na televisão a orquestra
toca Jan Sibelius
eu penso em couve refogada
no almoço de amanhã
[o fogão a lenha de minha mãe]
são sinapses da minha mente
a ouvir o que eu cheiro
a sonhar o que imagino
arrepia-me a pele
a fritura do alho na frigideira a couve
e violinos – o naipe todo – violinos
a reverberar em sons
que catapultam meu pensamento
para planuras de montanhas
– o menino descalço que sobe a rua
o mendigo que reclama do banho
que a polícia lhe deu
das roupas limpas com que a polícia o vestiu
[quer de volta as roupas velhas
quer de volta o velho fedor]
por que nos apegamos? por quê?
o grupo escolar – a tabuada que não entra
na cabeça do menino que sonha – que sonha
pés de gabiroba no meio do mato
a trilha da falsa cobra coral
o colégio onde os padres confabulam
uma revolução que virou golpe
a marcha fúnebre dos pés
dos soldadinhos de chumbo
do oitavo batalhão de infantaria
batendo forte nos paralelepípedos
no desfile de setedesetembro
a banda de pretos no coreto da praça
um dobrado pela democracia morta
só a tipuana está em festa
aos olhos do menino
uma dupla de mendigos cantadores
visita a cidade
viola e violino em punho
[ah! se fossem jan e sibelius!]
– essa mulher há muito tempo me provoca
dá nela – dá nela –
eles desafinam na música
o menino desafina na vida
a procissão do cristo morto – matracas [*]
que ressoam pela noite que também morreu
pelas ruas tortas à luz da lua cheia
a árvore da forca no alto do morro
onde há também uma cruz fincada
[dizem que nos anos trinta do século dezenove
ali enforcaram um negro] – por quê?
por que enforcaram o negro?
por quê?
eram tempos de chibata
que se repetiram
que se repetem de tempos em tempos?
responde o sino da matriz em dobre de domingo
– missa – missa – missa pelas almas
não merecem flores os mortos?
o longo muro do colégio dos ricos é de pedra
[há muita pedra nas construções dos ricos
há muita pedra no coração dos ricos]
o muro de pedra do colégio dos ricos
conduz o menino pela longa descida
a longa descida para a praça da estação
onde a maria-fumaça apita
apita
e não sai do lugar
a cidade também não sai do lugar
os habitantes da cidade também não saem
para lugar algum
as almas penadas do velho cemitério
pedem orações e benzeduras
não há flores para los muertos
no hay flores para os mortos
e o sino da matriz dobra seu lamento
– missa – missa – missa pelas almas
a missa cantada de todo domingo
talvez seja para o menino a melhor solução
que o pulo na água fria do poço
– aprender a nadar – aprender a nadar
ou afogar nos mares da vida
– porque nos mares da vida
eu me afoguei!
nos mares da vida
afogamo-nos todos
sempre nos afogamos
com pedras amarradas ao corpo
com os versos de desespero
amarrados ao corpo
por que foi assim sempre
e foi assim que se afogou a poeta
[talvez a música
talvez a música de Jan Sibelius
nos salve... talvez...]
[*] Correção: originalmente, o poeta escrevera (e está no texto lido) "catracas": um ato falho, pelo qual pede desculpas.
9.12.2024
(Lavras: Avenida Pedro Salles - à direita o muro de pedra do colégio dos ricos)
Você pode ouvir esse poema na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, nestes endereços:
- no You Tube:
https://www.youtube.com/watch?v=6cwXa67FwQo
- no podcast do Spotfy:
https://open.spotify.com/episode/7L2U0TjAM76cPkSj3lLHoH?si=BiGAoeOxT8WFZI2mIWBA2g
-
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