31 de ago. de 2018

quando chover





que chovam flores sobre teus olhos

não os abrirás

que ecoem passos sobre a grama

não os ouvirás

que chorem lágrimas sobre teu corpo

não as sentirás

cantem os pássaros de outrora

para teus ouvidos de agora

mudos e múltiplos lamentos

não terás mais pensamentos

que o tempo de esquecer

e quando de novo chover

a doce chuva da primavera

não haverá mais que esperar

que cresça sobre o cimento frio

nada mais que o musgo e a hera





15.7.2018 

(Ilustração: Jacques-Louis David - La mort de Bara)





29 de ago. de 2018

pequena morte 4




leio e releio até me turvarem os pensamentos e me cansarem os olhos

os poemas de fernando pessoa seus heterônimos todos e seus poemas ingleses



ouço quantas vezes forem necessárias a nona sinfonia de beethoven até seus acordes

se colarem de tal forma em minha memória que se tornem parte de mim



cheiro o perfume do jasmim nas noites de primavera esse cheiro de lua e fonte

que aciona cada fibra de meu corpo para os prazeres todos da vida



o vinho que degusto não importa de onde venha o vinho tinto e seco

que desce suave para alimentar não só meu corpo cansado mas também minhas lembranças



mas de todos os sentidos o que mais me completa com o doce arrepio da pele

o prazer absoluto do contato de meu corpo com teu corpo meu amor e não só isso

mas também o que vejo em teus olhos que refletem os meus como lagos de luares

o teus arpejos e gemidos quando a corda certa do teu violino é tocada

os teus cheiros de carne em efusão a entrar-me por todos os buracos do corpo

o teu gosto de praias desertas e mares revoltos em paraísos que não pisei

evocados à língua que rompe diques retorcidos de tantas pequenas mortes

que um só dia e uma só noite são nada para encontrar em ti o supremo gozo





26.5.2018


(Ilustração: Juarez Machado)






















27 de ago. de 2018

pedra









faça da pedra

em que tropeçou

a alavanca – não para a queda –

mas para o salto

uma nova tentativa

de chegar ao alto







8.10.2016 

20.7.2018

(Ilustração: Paul Bond - Unexpecte Departure)


25 de ago. de 2018

pavana








“Você está de luto por si mesmo” 

J. M. Coetzee – O mestre de Petersburgo 



dançam lentos em meu peito os humores

de uma vida que escorre em lenta agonia

sais de algas de águas profundas e sons

que viajam pelo espaço-tempo em busca

de uma esperança há muito desaparecida

não há desespero nem lamentações

há por vezes apenas o escorrer para dentro

há por vezes apenas o ouvir dos passos

e a proximidade do frio que não espanta

os dias de neblina e de desassossego

ouvindo pelo rádio a pavana de fouré

agoniando em cada nota o espasmo

de sentimentos vagos e o desconforto

de viver cada dia como se fosse morrer





18.7.2018

(Ilustrção: Yasuo Kuniyoshi - the opium den)



24 de ago. de 2018

para leopardi








teu tempo meu conde foi um tempo torto

e teus versos tinham a retidão de princípios e melancolias

que teus passos faziam voar como estrelas

em noite de vagalumes

teus amores inconquistados lá ficaram esquecidos

no canto de teus cantos

e teus sentimentos forrados de tênue melancolia

trouxeram às noites os desencantos e os desencontros

de teus olhos puros

viveste num tempo torto meu caro conde

e teus lamentos nunca foram os lamentos

contidos em torrentes vulcânicas

porque tu sempre sonhaste passados que tinham

sabores róseos de inimagináveis futuros





29.8.2018

(Ilustração: Arnold Böcklin, 1827-1901 - Odysseus and Calypsus)



22 de ago. de 2018

para hannah arendt








penso

logo interfiro



teu palindrômico nome

cai na minha mente

como cai a neve

nos cabelos brancos do carrasco nazista



fiz o que me ordenaram

é seu vômito de sangue



já eu sou apenas a pena que escreve

um mero cavalo

sem história e sem metafísica



ah annah ah

annah

anna

h

tu me entendes

a mim que cavo fundo

no teu paroxismo histórico

entendes-me hannah

quando dizes de ti mesma

sou eu e tu e tudo e todos

sou eu a tempestade do século XX

que destrói as torres do século XXI



és apenas em mim

um palindrômico nome a subverter meu pensamento

a trazer para mim o meu ir e vir

de um passado negro para a tua luz de sempre

há anna há poesia aqui e acolá no teu passo

ah hannah

tu és o demônio do futuro

bem-vindos os teus mistérios e tuas línguas de fogo



31.7.2018





20 de ago. de 2018

o silêncio do mundo







quero ouvir o silêncio do mar

mas o mar mesmo na preamar

marulha

quero ouvir o silêncio do deserto

mas o vento canta quando levanta

cada grão de areia

quero ouvir o silêncio das montanhas

mas cada pedra que pisam meus pés

tem o som dos meus suspiros

quero ouvir o silêncio das florestas

mas cada folha de cada árvore

deixa na queda para o chão

a música de milhares de pássaros

e o mundo todo tem sons e gemidos

assim como palpita em meu peito

um coração que não se cala

enquanto posso escrever nas páginas

de um livro que nunca será lido

os poemas que são a única forma

que eu tenho de encontrar enfim

dentro de mim o silêncio do mundo







17.7.2018

(Ilustração: Georges Seurat)


18 de ago. de 2018

o problema é seu






se não quer ver

não olhe

se não gosta

não prove



escrevo o que sinto e como todo poeta

nem sempre sinto tudo o que escrevo

mas é assim mesmo meio torta e sincera

a minha poesia se é que versos tortos

possam ser chamados e tratados de poesia



palavras que uso porque não tenho medo

não tenho não tenho não tenho não tenho

não tenho medo de palavras grandes ou pequenas

saem dos meus dedos para as teclas do computador

águas quentes de vulcões extintos em erupções

líquidas e valentes a queimar bocas e gargantas

e se não lhes aprazem que se fodam você e o mundo

não nasci para pedir desculpas por aquilo que digo

entenda como quiser e não me torre o saco

já tão cheio de desgraças da vida e de misérias

vou-me agora preocupar com as palavras que

escorrem mel e fel nas fendas de grutas escuras

dos malfadados estúpidos medrosos da letra

saiam todos eles dos esconsos abismos do medo

e vejam a morte que ronda os buchos vazios

de multidões maltrapilhas e fodidas e esqueça

esqueça que escrevo em meus versos boceta

ou vagina ou cu ou qualquer outra merda

que o tempo de trevas que sempre houve

não esgarça a sombra terrível que se espalha

quando você se preocupa com meus versos

que são sim versos porque os considero versos

e se versos não fossem que sejam pelo menos

o grito de palavrões incontidos e ressentidos

contra todos os moralistas desse mundo maldito








25.3.2018


(Ilustração: escultura de Liu Xue) 





16 de ago. de 2018

o menino lobo








quando faz luar de lua cheia

um lobo solitário passeia

pelo quintal de bananeiras

uivando a plenos pulmões

pelo pé de jabuticabas que

ali havia há tanto tempo plantado

que ninguém sabia a sua idade

e o lobo pisava com seus pés descalços as folhas secas e os cacos de vidro

em busca do reino encantado das mangueiras em flor

o lobo um menino de pés descalços e o medo habitava seu coração

mas ele seguia resoluto o caminho de barro e de mato rasteiro

até chegar aos limites do seu reino os limites do seu terreiro

onde então olhava para trás e chorava pela jabuticabeira e pelo jambeiro

o menino molhava o chão despedaçado de folhas secas e cacos de vidro

na madrugada o menino que ainda mora ali dentro de seu peito

chora em seu leito insone a saudade de estradas mortas

remoendo o espanto do sonho de tempos de outrora

quando havia um quintal e uma cidade de ruas tortas

onde um menino lobo caminhava pelas noites de lua cheia 




29.6.2018

(Ilustração: Marc Scheff - wolf dream) 



14 de ago. de 2018

o homem do casaco marrom








à fria neblina do fim do dia caminha sozinho

o homem do casaco marrom sem seu cão vadio

leva consigo o negror das noites sem lua

e a rua para ele é o único sentido da vida

não tem além do casaco marrom nada mais

do que uma calça rota e rala e um chinelo de dedo

e à fria e fina neblina do fim do dia caminha embora

saiba que o cimento duro e uma folha de papelão

serão sua última morada antes do nascer da aurora




5.7.2018

(Ilustração: Debora Arango -1907-2005 -la republica) 



12 de ago. de 2018

numa tarde de outono quase inverno








não tenho em mim todos os sonhos do mundo

só os meus sonhos que nem eram tantos povoam minha mente

sonhos que ficaram para trás ou sonhos que ainda estão no horizonte distante

as esperanças que ficaram na fumaça do tempo de uma tabacaria

a que nunca compareci nem para comer um mísero chocolate

os meninos que habitaram em mim estão mortos e enterrados

como a maioria de meus amigos que partiram sem se despedir

a estranheza do mundo não está no contato da vida com a realidade

a estranheza do mundo está nas impossibilidades de vidas que não vivi

e no tudo quanto podia ter sido e não fui porque não estava ao meu alcance

e se beijo a lona como combatente sem nenhum vezo a lutar

com um campeão de boxe que embora já velho e ranzinza ainda é um campeão

é ainda pior a derrota quando o contendor desiste da luta antes do começo

não desisti propriamente mas lutei lutas erradas a vida toda

até gastar as energias que deviam ser conservadas para os tempos gélidos

os sonhos do mundo estão no mundo e não povoam meus pensamentos

no bar da vida a bebida mais doce foi sempre a que continha o pior veneno

e a embriaguez dos sonhos fez de todos os percalços o pesadelo fatal

não há mais caminhos nem pedras que firam meus pés descalços

a estrada mais próxima leva a lugar algum e o lugar algum não é sonho

é apenas o destino final que o dia em que nasci registrou talvez para mim

o fatalismo de todos os que vieram ao mundo sem que o mundo os quisesse

assim vivemos e morremos com o grito de revolta entranhado na garganta

engolido sem chocolate quente ou sem qualquer gesto de humanidade

que resgate um ser que não tem em si mesmo os sonhos do mundo

porque os sonhos do mundo não convivem com os próprios sonhos sonhados

tão inutilmente nas profundezas da miséria e da falta de horizontes

numa tarde fria de outono quase inverno dentro e fora do meu ser 







19.6.2018

(Ilustração: René Magritte)








9 de ago. de 2018

na minha cama







na minha cama (onde passo mais tempo 

lendo 

pensando 

escrevendo) 

há falta de corpos e concretudes 

nela viajo os meus sonhos 

atormento os meus demônios 

controlo os meus ímpetos 

há em seu longo acolhimento o espanto 

de margaridas e hortênsias orvalhadas 

há caminhos e desencontros 

de antigos desejos e futuros anseios 

sons de ventos que sopram de geleiras 

e o arrulhar de aves em volta de barcos naufragados 

confesso entre lençóis sujos de sêmen 

velhas antropologias autofágicas 

e resumo meus desencantos em linhas tortas 

de versos sem espanto e sem destino 

aos quais entrego o sono e os sonhos 

de vidas que não vivi 

na minha cama (onde me refestelo 

em leituras oníricas 

em pensamentos torpes 

em versos incriados) 

o vento não dói quando perpassa 

pelas feridas não cicatrizadas da solidão da vida 




3.8.20128



(Ilustração: Pauline Zenk - Man on bed in Tanger)





7 de ago. de 2018

montanhas








montanhas que se encontram

nuvens sólidas de mato e pedra

o luar de ventos e sons estranhos

céu de estrelas de van gogh



montanhas de minas em minérios metalizadas

cantam na chapa de automóveis de detroit



falam de vazios e vácuos em vagidos

de ventosas venturosas de campanários

onde toca o vento ao sino da torre

o barroco tingindo o mar de morros

ao luar de uma sexta-feira o ventre

da montanha aberto aos trens fantasmas

negror de bocas e gargantas e vales

o último suspiro do negro nas minas

o enlace entre o céu de estrelas

e o eterno pavor das coisas que ainda vão ser





17.7.2018

(Ilustração: Itabira/MG - foto da internet, sem indicação de autoria)





5 de ago. de 2018

meus versos








há muito perdeu-se em meus versos

métrica sensual do bater de tambores

ou o alongamento de alexandrinos perfeitos

nascem agora ao sabor do pensamento

livres vagas ao vento

marulho de conchas nos ouvidos

sem estro e sem compromisso

vozes desveladas de encontros e desencontros

da vida apenas espelhos opacos

de sentimentos idos e vividos 







3.8.2018

(Ilustração: Manabu Mabe - jornada) 



3 de ago. de 2018

Bife e poesia









Engraçado como certas palavras e expressões entram e saem de moda. Ou, então, vão-se substituindo para expressar a mesma ideia ou a mesma emoção. Cáspite! (do tempo de nossos avós, ou mais) foi-se virando em coisas como Puxa! – Nossa Senhora! – Nossa! – Caramba! – Caraca! – e por aí vai. Para onde, ninguém sabe. 

No meu tempo e no tempo de muita gente que está lendo isso agora, quem não usou a expressão “uma brasa, mora”? Parece até que moçada prafrentex (epa!) que falava isso é do século retrasado, mas vários deles ainda estão por aí, cantando e até fazendo sucesso. Ok, com o pessoal antigo, da “velha guarda”, que se peja em usar os termos de poucos (poucos?) anos atrás, para não passar carão. 

Hoje, a molecada usa tantos termos estranhos, que se divulgam pela internet, que nem vale a pena citá-los, porque, como o próprio meio que utilizam para espalhá-los, mudam a cada instante. Como modelo de telefone celular. Também não vou ficar fazendo um inventário de termos desusados, porque são tantos e tão variados quanto é inconstante e variada essa nossa língua portuguesa, falada aqui, lá na velha terrinha e em outras terrinhas africanas e asiáticas, com sotaques e expressões também muito diferentes e, às vezes, estranhas. 

Quero misturar, sob esse tema, coisas tão diversas quanto literatura e poesia e gastronomia. Ou seja, quero falar de um prato cujo nome – extremamente popular há alguns anos (quantos? nem sei!) – hoje ninguém mais se lembra: o bife a cavalo. 

E onde entra a poesia? Ah, sim, a poesia. Ela entra através da pena do poeta José Paulo Paes, que conhecia mais como (ótimo) tradutor, sem imaginar que tivesse uma vasta obra poética, variada e muito, muito interessante, para dizer o mínimo. Tem o nosso poeta até mesmo uma boa quantidade de poemas voltados para o público infantil, com muita verve, irreverência e ironia, difíceis de encontrar em poemas voltados para crianças. 

Então... estava eu procurando os poemas de Zé Paulo (acho, até, que posso chamá-lo assim, tão íntimo fiquei de sua poesia) espalhados pela internet, quando dei de cara com este poema: 



O bife 



José Paulo Paes 



Onde é 

que está 

meu bife? 

Fugiu do açougue 

sumiu da cozinha 

no prato não acho 

quem sabe me diga: 

será que meu bife 

está noutra barriga? 

Meu bife 

era 

a cavalo: 

um ovo estalado 

com batata frita. 

Porém me lembrei: 

sendo bife a cavalo 

fugiu no galope 

não vou mais achá-lo. 



Bife a cavalo! Todo buteco que se prezasse servia um bom bife a cavalo. O engraçado é que – e isso sempre me vinha à mente, quando, diante de meus alunos, nas aulas de português, usava o termo “bife a cavalo” para explicar por que não podia haver crase (“cavalo” – palavra masculina, não admite artigo “a”, para se contrair com a preposição “a” – essa mania de dar lição de gramática ainda me persegue, ô coisa!) – repito: o engraçado é que, na verdade, o que vem mesmo a cavalo é o ovo! Ah, sim: é preciso explicar que o bife a cavalo se constitui de um simplório bife de carne bovina (pode ser qualquer corte, mas o preferido era o contrafilé) com um ovo em cima! Não seria o caso de chama-lo “ovo a cavalo”? Acho que não: não soa bem, além do que, bife a cavalo é bem mais charmoso, dá mais a impressão de algo que nos vai saciar a fome bem rapidinho, ainda que o cavalo hoje não seja mais o meio de transporte mais usado nem, claro, o mais rápido (o tempora! o mores!). 

Conta-se que os mais engraçadinhos ou, talvez, os mais famintos, sempre pediam ao garçom que o bife a cavalo viesse com umas batatinhas fritas no estribo e arroz ou uma saladinha na garupa. O que eu quero registrar, no entanto, é que esse prosaico prato da culinária popular brasileira desapareceu do cardápio de todos os bares e restaurantes. Não sei se o brasileiro deixou de comer bife com ovo frito, ou se apenas o nome – bife a cavalo – deixou de fazer parte de seu vocabulário. 

De qualquer forma, com a poesia de José Paulo Paes, resgato uma expressão e, quem sabe, também o prato: que nossos bares e restaurantes populares e, por que não?, também os mais sofisticados – só espero que não gourmetizado e com o preço inflacionado – passem de novo a servir esse nosso antigo e famigerado bife a cavalo. Que pedir bife com ovo frito é o ó (se é que ainda se pode usar essa expressão). 



3.8.2018




2 de ago. de 2018

humor de cidade grande








ainda a madrugada nem surgiu

o galo cantou

o gato miou

cachorro latiu

e uma voz gritou

- putaqueospariu! 






27.7.2018





(Foto de Kim & Karen - in The Big City Bread Cafe from Atenas: