branco é patrão
preto é empregado
ponto
não pense aí meu caro cara preta
que um dia o branco vá ter dó de você
se você é preto
se você é pobre
se você é periferia
o branco caga na água que você bebe
e ainda acha que você
vive bem num barraco
sem luz
sem água
sem esgoto
sem gás
porque você sobrevive e ele diz
que em preto pobre da periferia
não pega nada
que você é forte
querendo dizer é claro que o branco
iria morrer se vivesse
como você vive porque o branco é fraco
e precisa de sua fraqueza e de sua pobreza
para viver
e você – meu caro cara preta – se acha forte
até se orgulha de seu couro duro
enquanto lá no cemitério
tem dez vezes mais cruzes pretas de crianças mortas
do que cruzes brancas de anjinhos brancos
e as prisões – meu caro cara preta –
estão mais pretas que a sua cara
de gente preta que não tem quem as defenda
você mesmo – meu caro cara preta –
você morre de trabalhar
e trabalha até morrer
o juiz que julga sua causa
já condenou você à morte
antes mesmo de você dar um espirro
cagam todos para você – meu caro cara preta –
motorista que leva pra e pra cá
o ceo de gravata italiana
a mandar para a rua pelo seu celular dourado
a moça preta de sua fábrica
que faltou para dar à luz mais um pretinho
que não vai ter motorista que o leve
para a consulta no sus do bairro
e só vai viajar uma única vez como passageiro
no carro preto da funerária municipal
é dura a vida – meu caro cara preta –
mas é assim que funciona o mundo do seu passageiro
no banco de trás
até seu treze de maio foi uma fraude – meu camarada
disseram que você estava livre
mas você foi varrido da senzala como barata
para debaixo do tapete da miséria
você devia ter desaparecido dez anos depois daquele 88
ou você devia ter desaparecido quando disseram
que o país precisava embranquecer e muitos de vocês casaram
casaram com brancas e brancos para criar uma nova cor
mas você comeu a raiz da terra e sobreviveu
você sobreviveu – meu caro cara preta – e isso é uma injúria
e eles então continuam varrendo você como lixo de suas indústrias
para debaixo dos tapetes de suas mansões de 30 cômodos
onde você – meu caro cara preta – não vai além dos jardins
onde você só pisa no tapete se estiver de summer e gravata borboleta
e eu digo mais – meu caro cara preta – eles não te odeiam
não
não te odeiam – apenas te desprezam
até dizem que têm amigos pretos
aqueles pretos de alma branca
sabe?
eles adoram pretos de alma branca
para exibir nos salões e dizerem
vejam como eu não sou racista
para tirarem fotografia com eles junto com a família
e publicarem nos jornais
vejam como eu sou bonzinho até deixo que meus filhos
convivam com eles
não sou racista – eles dizem – e ficam fulos da vida
quando encontram a filha da empregada no aeroporto
embarcando pra miami – virou rodoviária – eles dizem
e torcem seus narizes retilíneos
comprados no bisturi
quando colocam lá no supremo um preto
então eles engolem em seco porque têm que chamar o cara
para recepções regadas a champanha francês
em suas mansões
e só por sacanagem eles botam um summer em você
para servir canapé com champanha para o ministro preto
as dentaduras deles – meu caro cara preta – dentaduras de ouro
com coroas de diamantes das velhas minas gerais
batem os dentes de cima contra os de baixo
para triturar você
na gargalhada de suas vozes profundas de abismos infernais
e você – meu caro cara preta –
está ainda esperando o quê?
13.5.2020
(Ilustração: Jean-Baptiste Debret)
(Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, no podcast indicado acima à direita)
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