15 de dez. de 2024

relembranças

 

 

na televisão a orquestra toca Jan Sibelius

eu penso em couve refogada

no almoço de amanhã

[o fogão a lenha de minha mãe]

são sinapses da minha mente

a ouvir o que eu cheiro

a sonhar o que imagino

arrepia-me a pele

a fritura do alho na frigideira a couve

e violinos – o naipe todo – violinos

a reverberar em sons

que catapultam meu pensamento

para planuras de montanhas

– o menino descalço que sobe a rua

o mendigo que reclama do banho

que a polícia lhe deu

das roupas limpas com que a polícia o vestiu

[quer de volta as roupas velhas

quer de volta o velho fedor]

por que nos apegamos? por quê?

o grupo escolar – a tabuada que não entra

na cabeça do menino que sonha – que sonha

pés de gabiroba no meio do mato

a trilha da falsa cobra coral

o colégio onde os padres confabulam

uma revolução que virou golpe

a marcha fúnebre dos pés

dos soldadinhos de chumbo

do oitavo batalhão de infantaria

batendo forte nos paralelepípedos

no desfile de setedesetembro

a banda de pretos no coreto da praça

um dobrado pela democracia morta

só a tipuana está em festa

aos olhos do menino

uma dupla de mendigos cantadores

visita a cidade

viola e violino em punho

[ah! se fossem jan e sibelius!]

– essa mulher há muito tempo me provoca

dá nela – dá nela –

eles desafinam na música

o menino desafina na vida

a procissão do cristo morto – matracas [*]

que ressoam pela noite que também morreu

pelas ruas tortas à luz da lua cheia

a árvore da forca no alto do morro

onde há também uma cruz fincada

[dizem que nos anos trinta do século dezenove

ali enforcaram um negro] – por  quê?

por que enforcaram o negro?

por quê?

eram tempos de chibata

que se repetiram

que se repetem de tempos em tempos?

responde o sino da matriz em dobre de domingo

– missa – missa – missa pelas almas

não merecem flores os mortos?

o longo muro do colégio dos ricos é de pedra

[há muita pedra nas construções dos ricos

há muita pedra no coração dos ricos]

o muro de pedra do colégio dos ricos

conduz o menino pela longa descida

a longa descida para a praça da estação

onde a maria-fumaça apita

apita

e não sai do lugar

a cidade também não sai do lugar

os habitantes da cidade também não saem

para lugar algum

as almas penadas do velho cemitério

pedem orações e benzeduras

não há flores para los muertos

no hay flores para os mortos

e o sino da matriz dobra seu lamento

– missa – missa – missa pelas almas

a missa cantada de todo domingo

talvez seja para o menino a melhor solução

que o pulo na água fria do poço

– aprender a nadar – aprender a nadar

ou afogar nos mares da vida

– porque nos mares da vida

eu me afoguei!

nos mares da vida

afogamo-nos todos

sempre nos afogamos

com pedras amarradas ao corpo

com os versos de desespero

amarrados ao corpo

por que foi assim sempre

e foi assim que se afogou a poeta

[talvez a música

talvez a música de Jan Sibelius

nos salve... talvez...]


[*] Correção: originalmente, o poeta escrevera (e está no texto lido) "catracas": um ato falho, pelo qual pede desculpas.

 

 

9.12.2024

(Lavras: Avenida Pedro Salles - à direita o muro de pedra do colégio dos ricos)


Você pode ouvir esse poema na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, nestes endereços:

- no You Tube:

https://www.youtube.com/watch?v=6cwXa67FwQo

- no podcast do Spotfy:

https://open.spotify.com/episode/7L2U0TjAM76cPkSj3lLHoH?si=BiGAoeOxT8WFZI2mIWBA2g




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