não tenho em mim todos os sonhos do mundo
só os meus sonhos que nem eram tantos povoam minha mente
sonhos que ficaram para trás ou sonhos que ainda estão no horizonte distante
as esperanças que ficaram na fumaça do tempo de uma tabacaria
a que nunca compareci nem para comer um mísero chocolate
os meninos que habitaram em mim estão mortos e enterrados
como a maioria de meus amigos que partiram sem se despedir
a estranheza do mundo não está no contato da vida com a realidade
a estranheza do mundo está nas impossibilidades de vidas que não vivi
e no tudo quanto podia ter sido e não fui porque não estava ao meu alcance
e se beijo a lona como combatente sem nenhum vezo a lutar
com um campeão de boxe que embora já velho e ranzinza ainda é um campeão
é ainda pior a derrota quando o contendor desiste da luta antes do começo
não desisti propriamente mas lutei lutas erradas a vida toda
até gastar as energias que deviam ser conservadas para os tempos gélidos
os sonhos do mundo estão no mundo e não povoam meus pensamentos
no bar da vida a bebida mais doce foi sempre a que continha o pior veneno
e a embriaguez dos sonhos fez de todos os percalços o pesadelo fatal
não há mais caminhos nem pedras que firam meus pés descalços
a estrada mais próxima leva a lugar algum e o lugar algum não é sonho
é apenas o destino final que o dia em que nasci registrou talvez para mim
o fatalismo de todos os que vieram ao mundo sem que o mundo os quisesse
assim vivemos e morremos com o grito de revolta entranhado na garganta
engolido sem chocolate quente ou sem qualquer gesto de humanidade
que resgate um ser que não tem em si mesmo os sonhos do mundo
porque os sonhos do mundo não convivem com os próprios sonhos sonhados
tão inutilmente nas profundezas da miséria e da falta de horizontes
numa tarde fria de outono quase inverno dentro e fora do meu ser
19.6.2018
(Ilustração: René Magritte)
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