26 de abr. de 2024

diálogos ateus

 



faço-lhe de surpresa a pergunta:

- durante o orgasmo você pensa em deus?

nesse momento as mãos para o céu ela as junta

e vejo um brilho novo nos olhos seus

e não sei como nem de onde

ela tira sua fé

mas logo me responde:

- o meu gozo vai do fio dos cabelos meus

até o dedão do meu pé

e é quando eu mais sinto a presença de deus

- então você crê que o seu deus

não passa de um espasmo?

- ora, não me venha com argumentos ateus

mas do fundo do meu útero eu acho que deus

é tão somente um orgasmo





11.1.2022

(Ilustração: escultura de Bernini: Extase de Santa Teresa - Detalhe)

23 de abr. de 2024

dia a dia

 


 um quarteto de cordas

acompanha o canto

dos passarinhos

na pitangueira

 

a jabuticabeira em flor

atrai

os zumbidos afinados

os bicos nervosos

dos colibris

 

a manhã transcorre

sem sobressaltos

 

ao almoço preparo

um fetuccine

com bastante molho de tomate

e esvazio a garrafa

do vinho branco espanhol

bem geladinho

- sem me preocupar

com harmonizações

 

deixo que a preguiçosa rede

adocique o meu entardecer

 

 

como um fauno

viúvo de ninfas

enlanguesço-me

 

rabisco versos simples

antes de adormecer

 



13.11.2022

(Ilustração: Ogata Gekko - A young man sleeping and dreams of a young bijin)

19 de abr. de 2024

deus e o diabo

 





o diabo pegou régua e compasso

para medir tudo o que eu faço



então pulei a corda do tempo

para lhe trazer algum destempero

e tive apenas um momento

para mandar ao diabo seu desespero



deus sorriu de minhas falsidades

e encaixou todas as minhas idades



num único tempo de solidão

naveguei no mar de seus escolhos

perdida a bússola e o timão

cego eu e deus de ambos os olhos



gritei para o infinito e o infinito não me ouviu:

mandei deus e o diabo para a puta que os pariu





24.5.2022

(Ilustração: Corrado Giaquinto (1703–1766) - Satan before the Lord c.1750)



16 de abr. de 2024

desígnios palacianos

 


há buracos negros

nos cantos obscuros da terra

e no peito de milhões de cidadãos

 

bandeiras de piratas tremulam

nos olhos cegos de poderosos

 

corsários de olhos aquilinos

lançam sobre o mar de mortes

os escaleres lotados de abutres

 

das covas os fantasmas amargurados

destroçam cruzes que os corsários plantaram

 

há silêncios negros no negrume das salas

e milhões de vazios à luz azul das televisões

 

os jantares ocorrem sobre mesas negras

porque são negros os desígnios palacianos

na noite estendida de fantasmas e corsários

 

1.7.2021


(Ilustração: Adolph Menzel / Adolph von Menzel)

13 de abr. de 2024

desespero

 




o sabiá que canta no meu quintal

canta para anunciar a primavera

não sabe o sabiá que o mundo espera

que seu canto não se cale diante do mal

desse mal que à humanidade consome

muito além do que já sofreu um dia

um desespero além da miséria e da fome

trazido por um vírus numa pandemia





24.9.2020

(Ilustração: Artemisia Gentileschi - Magdalena penitente)

10 de abr. de 2024

desencanto

 

 



talvez eu queira me embriagar

até que meu sangue tenha

todas as cores do arco-íris



talvez eu queira dançar

até que meu corpo se dilua

nas ondas de uma preamar



talvez eu queira gritar

até que minha voz alcance o corno

de uma qualquer lua minguante



talvez eu queira chorar

até que minhas lágrimas virem

vazios lagos de cristal



porque talvez eu seja

o poeta surdo e cego

[que eu nunca fui]

a flanar pelas ruas

da cidade de paris

[aonde nunca fui

nem nunca irei]

talvez eu queira

apenas dormir

e nunca mais acordar




7.3.2024

(Ilustração: Iman Maleki - alone with sea)

7 de abr. de 2024

depois do banho

 


 



vestida de água

ela sai do banho

não é vênus

não é calipígia



suas formas esguias

ondulam

buscam o recato



mas recato não há que a cubra



então ela coleia

num sorriso em brilho de diamante

me beija de leve os lábios

abraçamo-nos



a água

pelos nossos corpos vira pérolas



depois que tudo acaba

estamos exaustos



lá fora a lua

acaba de emergir

também plena

também nua



1.3.2022


(Ilustração: Amtonnine Jean Gros: Diana en el baño)

5 de abr. de 2024

dentro de mim

 




ando vagarosa e silenciosamente pela casa

os passos mal ressoando no piso frio

os olhos atentos a cada detalhe

para assegurar que não há nada de anormal

ou fora de lugar



na penumbra de salas e quartos

não há sombras nem vestígios de vida

tudo é silêncio

e o silêncio tem o peso dos meus pensamentos



- dentro de mim fervilha o vulcão

de sensações e solidões escondidas

nos desvãos de meu cérebro em brasa

- só há silêncio nos meus passos

não há silêncio em meus pensamentos



18.1.2021

(Ilustração: Eric Lacombe - dark abstract portraits)

1 de abr. de 2024

cultivo a minha solidão

 


cultivo a minha solidão como frágil flor na rachadura do muro nascida


pronta – sempre – para alargar o seu espaço até se tornar árvore

mesmo à pouca chuva sujeita

mesmo contra o sol radiante

mesmo contra a lagarta faminta

cultivo-a sempre assim ao meu peito arraigada – planta daninha

que me fortalece ao tempo que me suga momentos de vida



seja a minha solidão como a eterna companheira

que – mesmo arrancada de vez em quando – renasce sempre

quando preciso de mim mesmo no meu desconsolo de viver



24.4.2020

(Ilustração: Alméry Lobel-Riche (1880-1950): Le Bord du Lac - 1900)

29 de mar. de 2024

coração vagabundo

 



tenho um coração vagabundo

de cão vadio de rua

a ganir pelos becos do mundo

esquecido de que há no céu uma lua



corre ele das pedras que lhe jogam

e atravessa os cruzamentos da vida

ignorando todos os que logram

pedir que que ele não mais agrida

os fascistas e todos os prepotentes



meu coração vagabundo é o cachorro

que odeia esses canalhas e mostra os dentes

aos que se escondem atrás do morro

para atirar bombas incendiárias

sobre o povo que pede aos presidentes

condições de vida menos ordinárias




10.11.2022

(Ilustração: Anita Malfati - as lavadeiras, 1920)




(Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, neste endereços de podcast:

26 de mar. de 2024

contrastes

 





lá fora é assim:

foge a lua ao ziguezague que mata e aflige

quando o sangue suja o beco



aqui dentro é assim:

fica a lua a flutuar na nuvem de lembranças

quando o beijo adoça a noite



passeio lá fora pelas savanas da morte

vendo os tigres e os leões rosnarem para tigres e leões

enquanto no chão rasteiro rastejam seres ignaros e ignorados

mergulhados no sangue ignóbil

com seus andrajos e suas pústulas

seres exangues e desesperançados

carne moída para a comida fácil de leões e tigres



mergulho em mim buscando águas plácidas

e mesmo em piscinas azuis de redemoinhos loucos

por onde rodo e rolo em loucas memórias

sou em mim mesmo meu porto de maré baixa

e não tenho pústulas nem rastejo exangue

pelos meandros de meus sofrimentos

e não sou carne moída de tigres nem de leões



pulo pela janela do entorpecimento e caio na luta febril

dos que buscam na fome a folha de alface da lata de lixo

escorregam os ideais de igualdade pelo ralo do esgoto

pululam os ratos mordendo narizes e bocas pálidas

perdido o direito de viver entre humanos rastejam

pelo espaço entre o olho vazado e a boca escancarada

mais podre que os dentes dos miseráveis abocanham-nos a todos

as fauces sempre famintas das engrenagens das máquinas de dólar



estou só dentro de mim olhando pela janela da minha esperança

e conjuro os encantos de jardins suspensos na tarde de calmaria

navego pelos mares de mim conduzindo o veleiro do desejo

e despejo os dejetos de minhas desesperanças no vazio do oceano

são meus olhos atentos os faróis de minha transnavegação

sinto em mim mesmo o sentimento do humano mais humano

de ser o caminho ainda que tortuoso para o cimo de minhas engrenagens

e a fome delas – das engrenagens – é que alimenta a visão do ódio do mundo



lá fora é assim:

eles juram a morte sobre os juros do dinheiro sujo de sangue



aqui dentro é assim:

juro de morte os assassinos das minhas noites mal dormidas



e tudo é assim:

apenas sonhos de campos de guerra ou campos de guerras de sonhos

matam-se apenas

matam-se





24.5.2022

(Ilustração: escultura de Matías Sierra - lector)

23 de mar. de 2024

contradigo-me

 



talvez eu compre um disco

do Alceu Valença

talvez eu assopre o cisco

da minha descrença

 

compreendo enfim – como andarilho –

que sou dentro de mim

o estranho sem qualquer brilho

a caminhar sem fim

pelas rotas das estrelas e das montanhas

e talvez nem seja

o dono das minhas lembranças estranhas

nem a mosca que adeja

em torno da lâmpada azul

– se penso em mim como caminheiro

não sei se vou ao norte ou ao sul

sou apenas um poeta sem dinheiro

 

por isso – embora seja minha crença

não crer em nada e ser um feiticeiro

não vou comprar o disco do Alceu Valença

 

2.7.2023

20 de mar. de 2024

conquistadores

 




quem sabe o presente seja

o presente que você deseja

quem sabe o futuro

seja o furo

no espaçotempo de um tempo

que não existe nem persiste

no passo lento do sopro do vento



quem sabe quem vem do norte

trazendo vida ou traçando morte

quem sabe das multidões

que lutam contra as erupções

de vulcões extintos



quem sabe das taças de vinhos tintos

erguidas ao som de canções

das rainhas loucas do século XVI

quando do porto secreto

inflava as velas ao discreto

anseio louco de cada vez

que a lua cheia

no sangue que jorrava da veia

o conquistador erguia a cruz da morte

soprando o vento que vem do norte




18.11.2021

(Ilustração: grafitti de Banksy - New York)

17 de mar. de 2024

concerto para violão

 





voo ao vento o violão

na noite o vinho tinto

claro que estou recolhido

ao espaço mínimo de meu quarto

o concerto para violão de

francisco mignone

na tevê – no último volume



lá fora o calor da primavera

que mal começa e já parece verão



curto com os olhos atentos

as mãos do violonista às cordas do violão

como se tocasse – ele o concertista –

as cortas rotas de meu velho coração



ah! as velhas metáforas do sentimentalismo

o coração como o pulsar absurdo de todo meu ser



desce sobre mim a névoa dos dias idos e repetidos

a estranha sensação de estar só no meio da multidão

quando não há em meu quarto mínimo

senão eu comigo mesmo

eu – multidão de vidas antigas

e talvez nem sempre devidamente revividas

eu – o poeta solipsista em sua / minha rede

a ruminar versos e reversos da vida

enquanto ainda há tinta em sua / minha caneta esferográfica



o mundo lá fora a regurgitar

pólvora e pó de penugens de pássaros

o poeta – eu? – a lembrar – ou não – falsos momentos

à luz do luar



sempre foi assim

a solidão

o vinho

e agora o violão

o violão em concerto para o seu / meu desconserto do mundo

os saltos de memórias

os intervalos de novelas

os gritos de gol

a euforia de momentos de outrora no sempre agora

afora os estertores de úmidos lamentos



se sofro – ou não – os meus versos reversos

não revelam

e o concerto de violão chega ao fim

e o seu / meu poema estica-se pela folha

e como todos os meus – também do poeta? – tormentos

não terminam nunca

jamais





23.9.2023

(Ilustração: Shabby Chic - the guitar man)


Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, neste endereço de podcast:


14 de mar. de 2024

companheira

 

 



na noite nem quente nem fria

quando lá fora povoa-se o mundo de espectros malnutridos

esgueira-se por sob o vão da porta a nuvem branca da amiga solidão



não sei se serei eu a envolvê-la em meus braços

- mesmo fluida e melíflua nuvem -

ou será ela a cobrir-me com sua nívea calma de noite nem quente nem fria



sei apenas que ela vem para povoar de prazeres incontidos

cada palavra de meus versos

e cada verso de meus poemas confessionais



entregamo-nos aos anseios recíprocos e somos um do outro

companheiros idealizados e ideais

para preencher compartimentos cheios de esperanças vazias



mas não de todo vazios nós estamos da lágrima

que derrete o gelo de nossos abraços fraternais



25.11.2021

(Ilustração: Leonor Fini - Woman Seated on a Naked Man 
(Femme assise sur un homme nu), 1942)

10 de mar. de 2024

epifania da solidão


 



na casa de minha tia o relógio de parede marcava o tempo

tiquetaqueando o lento passar das horas

nas paredes brancas e nas tábuas do longo assoalho de madeira encerada



o garoto pobre que ali dormia

quando o casal viajava

nada sabia daquelas longas noites

senão o prazer de uma casa melhor

e toda ela inteirinha para si

um quarto amplo e cobertas quentinhas

sobre um colchão macio



não vigiava o vazio da vida no tique-taque do relógio

porque a vida era cheia de aventuras

e de futuros imaginados ao som do velho relógio

seu monótono tiquetaquear de horas alongadas

nos macios sonhos de alongados sonos pelas manhãs preguiçosas



era um tempo de bem-te-vis e jabuticabeiras em flor

e pela noite de lua nova

os passos do menino ressoavam pelos corredores

da velha casa de seus tios viajantes



os bem-te-vis que gritavam para a tarde sonolenta quase noite

e as jabuticabeiras vestidas de noiva

que trocavam o botão nevado por pérolas negras de doce sabor

são hoje apenas pedaços de sombras

um falso tiquetaquear de vida

a bater em seu peito envelhecido



não há mais noites alongadas de sonhos e esperanças

não há mais sonhos a serem sonhados

não há mais jabuticabas explodindo na boca

não há mais bem-te-vis brigando pelas tardes

não há mais o velho casarão e seu relógio de parede



na noite da cidade grande

onde o matraquear do vento

traz apenas ruídos de motores

e vozes temperadas de angústia

o menino temperado pelo tempo

olha no espelho vazio a cabeça branca

e ouve de novo o velho tiquetaquear

não do relógio da parede da casa dos tios

mas dentro do peito o coração

na epifania final da minha solidão




5.5.2022

(Ilustração: Franz Krischke (1885-1960) - Old Clock)



Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, neste endereço de podcast:

https://open.spotify.com/episode/25c1EULqnatMVxSmePtB77?si=6hbHzR4XQaOz-o94B9Et3g

8 de mar. de 2024

como dizia Cartola

 

 

noite de lua cheia

abro a janela

para fruir a energia que vem da lua

 

mas [plagiando Cartola] que bobagem

a lua não tem nenhuma energia

simplesmente a lua ilumina minha saudade

e o meu peito se enche de felicidade


 

2.12.2023

(Ilustração: Anna Pismenskova - a lua cheia em 31 de janeiro)




5 de mar. de 2024

cio

 




no telhado do meu desejo uma gata no cio

reflete nos olhos de espelho o brilho das estrelas fugidias



dentro da noite - esquecida do frio

por seus trejeitos de felina -

corre sua unha assassina

por minhas costas arrepiadas de espanto

traça caminhos leitosos de espuma e pranto



cada movimento lunar de suas pernas

aperta-me os rins e sou tragado para seus abismos

amantes enlaçados para sempre nas noites eternas

do universo fechado de nosso acalanto

placas teutônicas sob nossos corpos provocam os sismos

do gozo fatal refletido nos seus olhos de gata no cio



cai a chuva das estrelas distantes

transborda o rio

expele o vulcão a lava que nos encobre

e arrebenta o dique represado durante os anos de exílio e saudade

para terminar esse poema numa rima pobre

na explosão da nossa felicidade



19.10.2021

(Ilustração: Hannah Yata - Crazy Erotic Paintings)

2 de mar. de 2024

cidade negra


 


a cidade de trevas dentro da cidade de luzes

das tumbas abertas brotam miasmas

na noite da cidade negra surgem cruzes

e dançam nas ruas estranhos fantasmas

 

o diabo torceu o rabo em forma de tridente

e o passo fúnebre de tristes coveiros

pousou nos ossos e nas caveiras sem dentes

cantando osanas e fugindo dos desordeiros

 

descem sobre o lodo do rio podre

pirogas velhas comandadas por anhangás

para lançar maldições às casas de adobe

onde o branco sangra as veias da paz

 

das antigas guerras entre tribos canibais

são traços eternos e etéreos as trevas

que a cidade negra cobre com jornais

no compasso das procissões medievas

 

cidade negra onde troveja e os raios

partem as árvores que servem de calabouços

para que em todos os dias de todos os maios

mostrem vazios os operários os seus bolsos

 

mata-se a fome de quem nega a fé

com restos das mesas dos ricos

e o pobre caminha pelas ruas a pé

quase nu com seus trajos impudicos

 

pululam na cidade negra os desencantos

que a luz da cidade que brilha por cima

não espanta nem com muitos cantos

de missas horrendas que Anchieta anima

 

sonatas acompanham as solenes danças

de ninfas pálidas nos fétidos palacetes

balançam para cá e para lá suas panças

alcaides que juram crença aos cassetetes

 

os porcos que pastavam chá onde havia

um fundo de vale sujo que agora brilha

cheiram cocaína na noite escura e vazia

acendem com notas de mil sua cigarrilha

 

não me perco em seus becos ó cidade

que és negra como o fundo do universo

sei que tua lama a tudo e a todos invade

menos as rimas desse meu torto verso

 

4.9.2022


(Ilustração: Tito Fornasiero - Metropoli - São Paulo)

 

28 de fev. de 2024

chamado

 




as montanhas de minas chamam minh’alma

eu – ateu engessado e confesso – não tenho alma

sou todo carne e ossos e pelos e lágrimas

a chorar chamas de gelo pelos descaminhos

- cantor sem voz e poeta sem musas

pobre e ferrado aposentado do INSS

- apenas um pontinho negro nas estatísticas



muito jovem jogado no meio da grande metrópole

formei-me em letras e virei professor

joguete agora e sempre das forças econômicas

acordo velho e sem dinheiro



prescreve a pena de poemas cheia

como única forma de sobrevivência

que atenda o chamado das montanhas de minas

mas ateu sem alma e sem mais vontade

não vou morrer tentando voltar ao que não mais existe



7.5.2023

(Ilustração: José Rosário Castro - paisagem com flamboyant florido)

25 de fev. de 2024

cena noturna

 




latidos na madrugada

vizinhança alarmada

gritos aflitos

- ladrão! ladrão!



um vulto pula o muro

- um tiro!

um corpo na calçada

gente alvoroçada

- liga para o distrito!



o moço agoniza



do leito ainda quente

– nua – desliza

a moça assustada

olhos de pranto e medo

espiam pela fresta da janela

o corpo na calçada

– seu mais profundo segredo



26.9.2023

(Ilustração: George Grosz - 1916)


22 de fev. de 2024

cena erótica

 




cheia de pudores a puta que levei para o quarto

meia hora para convencê-la a tirar a roupa

e quando de suas firulas e negaceios já estava farto

foi para debaixo do chuveiro e pôs uma touca

lavou-se furiosamente e também a mim

com muito sabão e muita esfregação

algo que me deixou com uma puta ereção

e ela gostou do que viu – eu e meu pau de pé assim

mas apenas lavava e lavava e lavava

finalmente lavados

muito bem enxaguados

e enxugados

voltamos ao quarto para – pensei – continuar o drama

mas ela disse que seria para sempre minha escrava

se eu deixasse que fosse ela a dirigir toda a trama

pôs-me então sentado na beirada da cama

ajoelhou-se com todo o cuidado sobre meus tênis

para não esfolar os joelhos – ela me explicava –

e chupou e chupou furiosamente o meu pênis



19.2.2022

(Ilustração: Apollonia Sainclair - la déflagration)



19 de fev. de 2024

cena de uma noite tórrida

 



 

o gato sobre a cama

com ela se confunde

num sono profundo

 

na tevê [lá de Praga – músicos vienenses]

Brahms – concerto número dois para piano e orquestra

 

[eu só]

 

para dentro de mim transpiro as gotas da saudade de uma vida que não vivi

e sobrevivo ao calor da meia-noite na cidade-túmulo-de-sonhos

[aqueles sonhos que ficaram perdidos em alguns olhos

cuja luz jaz num tempo de estrelas vazias]

 

quero o sono do gato

[apenas isso]

 

 

16.12.2023

(Ilustração: Pierre Auguste Renoir - le chat dormant, 1862)

16 de fev. de 2024

carpideiras

 




depois de tanto tempo a boca tapada

tenho mil coisas a dizer

e minha língua está um rio amazonas

cobra grande esfomeada

contemplando a boiada

escolhendo a presa



mas ao mesmo tempo penso

e não dispenso a vontade de gritar

que deve a língua continuar presa

porque muito mais do que falar

há milhões de coisas que preciso ouvir



há milhões de vozes pelo tempo a reclamar

e isso meus ouvidos não podem ignorar

- e mergulho de novo no mutismo

de estrelas das galáxias que não conheço

para tentar ouvir o que diz o vento do deserto

e pagar com meu desatino o preço

de tanto tempo tapada a boca – o perto

de hoje ficou mais longe e mais distante

quando a morte fincou suas bandeiras

no campo e na cidade e diante

de cada cova somos todos perenes carpideiras




26.9.2021

(Ilustração: Adrienne Marie Louise Grandpierre-Deverzy:
Gian Monaldeschi implore la grâce de la Reine Christine de Suède)



13 de fev. de 2024

capitalismo

 



vou moer os teus ossos e eles servirão

para engrossar o caldo do teu feijão

comerás assim a ti mesmo

e vagarás sob as chibatas de máquina a máquina – a esmo

como escravo para sempre acorrentado



dos teus uivos e do teu sangue serás alimentado

e herdarão de ti um único olho os teus filhos

não poderás pensar em sair dos trilhos

que teu pensamento estará aguilhoado

de orações e de um céu que será dado

somente aos que se curvam sem gemer

a ti [ó meu príncipe escravizado] só temos a oferecer

o caldo de feijão sujo de teu sangue

e morrerás sem ter vivido – completamente exangue





24.10.2021

(Ilustração: máquina de movimento perpétuo 
em ambiente industrial - criação de IA; foto da internet)



10 de fev. de 2024

cantiga de roda

 




eu estou chorando

chorando muito – de tristeza – nem as palavras de consolo de meu tio

me consolavam



estava profundamente triste

o meu amor – ela [a menina de olhos negros] – está indo embora

e eu estava triste agora

mais de sessenta anos passados



tão profundamente triste – nem as palavras de consolo de meu tio

me consolam

o tempo fechara o círculo agora

e eu no centro desse círculo – e eu choro

(e ela – será que ela chora?)



o anel que não te dou

o anel que não te dei

era vidro e se quebrou

definitivamente – eu soube e eu sei



[este poema podia ser a letra de um bolero ou de uma valsa

- a valsa que contigo não dancei

- o bolero que para ti não cantei

mas é só uma triste cantiga de roda]





4.1.2022

(Ilustração: Francisco de Goya: La gallina ciega - 1789)

7 de fev. de 2024

cansaço

 




não sei se é cansaço ou canseira

do longo tempo que já vivi

talvez uma saudade bem mineira

e na garganta o grito do bem-te-vi



sei apenas que de vez em quando

sopro o vento que vem do sul

chuto a areia que piso chorando

e vou tingindo o céu de mais azul



não sei se é canseira ou cansaço

o que sinto em relação à vida

sei apenas que aguardo mais um abraço

de pessoa que considero mais querida



nesses versos tão singelos como dizia

a velha canção popular

vou tentando pôr um pouco de poesia

nesse meu cansado versejar



e mesmo não sabendo ainda

se sinto cansaço ou canseira

canto essa saudade infinda

de minha juvenice mineira




9.9.2022

(Ilustração: José Rosário Castro: Manhã de paz)




4 de fev. de 2024

Canção para Clementina

 






O povo preto me falou

De uma pele salgada de mar

Quando um dia desencantou

A voz de Clementina a cantar



Oooô Clementina, Clementina de Jesus

No teu canto os atabaques de danças de além-mar

Oooô Clementina, Clementina de Jesus

No teu canto de Olorum brilha a força e a luz

Oooô Clementina, Clementina de Jesus

Tua voz ecoa através dos mares a manhã

Os caminhos da floresta, da floresta de Iansã



O povo preto me contou

De uma pele salgada de mar

Quando um dia desfolhou

A voz de Clementina a cantar



Oooô Clementina, Clementina de Jesus

Sua voz afoxés e agogôs desafiou

Acima dos tambores ressoou

Foi o povo preto que nos contou

Foi o povo preto que te abençoou

Clementina, Clementina, o mar te salgou

De Áfricas tua voz aqui nos encantou

Oooô Clementina, Clementina de Jesus

No teu canto de Olorum traz a luz

O povo preto te louvou

Tua pele salgada de mar

Quando um dia desfolhou

Tua voz a todos encantar




13.3.2022

(Ilustração: Clementina de Jesus, foto da internet, sem indicação de autoria)

 

 

 

 

 

 

 

 

1 de fev. de 2024

canção do espanto

 



 como uma pluma ao vento de agosto vaga meu delírio sobre a cidade

adormecidos os cidadãos em seus leitos

a peste em minhas asas

o grito de angústia no bico adunco

abutre noturno em busca da carne podre

sustento meu voo na força do vento que venta do norte

sei o que sou e o que sou é a dor e também a morte

passeio pelo catre imundo do favelado

passeio pelo dossel revestido de ouro falso do velho capitalista

bico o seio tatuado da madame

corto a carne da bicha apaixonada

estraçalho o ventre da puta solitária

como os olhos das criancinhas em seus berçários

canto a canção do espanto

entrevista em bocas escancaradas

e nada pode deter meu labor enquanto canto

pelos quatro cantos a vitória dos genocidas

enterro bem fundo no leito do rio da morte

as cantigas que não se afinam com o meu doce canto de morte

prendo no fundo do pântano mais sujo todos os sorrisos

que acaso ainda se escondam atrás de máscaras inúteis

 

espanto enfim como uma pluma ao vento de agosto

para a concretude de minha sanha e de meu delírio

o sonho e o futuro de cada cidadão que ouse ter o gosto

de olhar em meus olhos e desdenhar o seu martírio


 



5.6.2021




(Ilustração: Giovanni Stradano - 1587: Racconto di Ugolino - Inferno, Canto 33)