30 de mar. de 2022

mentira

 





quando fujo de mim

vou para dentro de ti

e ainda que bem longe

de teus todos anseios

prescrevo a necessidade

de viver teus enleios

e tudo que senti

na mentira do pássaro

que grita que te vi





5.5.2021

(Ilustração: Johannes Hendrikus Moesman) 

26 de mar. de 2022

melodia melancólica

 



guardei dentro de mim os sons melancólicos do cair da tarde

guardei-os todos dentro de mim

mas era para ti que os guardara – minha amada de noites perdidas –

era para ti os sons todos que havia dentro de mim

sons melancólicos que ouvia

quando a tarde caía

quando a noite apenas no horizonte mostrava a sua face estrelada

e quando eu te encontrasse – minha amada de tempos a serem vividos –

seria para ti que eu traduziria

em versos melancólicos de pura poesia

aquela estranha melodia

de quando a tarde pouco a pouco me cobria

de doces lembranças de um tempo que não vivia

de um tempo guardado apenas para ti

aquele tempo de sons que não entendia

o bater suave da asa da coruja e o grito mais triste do bem-te-vi

os sons de passos compassados de sombras que não sabia

se eram as sombras do meu futuro contigo – minha amada de noites indizíveis –

um futuro que nunca em tempo algum chegaria

porque era apenas o murmúrio na minha mente de sons melancólicos

na minha mente a triste melodia da tarde que morria

como morreste também um dia

sem que eu pudesse ao menos te dizer que era tudo aquilo

- aqueles sons – aqueles sonhos – aquela melancolia –

era tudo aquilo – meu amor dos tempos não vividos – a minha fantasia





20.4.2021

(Ilustração: Edvard Munch: Melancholy, 1894) 

23 de mar. de 2022

mater gloriosa

 




venho parindo poemas pela vida afora

- mãe zelosa de suas crias –

não jogo nada fora muito embora

possam ser julgados – muitos deles –

como filhos bastardos e eu – puta –



agasalho todos eles

e prossigo como pai na mesma luta

- andrógino poeta –

que não se importa

de não ser esteta

de ter às vezes a esperança torta

na bondade alheia

de aceitar como bela criança

aquela que nasce um pouco feia



se pari tantos garotos-garotas-poemas

corujo-os e corujo-as assim – negros ou pardos

loiros ou cafuzos – rio e choro com seus problemas

descubro brilhos de estrelas em seus olhos tardos

quando a fórceps nascem de minha mente

se os pari é porque tenho o privilégio da criatividade

ainda que sopre o vento e não traga a semente

que lhes adorne o estro com alguma verdade




3.7.2021

(Ilustração: Samuel F.B. Morse - Gallery of the Louvre, 1831–1833)

20 de mar. de 2022

mata atlântica





de repente eu quero

a quietude da mata atlântica

a quietude feita de trinos e trinados

e zumbidos e assobios da fauna

uma sonata ao piano – de quem?

não importa – talvez a folha que caia

talvez a chuva que se espraia

o vento que não dá trégua

o passo lento da jaguatirica

[não esperava o susto da égua]

o rastro do tapir no brejo de lírios brancos

trilhas de avencas e samambaias

riachos e rios a cavar barrancos

[o tropel desconhecido que anuncia – o quê?]

o susto da onça e a corrida do veado

o silêncio quebrado pelo que não se vê

dos macacos o grito do bando assustado

lá em cima da montanha azul

o traço do tupi e do tupinambá

a flecha do guarani

[e lá embaixo nas praias do sul

rezas de padres com suas cruzes

botas de couro pisando cobras e lagartos]

e o grito do bem-te-vi

bem te vi

bem te vi

bem te vi

[na mata espessa o berro – ouro!]

no tronco do pau-brasil apenas o tesouro

de uma terra que não vivi




13.12.2021

(Ilustração: Argina Seixas - Painel Mata atlântica, Serra dos órgãos, Guapimirim, RJ)


17 de mar. de 2022

maresias

 




quero um tesão de fim do mundo

para percorrer do teu corpo todas as dobras

onde encontro a pureza das obras

que produzem em mim o desejo mais profundo

que me leva às raias da loucura quando

na lua nova de baixa-mar

na praia vazia de luar

posso cheirar o teu cheiro

degustar cada gota de teu suor

tocar o sino de tuas igrejas

profanar caminhos que conheço de cor

fazer contigo tudo quanto desejas

brincar com teus fogos e teus jogos traquinas

para fugir deste mundo sem eira nem beira

onde não há dobras nem esquinas

que não acumulem tanta sujeira



7.12.2021

(Ilustração: Max Ernst - le-baiser, 1927)

14 de mar. de 2022

mãos que brotam da terra





não é “bom” o tempo num dia de sol

- um dia de sol é apenas um dia ensolarado



não é “ruim” o tempo num dia de chuva

- um dia de chuva é apenas um dia chuvoso



não são “negros” os tempos de miséria

- os tempos de miséria – aí, sim – são tempos ruins

quando sob o tacão do opressor

as tripas se colam no intestino

e os olhos que veem o sol nada enxergam

e a pele que sente a chuva se arrepia nua



na natureza nada é bom ou ruim

- são boas ou ruins as ações humanas

porque nelas há a intenção de vida ou a intenção de morte



a vida é sol

a vida é chuva



sol e chuva na natureza não se conquistam

mas a vida e seu direito à dignidade

são fruto do trabalho de mãos que brotam da terra

faça chuva ou faça sol



21.10.2021

(Ilustração: Cândido Portinari - lavrador do café, 1934)


11 de mar. de 2022

manga rosa

 







verde a fruta temporã

antes do tempo ainda na manhã

de junho ou julho colhida

amarra a boca e arrepia o paladar

precisa o seu gosto madurar

o fim da primavera aguardar

quando o lento movimento

do chupar e do cheirar

provoca o ansiado prazer

de que na boca o seu derretimento

em líquens e perfumes

abra os caminhos do alvorecer

o fruto ansiado

no tempo madurado

agora chupado

à língua desamarrado

traz o gemido de paraísos perdidos

e serpentes atentas a todos os gemidos



18.9.2021

(Ilustração: Rego Junior)

8 de mar. de 2022

lua no quintal

 





a lua veio hoje passear no meu quintal – todos viram mas tu não viste -

deixou nas folhas da pitangueira o luar de sua majestade

e fugiu feliz lua nua pelos telhados da vizinhança

fiquei eu sozinho e triste e só não mais sozinho e triste

porque estava fotografada em minhas retinas sua lembrança





26.5.2021

(Ilustração: Luis Ricardo Falero - The Witches Sabbath)


5 de mar. de 2022

lira louca

 




o meu canto desencantado

decanta a palavra cantada

por poetas e falsos profetas

pelos ventos dos tempos

palavra lavrada na pedra pisada

pelos pés peregrinos de poucos poetas



o meu canto desencanta o pranto

para o pouso do pássaro do passado

e rende-se ao rocio do rosário

de rosas despetaladas em versos

rotos versos vertidos de vasos vagos

pelos caminhos diversos

por onde se esvai e se esconde

o tesouro nunca enterrado

e assim jamais encontrado

de cantos e desencantos cantados

pela lira louca de poetas apaixonados



10.10.2021

(Ilustração: Andrew Wyeth - distant thunder)


2 de mar. de 2022

lembranças






que nos assaltem

as lembranças que nos emaranhem

em teias de sedas e rendas

e talvez arminhos



a árvore fendida

no pasto imenso

talvez um raio talvez o tempo

á água pútrida de um riacho

e a flor que dele emerge

a perfumar as margens de areia e pedra



a fruta bicada pelo sabiá

- o sumo na boca do menino

(os filhotes frustrados no ninho)



o passo marcado das botas negras

num dia de falso patriotismo



a marca na argila de um rastro torto

- o pé manco do menino mais pobre

o gibi amassado sobre a cama

para sempre esquecido – o que restou

da mão leve que por ali passou



o miado do gato

no encontro do escorpião

- o pé do menino balançando descuidado

logo acima - o susto na garganta



o traço do primeiro poema

- letra caprichada arredondada –

na folha quadriculada – decassílabos

estranhos decassílabos aos 14 anos



o passo lento do avô subindo a ladeira

sua tosse à noite

o cheiro forte de seu cigarro

a palha queimando os dedos

finos e negros

quando um dia o avô encantou

a cinza que no chão restou

ensombreceu seu vulto esguio

na memória em nuvens perdida



a cozinha sem atavios

enegrecidas as paredes pela fumaça

do fogão a lenha a cozer no seu tempo lento

delícias de frango com quiabo

o feijão cheiroso e o angu molinho



repetidas as vezes que me lembro

o som da singer aos pés da mãe

tecendo sonhos em tecidos

- vestidos que se vão como os sonhos



a praça deserta

à meia noite de lua nova

o perfume da dama-da-noite

o desejo a bater fundo nos miasmas

do primeiro amor



que nos protejam os deuses todos

das lembranças e anseios mascarados

no escuro das madrugadas

que achemos a sobrevida de um tempo

- de um tempo que se escoa

e leva para sempre as areias marcadas

de nosso passo descalço

pelas ruas frias

de frias lembranças e anseios

mascarados agora e sempre

por desejos inconsúteis

esculpidos ao som da máquina singer

na máquina da minha memória




26.10.2020

(Ilustração: Lavras / MG: Praça doutor Jorge, década de 30)