28 de set. de 2022

perdigotos

 




ontem vieram a mim e falaram-me de ti

disseram-me que és puta

que sempre foste puta e sempre serás puta



e eu pensei

que tenho eu a ver com o fato de seres puta

se isso é o que faz de ti para mim o que tu és



disseram-me mais

que és empacada e tola de tanta teimosia

sempre cheia de si e falastrona como quê



e eu pensei

que sejas tu a mula que dizem

e fales o quanto queiras sobre quanto queiras

se nada sei de empáfias e muito menos de mulas



sim

falaram-me de ti

falaram-me de ti como falam de todas

falaram-me de ti para atingir a mim



disseram cobras e lagartos de ti

que és burra e fútil

que trocas os alhos pelos bugalhos

não dizes coisa com coisa

como se fosse eu a inteligência que pensam que sou



e eu pensei mais uma vez

que de futilidades e de estupidezes

tenho da vida um balde repleto



que se digo o que penso

o que penso é aquilo que nunca se diz



e pensei mais ainda

dentro do pouco que me resta no pensar

que essa gente que veio a mim

a falar-me de ti

essa gente não sabe que falando tanto assim de ti

para mim que te amo apesar de tudo

estão na verdade falando muito mais de mim





16.7.2022

(Ilustração: René Magritte)

25 de set. de 2022

perde-se um amor

 


perde-se um amor por uma palavra não murmurada

perde-se um amor por uma palavra mal falada

perde-se um amor por um gesto impensado

perde-se um amor por um gesto não esboçado



perde-se um amor por uma estranha compulsão

de arriscar uma busca por uma nova emoção



perde-se um amor porque somos humanos

e não sabemos medir todos os danos

que a vida nos apresenta como armadilhas

que prendem nossos pés em todas as trilhas



15.2.2022

(Ilustração: Marianne von Werefkin, 1860–1938)

22 de set. de 2022

pequeno manifesto ateu

 








não há deus

deus não existe

deus não criou o universo

o universo não foi criado por um deus

não somos nós – os seres viventes – criaturas de um deus

o mito de deus é uma invenção humana

os humanos inventaram o mito de deus

os humanos criaram deus e deuses

repito que não há deus

não há céu ou inferno

não há deuses

nem demônios

porque

simplesmente

para nós

– humanos –

deus

é

h20






4.10.2021

(Ilustração: Carlos Barahona Possollo)

19 de set. de 2022

pauis




nos pauis dos meus pensamentos

onde nascem lírios brancos e centopeias negras

mergulha o meu tempo de ainda existir

e desse tempo brotam verdades entrançadas

entre raízes podres e peixes mortos

para ameaçar os sonhos de desesperados corações

perdidos nos descaminhos de deuses enterrados

nas profundezas da lama mais funda



ouvem-se nos meus ouvidos todos os gritos fúnebres

da desesperança e das agruras dos caminheiros e mergulhadores

perdidos e enredados nos meandros

das patifarias dos padres e pastores e profetas perversos

que têm mais mentiras em suas línguas viperinas

do que têm pernas as visguentas centopeias negras




14.8.2021

(Ilustração: Clovis Trouille, Dialogue au Carmel, 1944)

16 de set. de 2022

pátria enlutada

 





há um espanto engasgado na garganta dos mortos

enquanto as pás dos coveiros ressoam malícias inconfessáveis



no alto dos prédios a lua cheia esplende nos olhos do homicida

para o assassino talvez haja esperança a brotar do fundo das covas

quando os urubus interrompem seu voo suicida

para lamber com línguas ásperas os ossos esbranquiçados



as hienas gargalham de fome à luz da lua

as folhas das árvores cobrem de cobre o chão ensanguentado

e os santos do pau oco assombram o mundo mostrando as vísceras

de onde escorrem ouro em diarreias invertidas



a boca dos políticos cospe a merda dos defuntos

no bailado das cadeiras de ministros encapuzados

a pedir mais frutos pendurados nas pontas dos fuzis



o baile das ilhas fiscais tem valsas para todas as tribos

enquanto as torres do poder apodrecem por dentro



o vírus passeia

pelas praias e areias das costas quentes

do longo litoral do país que ensombreceu seu futuro

o vírus passeia

pela boca sem dentes de favelados executados pela polícia

o vírus passeia

pela boca emoldurada de risadas etéreas do filho do banqueiro



o anúncio de capim fresco para o gado

transformou a noite de lua cheia

na luz funérea de um circo evangélico



a pátria jaz sob a tumba de milhares de cadáveres

gemendo o passado verde e sonhando um futuro azul

mas a foice bateu o martelo

- para que haja uma semente no fundo da terra

que se enforquem todos os filhos nas tripas do pai




7.5.2021


(Ilustração: Coppo Di Marcovaldo - The Hell)

12 de set. de 2022

O PULO DO TRAPÉZIO

 



O primeiro toque, ela lembrou, estranho, muito estranho, como a primeira vez no circo, o trapezista, o susto, como a primeira vez que a gente come caju, sabe, meio amarrento, assim, mas no final era bom, muito bom, ah! se pudesse voltar agora, quem sabe não teria mais aquele gosto estranho, não teria mais o frio na barriga, o pulo do trapézio; mas depois, muito depois, voltou de novo a imagem, só ficou mesmo o gosto amarrado na boca, o gosto de fuga, o balanço vazio: sonho de menina, valeu, sim, valeu, concluiu, apesar do remorso, que boba! o segundo toque, esforçou-se para lembrar, não havia mais o mistério, só o abandono, a distensão dos músculos, a calma depois, e depois o monótono passar do tempo, quanto? muito, muito tempo, ficou naquilo, não deu em nada, não frutificou, o ninho inútil, a vida inútil, apenas um pássaro sem asas, olha-se no espelho, pássaro sem asas, brinca com o pensamento, caju amarelo, marcas, o canto da boca sem a atração do encanto irônico; olhos, olhos de água, já embaciados, lago em tarde de chuva, rio que corre sem querer a qualquer memória; a testa ampla atrás da cortina agora mais fina, mais branca, uma franja na fímbria do horizonte da tarde, gostou da metáfora, estou ficando mole, ela riu, estranhando o próprio pensamento, tolo pensamento, ela riu de novo, mas não gostou do que viu, a boca sem frescor, o dente sem sol, o ocaso, pensou de novo, mas agora não riu, jovem sem graça, mulher sem jaça, agora no ocaso, o que é isso? ralhou consigo mesma, deu para se lamentar? sem jaça, uma ova, caminhara, enfrentara o desencanto, se não vencera, pelo menos lutara, ainda luta, bobagem, lutar para quê? no espelho, o trapézio vazio, para lá e para cá, ajeitou o cabelo, séria, queria, sim, queria ainda um toque, o último, vencidos todos os pejos, trancado o coração, só a pororoca e o arrepio e o marulhar depois, nada de remorsos, ela podia ver o olho dele no seu, sem remorsos, sem pejos, também sem beijos na boca? a frase soou fria, sem beijos na boca, só o toque, de recolher, veio a ironia, mas ela de novo não gostou, ficou pensativa, talvez fosse melhor parar por aqui, não via rumo na vida, no riso sem busca, o perfume da vida, atiçou o pensamento, o perfume da vida, um toque apenas e as nuvens, ela ainda tentou sonhar, olhou para o espelho, abriu um pouco a camisola e achou ainda alguns encantos, alguns? ela ralhou para si mesma, passeou os dedos pelo decote, desceu um pouco a mão e tocou o mamilo, arrepiou, sabia que chegara o momento, sempre chega, o primeiro toque, pensamento tumultuado, trapézio ziguezagueando em sua mente, o primeiro, ela pensou, podia ter sido o único e teria valido a vida, sim, o perfume da vida, olhou o copo quase vazio no criado-mudo, no fundo a gosma azul à luz do abajur, não havia razão para continuar, seguira o figurino, sonhara, agora acabou, o salto do trapézio, olhou para baixo, o ventre, as coxas, as pernas, os pés, fugir, talvez, buscou os chinelos, os pés frios, o toque, sentiu, arrepiou, fechou os olhos e lembrou, pensou ainda que podia, estava frio, outono lá fora, inverno aqui dentro, pensamento bobo, o pulo, o pêlo, o toque, o azul e o branco, o toque, o pé que busca o toque, o pêlo, tão quente, tão bom, lembrou, um dia ele chegara, tão manso, bola de pêlo, olho azul de susto, o pulo, três dias escondido atrás do sofá, o leite azedando, depois o apego, aconchego, dependência, mesmo, companheiro de solidão, agora ali, tão macio e tão inútil sob os pés, afinal, só o que restara, o pulo do trapézio e o último toque...




(Ilustração: Balthus - Therèse dreaming)


(Conto escrito para o Grupo de Contistas de São Paulo, 
coordenado por Cármen Rocha, 
em maio de 2005, para o tema "onde está o gato?")


 (Você poderá ouvir esse texto na voz do autor, no podcast indicado ao lado)


10 de set. de 2022

passeio pela ponte

 


meus passos e passeamos ambos pela ponte inconsútil

no ar o cheiro adocicado de sangue

minhas mãos passeiam pela tua pele no movimento inútil

que faz o coração no peito exangue

tuas mãos e arfamos ambos sobre a ponte os gestos trêfegos

do passante improvável aos teus e aos meus desejos

o cheiro de sangue não tem mais o doce perfume

que cabia nas pétalas de teus lábios e nos meus beijos

inconsútil o estranhamento somos o bordado tecido sobre os lençóis

neles refletem teus seios como a lua de loucos arrebóis

dançamos a dança da morte e da vida no meio do estrume

enquanto gemes os meus gemidos e calas os meus gritos

somos ambos passantes pela ponte inconsútil

equilibristas que a vida julgou e condenou como malditos

a caminhar entre as duas margens do orgasmo fútil

que liga as duas pontas do arco-íris dois seres aflitos

a buscar nos meandros de antigas palafitas

o equilíbrio das marés e do passo do bêbado sobre a ponte

sem esperança de encontrar na fímbria de qualquer horizonte

o fim de meus verdadeiros sofrimentos e de tuas falsas desditas



12.4.2022

 (Ilustração: Javier Arizabalo García)

7 de set. de 2022

pássaros na garganta

 


havia na mata uma trilha que levava à cachoeira

e quando o menino descalço contava os passos até lá

pisando pedras e espinhos que lhe marcavam os pés

sentia aquele gosto na boca que a liberdade dá

um prazer hoje esquecido no calor do asfalto da grande cidade

o canto do pássaro na garganta

misturava-se ao canto das águas nas pedras do poço

e agora o som de buzinas flutua acima do cheiro de petróleo

 

filho do menino da cachoeira

o adulto esconde os cabelos brancos

sob a memória que aflora da vida triste de agora

e afoga as lembranças das tardes de mato e de sol

em águas que os pássaros da garganta do menino não bebem

 



3.1.2022

(Ilustração: foto de Fátima Alves - Itutinga/MG)

4 de set. de 2022

passado esquecido

 





risca-se um fósforo na noite escura

e a chama – mínima e vermelha –

ilumina de repente

vastas amplidões de um passado esquecido

de um passado que jazia morto e enterrado

no fundo da memória

como o fóssil na pedra no fundo do rio

e a mente – em pânico – viaja

para regiões que o tempo encaixotara

para ficar lá no fundo para sempre

líquen ou pedra ou risco de memória

sem qualquer esperança de um dia

ou de num momento qualquer

surgir de repente

na chama de um fósforo dentro de uma noite escura

para o tormento de um ser que acha aquilo não procura



31.12.2021

(Ilustração: Piet Mondrian, View from the Dunes with Beach and Piers, 

Domburg, 1909)

1 de set. de 2022

para meu pai – 2

 


de meu pai eu me livrei muito cedo

porque antes ele de mim se livrara



criança – nunca precisei de pai

jovem – menos ainda

adulto – figura esquecida no tempo



soube dele um dia quando

me disseram que morrera

- o fantasma anônimo ganhou nome

na pedra um de cemitério antigo nas montanhas de minas

perdido para mim

que nunca deixei nem deixarei na areia do caminho

a marca de meus pés

para colocar sobre sua tumba uma flor sequer



livrei-me de meu pai pela segunda vez

naquele anúncio pelo telefone

e hoje – um velho sem eira nem beira

às vezes choro uma lágrima seca

por um pai que nunca tive



18.1.2021

(Ilustração: René Magritte)