O primeiro toque, ela lembrou, estranho, muito estranho, como a primeira vez no circo, o trapezista, o susto, como a primeira vez que a gente come caju, sabe, meio amarrento, assim, mas no final era bom, muito bom, ah! se pudesse voltar agora, quem sabe não teria mais aquele gosto estranho, não teria mais o frio na barriga, o pulo do trapézio; mas depois, muito depois, voltou de novo a imagem, só ficou mesmo o gosto amarrado na boca, o gosto de fuga, o balanço vazio: sonho de menina, valeu, sim, valeu, concluiu, apesar do remorso, que boba! o segundo toque, esforçou-se para lembrar, não havia mais o mistério, só o abandono, a distensão dos músculos, a calma depois, e depois o monótono passar do tempo, quanto? muito, muito tempo, ficou naquilo, não deu em nada, não frutificou, o ninho inútil, a vida inútil, apenas um pássaro sem asas, olha-se no espelho, pássaro sem asas, brinca com o pensamento, caju amarelo, marcas, o canto da boca sem a atração do encanto irônico; olhos, olhos de água, já embaciados, lago em tarde de chuva, rio que corre sem querer a qualquer memória; a testa ampla atrás da cortina agora mais fina, mais branca, uma franja na fímbria do horizonte da tarde, gostou da metáfora, estou ficando mole, ela riu, estranhando o próprio pensamento, tolo pensamento, ela riu de novo, mas não gostou do que viu, a boca sem frescor, o dente sem sol, o ocaso, pensou de novo, mas agora não riu, jovem sem graça, mulher sem jaça, agora no ocaso, o que é isso? ralhou consigo mesma, deu para se lamentar? sem jaça, uma ova, caminhara, enfrentara o desencanto, se não vencera, pelo menos lutara, ainda luta, bobagem, lutar para quê? no espelho, o trapézio vazio, para lá e para cá, ajeitou o cabelo, séria, queria, sim, queria ainda um toque, o último, vencidos todos os pejos, trancado o coração, só a pororoca e o arrepio e o marulhar depois, nada de remorsos, ela podia ver o olho dele no seu, sem remorsos, sem pejos, também sem beijos na boca? a frase soou fria, sem beijos na boca, só o toque, de recolher, veio a ironia, mas ela de novo não gostou, ficou pensativa, talvez fosse melhor parar por aqui, não via rumo na vida, no riso sem busca, o perfume da vida, atiçou o pensamento, o perfume da vida, um toque apenas e as nuvens, ela ainda tentou sonhar, olhou para o espelho, abriu um pouco a camisola e achou ainda alguns encantos, alguns? ela ralhou para si mesma, passeou os dedos pelo decote, desceu um pouco a mão e tocou o mamilo, arrepiou, sabia que chegara o momento, sempre chega, o primeiro toque, pensamento tumultuado, trapézio ziguezagueando em sua mente, o primeiro, ela pensou, podia ter sido o único e teria valido a vida, sim, o perfume da vida, olhou o copo quase vazio no criado-mudo, no fundo a gosma azul à luz do abajur, não havia razão para continuar, seguira o figurino, sonhara, agora acabou, o salto do trapézio, olhou para baixo, o ventre, as coxas, as pernas, os pés, fugir, talvez, buscou os chinelos, os pés frios, o toque, sentiu, arrepiou, fechou os olhos e lembrou, pensou ainda que podia, estava frio, outono lá fora, inverno aqui dentro, pensamento bobo, o pulo, o pêlo, o toque, o azul e o branco, o toque, o pé que busca o toque, o pêlo, tão quente, tão bom, lembrou, um dia ele chegara, tão manso, bola de pêlo, olho azul de susto, o pulo, três dias escondido atrás do sofá, o leite azedando, depois o apego, aconchego, dependência, mesmo, companheiro de solidão, agora ali, tão macio e tão inútil sob os pés, afinal, só o que restara, o pulo do trapézio e o último toque...
(Ilustração: Balthus - Therèse dreaming)
(Conto escrito para o Grupo de Contistas de São Paulo,
coordenado por Cármen Rocha,
em maio de 2005, para o tema "onde está o gato?")
(Você poderá ouvir esse texto na voz do autor, no podcast indicado ao lado)
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