraco do barranco 

com um pedaço de capim molhado de cuspe e elas no chão 

colocadas frente a frente combatentes sem trégua e sem bandeira 

lutando apenas porque lutar é seu destino mesmo que o oponente 

seja uma igual ou talvez por isso mesmo por serem tão iguais 

as bolinhas de gude rolando na areia o mandacaru florindo à noite 

e o pé de ora-pro-nobis debulhando bolinhas amarelas espinhentas 

a bola de meia arregaçando-se aos poucos na peleja pelo gol 

as brigas de moleques por invisíveis territórios não demarcados 

a jabuticabeira florindo desde a raiz em promessa de doçuras 

e o verso que se me escapa pelos meandros da memória 

transforma o desejo de vida em lembranças de uma noite insone 

para que a vida que ainda palpita possa na saudade se renovar 








23.10.2018


(Ilustração: Lavras/MG - anos 50)






25 de out. de 2018

precipícios







escrevo versos que viram poemas

às vezes e os escrevo apenas

porque se não os escrevesse

jamais reencontraria a sanidade

perdida numa noite de tristeza

quando ainda cultivava uma idade

em que o vento da vida era brisa



os versos surgem escorrendo por entre

os dedos e pingando pelos caminhos

pedem somente a estranha presença

de um pouco de desalento e desalinhos

entre hemistíquios e cesuras os resquícios

do entorno da vida e de meus precipícios





16.10.2018


(Ilustração: Tyrone Wright)




24 de out. de 2018

poetas mortos






não tem limites

a poesia

na cabeça do poeta



brotam à chuva

resistem à seca

movem-se na água

peixes incautos

voam nos ares

pássaros dissolutos

não se queimam

nem se deixam matar

resistem ao frio

flores de arabescos



não tem limites

a poesia

na cabeça de todos os poetas



por isso

quando leio os poemas de poetas mortos

não lamento que tenham morrido

há pouco ou há muito tempo

ontem num acidente de avião

ou na grécia antiga pela mão de um escravo

só lamento os poemas que morreram com eles





10.10.2018 


(Ilustração: Pierre-Auguste Renoir)


22 de out. de 2018

paisagens da minha infância








a velha estrada de ferro

o campinho de futebol dos pés descalços

os pés de frutas

mangueiras jabuticabeiras e o abacateiro

ameixeiras e bananeiras

ao longo do longo quintal em declive

a casa velha ainda de pé por pura teimosia

a praça arborizada o grupo escolar

morros e ruas tortas ladeiras e o bonde

a vetusta tipuana a igreja matriz

o céu azul azul azul os dias de chuva

barquinho que desce a enxurrada

com velas molhadas de sonhos

ipês aos ventos frios tapetes de flores

a noite cheia de estrelas cheia de estrelas

cheia de estrelas e o coração

batendo ao som das matracas da procissão



não há paisagens mais angustiantes

que tudo isso filtrado por olhos vagos





12.10.2018

(Ilustração: foto antiga - Lavras / MG




20 de out. de 2018

novos enredos






às noites de pesadelo devem suceder-se

manhãs em que se teçam novos enredos

para que das pétalas de flores maceradas

brotem pelos caminhos novas rosas

que amorteçam a dor dos pés machucados

daqueles que marcharam pela vontade de um grito

a anunciar a novidade de tempos menos ásperos

a possibilidade do abraço a quebrar barreiras

do ódio entranhado no olhar dos feitores

e o ser que gritar será mais do que humano

na transparência de primaveras e arrebóis

quando os velhos idealistas enfim arrancarão

de seus túmulos negros as cruzes torpes

para erguerem-nas bem alto como espadas

no amanhecer de uma nova ordem universal




    8.7.2018

    (Ilustração: Bernard Buffet (1928-1999) -revolution)





    18 de out. de 2018

    noturno número 9







    passeio à noite pelo jardim que só existe

    na memória de futuros que não viverei

    piso na grama molhada de neblinas frias

    pensando pensamentos de melancolias

    na saudade que na mente ainda persiste

    a contar os sonhos que um dia sonhei

    a grama o vento o frio a madrugada

    todo o mundo agora para mim é nada

    quando o vento que venta dentro de mim

    traz o retrato de sombras sem fim

    e o cantar dos meus passos na grama molhada

    desencanta os cantos da vida de outrora

    sujo os pés e limpo-os na grama de agora

    mas por dentro está tudo tão escuro

    e o vento que venta dentro de mim

    torna cada passo um canto cada vez mais duro

    no compasso estranho de estranhas vivências

    o frio a névoa o vento a madrugada o frio

    dentro de mim sopra o vento para o rio

    e navego num barco sem controle e sem remo

    sou apenas o que sei que sou e ainda temo

    que meu futuro seja assim como vento da noite

    a soprar dentro de mim como bate o açoite

    nas costas nuas de uma pele negra a donzela

    que não se entrega e não presta favores

    a mulher que um dia teceu uma fulva estrela

    com o recorte de seus dentes em meu peito

    e hoje que ainda sonho o sonho dos desertores

    pisando a grama fria da fria madrugada

    tenho para mim que ela foi a mais amada

    ainda que tenha o meu sonho todo desfeito

    e me deixado nu ao frio desta madrugada






    22.8.2018




    (Ilustração: Edvard Munch, evening melancholy, 1896)




    16 de out. de 2018

    meu refúgio









    quando encontro na estrada

    da vida a pedra dura

    e meus pés escalavrados não

    são só o que dói ou o que doía

    refugio meu pensamento na literatura

    e busco algum alento na poesia



    leio até me arderem a vista

    escritores de países distantes

    e para que da vida não desista

    entorno no agora tudo de antes 



    no passo do passado volto à vida

    esqueço os males do momento

    sopro com poesia cada ferida

    e deixo de lado o meu lamento



    se o que me incomoda no presente

    não tem cura nem qualquer alento

    transformo-me num ser ausente

    a voar nas asas do meu pensamento



    a literatura me tira da dor presente

    a poesia assegura o meu sustento

    quando releio poetas de outrora

    e descubro os poetas de agora



    possam ser a pedra dura

    das estradas escalavradas

    apenas as palavras lembradas

    da poesia e da literatura





    24.7.2018 



    (Ilustração: Norman Rockwell:
     Nova Iorque, 3 de fevereiro de 1894 — 
    Stockbridge, Massachusetts, 8 de novembro de 1978)

    14 de out. de 2018

    luz da lua






    que brilhe a lua

    apagando estrelas

    que brilhe a lua

    para todos que amam

    que hoje estou apaixonado

    e sentimental pra diabo

    bebericando uma boa branquinha

    sentindo de novo um pouco

    das paixões de outrora

    sem pensar que estou agora

    muito mais só do que jamais estive



    e esse sentimentalismo bobo

    que em mim vive e sobrevive

    não passa de um jogo de cena no teatro

    que enceno para mim mesmo

    no meio da noite de lua branca

    e por isso escrevo versos tolos como este

    que brilhe a lua

    apagando estrelas

    e outras bobagens dos tempos de paixões

    quando o coração não era apenas

    a bomba num peito murcho

    mas pulsava ao som de valsas



    curtindo a noite em solidão profunda

    os espaços todos de meu pensamento

    preenchidos não de dor ou desapontamento

    mas apenas de desalento e desconfianças

    a vida a tecer tramas ao meu redor

    nas quais me enredo para fugir de mim

    eu o estranho a beijar a lona

    da luta inglória pela sobrevivência

    a carne em fogo na trempe quase fria

    dentro da noite os passos trêfegos

    em becos sujos que terminam em muros negros

    a esperança em trapos e os pés feridos



    que brilhe a lua

    não importa mais que ilumine estradas

    não importa mais que reflita pupilas acesas

    a lua continua seu caminho

    e o poeta apenas bebe o cálice de sua paixão

    (e isso é só mais uma bobagem que escrevo)

    e chora por si mesmo sem que saiba

    que não há lugar no mundo para seus versos

    nem para seus uivos à lua que brilha

    numa noite torpe sobre a cidade vazia

    de amores advindos e amores findos

    flores e pedras de delírios que a lua

    no céu de mármore nunca mais iluminará





    9.9.2018


    (Ilustração: Marianda VP - luar sobre Atenas)


    (Você poderá ouvir esse poema, na voz do autor, no podcast indicado acima, à direita)



    12 de out. de 2018

    leveza






    estou leve

    leve como uma pluma ou uma asa de graúna

    leve livre solto

    ainda preso à terra esperando

    um vento ou uma leve brisa

    que alce meu corpo leve

    para os páramos

    para as estrelas

    para qualquer galáxia

    não havendo vento e não havendo brisa

    convoco os pássaros

    qualquer pássaro

    pode ser um pintassilgo

    ou até mesmo um levíssimo beija-flor

    com seu bico me alce

    no seu bico me leve

    e voarei

    voarei por sobre todos os meus sonhos

    que ficarão sepultados para sempre

    num jardim qualquer coberto de sempre-vivas





    23.8.20128 


    (Ilustração: esc. de Fredrik Raddum: o poeta; foto de a. não identificado)


    10 de out. de 2018

    jogo da vida





    vida útil x vida inútil

    neste jogo só perde quem não joga

    vida útil x vida inútil

    o placar de zero a zero indica que o jogo

    vai começar e que entrem os contendores



    pela vida útil

    o carimbo na poesia

    os tijolos suspensos no ar

    o vomitório na cama de ferro

    o lírio murcho entre as coxas

    o veneno nos escapamentos

    os estertores nos cemitérios

    o rio roxo coberto de fuligem

    o campo minado

    o brejo dos dólares de tio sam

    o espanto dos urubus

    o grito dos desesperados



    pela vida inútil

    a rosa branca no fundo do jardim

    a sonata ao piano no meio da noite

    a sensação de formigamento no ventre

    as pernas que balançam no abismo

    a gota de luz na testa do atleta

    a esperança (mesmo que pouca) do poeta

    a bola que rola nos sonhos infantis

    a virada do vento no fim da tarde

    a língua ferina da vênus de milo

    a risada franca no alto da montanha

    a silenciosa passagem da lua



    façam suas apostas senhoras e senhores

    façam suas apostas mesmo que saibam que

    nenhuma ficha será paga a nenhum ganhador

    o crupiê arrecada de todos e a roleta roda sem parar

    sofram ou sorriam

    abracem-se e beijem-se

    ou esmurrem-se até o knock-out

    seus gritos de nada valerão

    seus sonhos serão torrados em fogueiras de vaidades

    seus anseios ficarão pendentes dos lustres de cristais

    e serão vendidos a prestação em liquidações e leilões

    será tão útil para a vitória de seus números malditos

    quanto será inútil para a derrota de seus altares

    toda a mandinga que fizerem ao redor do eixo da terra

    e a vida sempre celebrará (ainda que nos túmulos cerrados)

    a vitória e somente a vitória de genes e moléculas

    vida útil x vida inútil [horizonte apenas horizonte]





    5.9.2018


    (Ilustração: esc. de Maria Martins - O-Impossivel; 
    foto de autoria não identificada) 



    8 de out. de 2018

    grávido







    concedes-me o mistério de possuir teu corpo

    e encontrar em ti o meu desejo quando espalho

    a minha semente sinto-me grávido de ti

    a dar ao sol da primavera a vida dos filhos teus

    cumprir em teu gozo o meu destino cego

    homem embora a abrir-me à tua fértil correnteza

    enviar ao mar as tormentas de minhas tardes

    ao colher de teus lábios espertas manhãs

    de lubricidade e espanto ser teu servo

    e teu senhor sendo de ti mesma a eterna

    fonte de vida e de mistérios de minha gravidez



    15.9.2018


    (Ilustração: Nicoletta Tomas Caravia)



    6 de out. de 2018

    final feliz







    todos gostamos de histórias com final feliz porque

    o único final feliz que a vida nos oferece

    é o seu próprio final

    e esse final a maioria das pessoas não acha que ele seja feliz



    no entanto se não fosse o final da vida um final feliz

    para a própria vida

    não teríamos por que viver já que a vida só tem sentido

    porque pode nos propiciar um final ainda que não seja feliz



    mesmo que gostemos todos de histórias com final feliz

    festejemos sim a vida

    enquanto não chega ela mesma ao seu final que

    gostemos ou não

    será sempre um final feliz







    25.9.2018


    (Ilustração: Luis Ricardo Falero)



    4 de out. de 2018

    cadeia







    acendo um poema em outro poema 

    como quem acende um cigarro no outro 


    ana martins marques 



    estou preso ao poema

    não

    não estou preso ao poema

    estou preso aos poemas

    são muitos

    tecem em torno de mim uma cadeia

    prendem-me atrás de suas grades

    versos que não são versos

    decassílabos falsos e alexandrinos sem nenhuma vergonha

    de não serem alexandrinos

    não importa

    tenho-os para mim como vício

    escrevo-os apenas

    e nem sei muito bem às vezes

    o que eles querem dizer

    escrevo-os

    encadeados enleados enraizados

    todos todos todos

    emaranhados uns nos outros

    no terreno pedregoso de minha inspiração

    ou seja lá o que isso se chama

    essa chama esse comichão

    de escrever tortos pensamentos

    em versos retos ou retos pensamentos

    em versos tortos

    assim sobrevivo à minha própria vida

    e não morro a minha própria morte

    escrevo-os escravo que sou






    18.9.2018


    (Ilustração: Marc Chagall)






    2 de out. de 2018

    uma vida


     





    se ainda estou aqui

    amanhã posso não mais estar

    e o problema não será meu

    a vida é chuva que molha

    e depois seca

    vento de montanha

    espaço que se preenche

    na constância do tempo

    o estar no mundo significa apenas

    manter acesa a corrente do tempo

    mesmo os que ficam

    não ficam por muito tempo

    um átimo dura uma vida

    insuficiente para se ter

    qualquer noção de infinito





    21.9.2018


    (Ilustração: Giovanni Giacometti)