31 de out. de 2020

manifesto preto





branco é patrão

preto é empregado

ponto

não pense aí meu caro cara preta

que um dia o branco vá ter dó de você

se você é preto

se você é pobre

se você é periferia

o branco caga na água que você bebe

e ainda acha que você

vive bem num barraco

sem luz

sem água

sem esgoto

sem gás

porque você sobrevive e ele diz

que em preto pobre da periferia

não pega nada

que você é forte

querendo dizer é claro que o branco

iria morrer se vivesse

como você vive porque o branco é fraco

e precisa de sua fraqueza e de sua pobreza

para viver

e você – meu caro cara preta – se acha forte

até se orgulha de seu couro duro

enquanto lá no cemitério

tem dez vezes mais cruzes pretas de crianças mortas

do que cruzes brancas de anjinhos brancos

e as prisões – meu caro cara preta –

estão mais pretas que a sua cara

de gente preta que não tem quem as defenda

você mesmo – meu caro cara preta –

você morre de trabalhar

e trabalha até morrer

o juiz que julga sua causa

já condenou você à morte

antes mesmo de você dar um espirro

cagam todos para você – meu caro cara preta –

motorista que leva pra e pra cá

o ceo de gravata italiana

a mandar para a rua pelo seu celular dourado

a moça preta de sua fábrica

que faltou para dar à luz mais um pretinho

que não vai ter motorista que o leve

para a consulta no sus do bairro

e só vai viajar uma única vez como passageiro

no carro preto da funerária municipal

é dura a vida – meu caro cara preta –

mas é assim que funciona o mundo do seu passageiro

no banco de trás

até seu treze de maio foi uma fraude – meu camarada

disseram que você estava livre

mas você foi varrido da senzala como barata

para debaixo do tapete da miséria

você devia ter desaparecido dez anos depois daquele 88

ou você devia ter desaparecido quando disseram

que o país precisava embranquecer e muitos de vocês casaram

casaram com brancas e brancos para criar uma nova cor

mas você comeu a raiz da terra e sobreviveu

você sobreviveu – meu caro cara preta – e isso é uma injúria

e eles então continuam varrendo você como lixo de suas indústrias

para debaixo dos tapetes de suas mansões de 30 cômodos

onde você – meu caro cara preta – não vai além dos jardins

onde você só pisa no tapete se estiver de summer e gravata borboleta

e eu digo mais – meu caro cara preta – eles não te odeiam

não

não te odeiam – apenas te desprezam

até dizem que têm amigos pretos

aqueles pretos de alma branca

sabe?

eles adoram pretos de alma branca

para exibir nos salões e dizerem

vejam como eu não sou racista

para tirarem fotografia com eles junto com a família

e publicarem nos jornais

vejam como eu sou bonzinho até deixo que meus filhos

convivam com eles

não sou racista – eles dizem – e ficam fulos da vida

quando encontram a filha da empregada no aeroporto

embarcando pra miami – virou rodoviária – eles dizem

e torcem seus narizes retilíneos

comprados no bisturi

quando colocam lá no supremo um preto

então eles engolem em seco porque têm que chamar o cara

para recepções regadas a champanha francês

em suas mansões

e só por sacanagem eles botam um summer em você

para servir canapé com champanha para o ministro preto

as dentaduras deles – meu caro cara preta – dentaduras de ouro

com coroas de diamantes das velhas minas gerais

batem os dentes de cima contra os de baixo

para triturar você

na gargalhada de suas vozes profundas de abismos infernais

e você – meu caro cara preta –

está ainda esperando o quê?



13.5.2020

(Ilustração: Jean-Baptiste Debret)


(Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, no podcast indicado acima à direita)

29 de out. de 2020

madre

 





teus seios fartos

jorram leite branco

depois de tantos partos

negas tua cor

cantando árias de óperas bufas

pelos palcos podres

de teatros decadentes

és apenas a madre

de todas as bocas brancas

desse asilo infame



25.5.2020

(Ilustração: Lucílio de Albuquerque - Mãe Preta)

27 de out. de 2020

luz do amanhecer

 




quanta lua em loucas noites

quanta noite em luas loucas

quantas dores nos açoites

quantos beijos em rubras bocas



e o poema se esborracha

se esboroa em águas líricas

encanta-se em cantos de corujas

entranha-se em luas loucas

borrifa-se em flores e pérfidos

perfumes de foscos lusco-fuscos

de tardes vazias de verão



e a lua que vem do vasto horizonte

traz o beijo do estranho louco

que morre hoje à luz do amanhecer



5.7.2020

(Ilustração: Lyonel Feininger - The white man)

25 de out. de 2020

lembrando omar kayyam

 




Bebe, e esquece que o punho da dor te prostrará. 

Os Rubaiyat



esvaziemos nossas taças

deixemos vermelhos nossos lábios

afogueados os nossos ventres

libertos como o vinho em nossas veias

sejamos rios de lava e desejo



beberás de minha boca o meu beijo

beijarei de teus montes e vales o teu vinho

e unidos pela embriaguez de orgasmos

não nos importarão as pedras do caminho 




5.5.2020 

(Ilustração: foto da internet, sem indicação de autoria)







23 de out. de 2020

joelhada

 



a língua chupava freneticamente o clitóris

quando o que ele queria mesmo era

ter na boca um pau bem gostoso

um bilau bem formoso

um caralho apetitoso

por isso imaginava que aquele pino pequenino

fosse o pênis de um duende ou de um ser masculino

que tivesse uma pequena pica bem durinha

que lhe comesse depois a bundinha

e ele chupava freneticamente chupava

e com mais nada se importava

até que a dona lá em cima começou a se incomodar

porque sua boca não saía do lugar

e ela queria um serviço mais completo

talvez a língua até mesmo no reto

que ela também gozasse e não fosse pouco

mas ele nem percebia e como um louco

chupava e sonhava que chupava

que chupava uma pistolinha engraçadinha

uma bimba delicada

e por isso ele não entendeu nada

quando a dona lá de cima se irritou

ficou mesmo muito chateada

as bochechas já bem vermelhas

a dona lá de cima de repente se movimentou

e com força muita força as coxas ela fechou

e ele levou em cada uma das orelhas

como uma paulada bem dada

uma forte e ardente joelhada 





8.5.2020 

(Ilustração: Suzanne Ballivet para o livro Initiation Amoureuse) 


 

21 de out. de 2020

irreverência total

 





não quero mais rimar a lua

com tua pele nua

nem arrumar qualquer treta

com algum moralista

ao pensar em rimar boceta

com uma flor ou mulher

chamada violeta



e mesmo que não resista

em olhar para uma bela bunda

e sentir uma dor profunda

ah poeta – direi eu – vá se foder

e pare de se meter e meter

onde há sempre um cheiro de urubu

se quer mesmo soltar o verso

que comece olhando o próprio cu

e pare de rimar e escrever

pensando uma coisa e dizendo o inverso



solte logo a sua verve

deixe voar ao vento o seu gozo

se uma rima não lhe serve

não ponha a mão no fogo

escreva sempre o que lhe vier à telha

sem rima – sem métrica – sem sentido

e se alguém achar que sua poesia não espelha

o que o mundo de hoje anda querendo e pedindo

que vá todo mundo ser fodido

por toda essa porra que veio e ainda está vindo

e se sobrar algum gaiato metido a esperto

a reclamar dessa tua versalhada

diga como aquele idiota do roberto

- que tudo o mais vá para o inferno

com essa porra toda de rima

de decassílabos sáficos e heroicos

que tudo sim vá para o quinto dos infernos

ou para a puta que os tenha a todos parido 





13.7.2020 

(Ilustração: Aleah Chapin - EE.UU. – 1986) 

19 de out. de 2020

inverno de 2020

 




um inverno de noites frias

e dias quentes

há um cheiro de silêncio no ar

não é o silêncio de noites aladas

nem há pássaros na noite a bailar

embora a cidade fervilhe de gente



buracos negros são cavados em algum lugar

silenciosamente

e eles – os buracos negros – esperam pacientemente

sua espera é breve e logo recebem

seus conteúdos mudos em caixas fechadas

hermeticamente

não há ninguém para jogar flores

não há ninguém para expressar suas dores

só os homens duros de máscaras negras

no cansaço de suas pás escornados

com o olhar perdido no horizonte de seus lares

sonhando com copos sujos nas mesas dos bares

todos eles cansados – muito cansados



o choro está contido entre as paredes das casas

o choro está contido entre as paredes dos apartamentos

o choro está contido principalmente

entre as tábuas frouxas dos barracos abraçados

e só os barracos têm licença para se abraçarem



o espanto fugiu dos olhos para os passos pesados

dos que se arrastam pelas nuvens da incerteza

para os corpos que se juntam nos ônibus lotados

e só se separam no silêncio dos buracos negros



há um cheiro de silêncio neste inverno

e esse silêncio rotundo parece tão eterno

que só se ouve dentro da noite

o monstro impassível a ranger os dentes

cevando a cova dos mais impacientes 





17.7.2020 

(Ilustração: Adolph Menzel - The Studio Wall - 1872)











17 de out. de 2020

impossibilidades

 





estradas da frança por onde nunca passei

estrelas da ursa que não contemplei

milhares de livros que não li nem lerei

milhares de poemas que não escrevi nem escreverei

assim a vida – cheia de impossibilidades

desejos que viram fumaça

ou como os livros – comidos pela traça

que geram um futuro de saudades

ou saudades de um futuro

improvável – impossível – irrealizável

que bate num muro

e aos poucos na inércia se desfaz

sonhos sonhados como sonhos e nada mais




29.8.2020 

(Ilustração: escultura de Liu Xue)

15 de out. de 2020

imobilidade

 




deteriora-se a vida na imobilidade

o passo pregado no ar

não marca no asfalto a marca do tênis roto

o grito do cadeirante

não atravessa a parede em gozo contratado

o pássaro noturno

arrebenta as asas no vidro do prédio estúpido

a gota de vinho

pinga na língua seca e estrangula o olho

a calcinha da stripper

entremostra os pelos e não cai mais a seus pés

a porra escorre

depois que o membro murcho destapa seu cu

no beco sem saída os vermes pululam

enquanto a vida se deteriora na imobilidade 




9.6.2020

(Ilustração: escultura de Fernando Botero)

13 de out. de 2020

imaginação

 




há uma passagem estreita e escura

que me leva de dentro de mim

para o mundo enevoado da imaginação



quando a ultrapasso – e isso ocorre

muitas vezes ao dia – sei apenas

que caminho

não sei para onde vou

não há esmorecimento nesse caminhar

nem anseios por logo chegar

não há à frente nada que indique um porto ou destino

apenas o desconhecido a me espreitar e a me esperar

e ele está lá – o desconhecido –

sempre solidário e sempre atento aos meus passos

sempre um sorriso em seu rosto vazio

conhecemo-nos há tanto tempo

que não sei mais que cor ainda habita em seus olhos

entendemo-nos sem nos encarar

caminhamos juntos como caminharia um casal

por entre as flores de um roseiral

sou ele e ele a mim me pertence

e se não temos mais intimidade

do que estar um ao lado do outro

é porque somos o ser e a sombra ao sol

do mundo que criamos para nós

e um não precisa do outro ouvir a voz

para que os passos nos levem aos ignotos portos

onde desfazemos todos os nós

de nossos ancorados versos tortos

e damos asas aos nossos desejos que pareciam mortos 




14.5.2020

(Ilustração: Wols - Alfred Otto Wolfang Schulze - 1937)

11 de out. de 2020

hipocrisia

 



digo te amo

e isso é mentira

meu coração está morto

e nada me tira

desse pensamento torto

que de mim se apossou

e me aprisionou

dento de uma gaiola

como um pássaro triste

que não mais resiste

à prisão que o prende e isola

de todos os demais cantos

digo te amo repito

e desligo de mim os encantos

de haver uma vez dito

tal mentira

que me tira do sério

porque está no cemitério

dos poetas de outrora

o meu coração torto e morto

que morreu à luz da aurora

de um tempo de poesia

de um tempo sem hipocrisia



9.5.2020

(Ilustração: Auguste Renoir)

9 de out. de 2020

guerra

 




há bandidos e mocinhos

há mocinhos e bandidos

mas depois que soa o primeiro tiro

há somente carniceiros e bandidos 





18.4.2020

(Ilustração: Adam-Frans van der Meulen - Battle - 1657)

7 de out. de 2020

grota

 

entreabrem-se os lábios

para entreveros de umidades

líquens à língua languescem

grota gruta greta grelo

abre a língua a trilha de pregas

entra explora recolhe-se e volta

percorre o rastro sobe desce entranha

arrepia-se o pelo às peles

procura fundo a gruta que se abre

ao sol ao sal ao saibro ao gozo





5.7.2020

 (Ilustração: André Lambert  - les seuils empourprés)

5 de out. de 2020

gotas de pedra

 



no meio da festa do dia

um pingo de noite cai dos meus olhos

sobre a lousa que refletia

o escambo da vida pela morte



meus estranhos desejos e anseios

calavam-se ao pranto da cotovia

não há nada que talvez mais importe

que o pensamento triste que me guia

para o centro da noite no meio do dia



quando a esperança que nascia

se transformava em gotas de pedra

a destruir no meu peito a vida

que não mais sonho – por perdida –

e em meu peito não mais medra



17.9.2020

(Ilustração: escultura de Anish Kapoor)


2 de out. de 2020

fora do tempo

 





fora do tempo e fora do espaço

flutua o pensamento sem peias

procura o inefável dentro de si

sente a passagem da matéria escura

de mundos que também flutuam

em lugares que não existem

- buracos negros que em mim persistem –

senão como pensamento e nada

no entremeio de um espaço em que cabem

elétrons de estrelas perdidos no abismo

fora do tempo e fora do espaço 




8.8.2020

(Ilustração: Yves Tanguy - 1900 – 1955; French surrealist painter)