27 de mar. de 2009

OS BÁRBAROS




(Botero)


os bárbaros que temem bárbaros
em seus castelos escondidos
atrás de paliçadas trancados
colecionam armas
que dos bárbaros os defendam
milhares, milhares de armas
nos armários, sob as camas
nos fornos das cozinhas
atrás dos livros nas estantes
armas e armas e armas
mortíferas, potentes
armas de bárbaros de dentro
contra as armas de todos
os outros bárbaros de fora

até que um dia, já cansados
de tanto tempo esperar
para o castelo conquistar
cansaram-se os bárbaros de fora
e para longe se mudaram
mas antes de enfim partir
num grande monte ajuntaram
bem na frente do castelo
as armas com que combatiam
e sem olhar para trás
deixaram-nas lá, as suas armas
armas tão potentes, tão mortíferas

pulam as paliçadas os bárbaros encastelados
e festejam a vitória há tanto almejada
não há mais bárbaros com quem lutar
só há bárbaros loucos a dançar

erguem fogueiras
assam batatas
tomam vinho
provocam as mulheres
tiram-nas à força
para com eles dançar

a festa se impõe
o instinto aflora
mulheres reclamam
e os bêbados maridos
e os bêbados pais
e os bêbados irmãos
não querem suas mulheres
não querem suas filhas
não querem suas irmãs
a dançar a dança
dos outros bárbaros tão bêbados

os bárbaros que dançavam
já não dançam
os bárbaros que cantavam
já não cantam
os bárbaros que bebiam
já não bebem

há no ar um cheiro de sangue
há no ar um cheiro de briga
há no ar um cheiro de vingança

e há perto das fogueiras
milhares de armas
de armas tão belas

e os bárbaros que cantavam, dançavam e bebiam
partem para cima dos bárbaros
que também bebiam, dançavam e cantavam:
ao primeiro soco a mão rebateu
à primeira cuspida com cusparada se defendeu
ao segundo murro um tiro respondeu
e então correram todos
às armas
e então buscaram todos
as armas
e então pegaram todos
nas armas
as belas armas abandonadas pelos bárbaros invasores
e a noite de festa em outra festa se transformou
bêbados, loucos, raivosos, com gosto de sangue na boca
irmão matou irmão e filho ao pai não perdoou
mulher no marido atirou e marido à sogra assassinou
calou-se a voz do que antes cantava
parou a dança do que antes dançava
e o vinho que antes alegrava
tinha de sangue o acre sabor

lá de cima do morro
de tocaia na noite
a tudo assistiam
os bárbaros espertos
que as armas deixaram
e de tocaia ficaram
no morro a esperar

o sangue correu
a batalha arrefeceu
e os bárbaros choravam
as baixas da luta

os bárbaros do morro
em hordas de bárbaros
com gritos de júbilo
desceram à campina
as gargantas cortaram
dos poucos que restaram
as paliçadas pularam
e o castelo conquistaram


agora estão lá, atrás das paliçadas
bárbaros que castelos não tinham
agora, bárbaros encastelados
bárbaros que bárbaros não temiam
entulham de armas o castelo
espiam com susto a campina
arrepiam-se a cada aragem
trancam-se com todos os cadeados
mais, cada dia mais desesperados.



8.10.2005


 (Você poderá ouvir esse texto na voz do autor, no podcast indicado ao lado)


24 de mar. de 2009

tempero maligno





(Laura Lima)






...sedas e arminhos, não sei mais suave o sabor de seus seios, não sei, o louco anseio de tocá-la, sem meio, sem fim, sem pejo, sedas os seios, o dorso, a montanhosa geografia do prazer, a bunda, o rio, o lago e entre as colunas o arminho suavemente loiro, suavemente essência, perfumes do oriente, madeira, o suave enrijecimento ao toque, essências de culinárias exógenas, estranhas, sabores, sabores de trigo ao amanhecer, você, inteira ali, nesses entrevales e rios, você a abrir manhãs de sol e chuva, cheiro de terra, você, doce amanhecer de variados sabores e variadas cores, sabiás, curruíras, bem-te-vis, sonhos cobertos de canela e açúcar, laranja doce em calda, veneno em minha boca, de prazer, em temperos do oriente, arminho adocicado em fervuras de caldas, doce o seu enleio, aperta-me, aperta-me até o fim, o sonho enfim, o sonho, louco, sem empecilhos a cavalgada em nuvens e neves, prometa-me, prometa-me o caminho sem pedras, o alçar suave da montanha, amada minha, o tom e o toque de operetas e sinfonias de outono, primaveras despetaladas em rugosidades de arminho, o ponto exato de seu imenso lamento para dentro de mim, enfim, você inteira cravo bem temperado à luz de minhas pupilas, o caminho para a vida para sempre perdido entre vales e montanhas que sobem longilíneas colunas até o paraíso, o cheiro, o cheiro de madrugadas e madrigais, o cheiro adocicado de seus líquidos e liquens, algas marinhas nuvens, nuvens de algodão doce, onde me perderei para sempre, para sempre, no tempero maligno e infernal de seus arroubos...



21.8.2006