30 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: lugares... caminhos... 9





Se canto
um canto
de desencanto
isso acalma
minha alma
da saudade
do meu canto
mais sofrido.

Se me calo
no doce embalo
de canção singela,
minha voz
em dor atroz
tece um canto
escondido.

Vejo agora,
pelo mundo afora,
o que não via:
caí no laço
do meu próprio passo
e hoje não passo
sem poesia.

12.3.92


(Ilustração: foto de Aleksej Patlakh)

29 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: lugares... caminhos... 8





Um lugar, uma floresta,
Rios de águas sujas:
- que cidade é esta?
É preciso que fujas
Para o espaço sideral
E verás a Terra azul.
Vai, vai pra longe do mal
Das águas podres deste paul.
Não ouças ladrar os cães,
Não disputes o leite seco
Dos peitos de murchas mães,
Não disputes o osso preto
Da sopa rala dos mendigos.
Um lugar, uma cidade:
- em cada esquina mil perigos
- em cada olhar uma maldade.
Um lugar, lugar distante
é tudo quanto almejas?
- Segue teu caminho - avante! -
Com a mulher que tu desejas!
6.11.91


(Ilustração: foto de Georg Suturin)


28 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: lugares... caminhos... 7




RIO PRINCIPAL

Tietê da lembrança
Tietê da vingança
Rio que foge
cada vez que chove
do leito casto
e vira um vasto
mar de lama.

Rio puro de puras águas:
nas ruas deságuas
a sujeira humana
e afogas com teu veneno
o veneno que te sufoca.

Rio nasceste - tão pequeno:
tua pureza evoca
para do fundo do teu leito
vomitar as entranhas
da urbe que banhas
e não te dá respeito.

Tietê da vingança
Tietê da lembrança!

Afoga em teu grito de morte
o rio que foste no lodo que és

e busca impávido e forte
do sul as claras marés

ó Tietê da vingança
ó Tietê da esperança!



1.5.91


(Ilustração: São Paulo antiga -1905-Clube de Regatas do Tietê)

27 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: lugares... caminhos... 6





Putas, boêmios e pederastas
emergem da noite em busca de paz:
maltratado exército de emoções nefastas
que, à luz néon dos velhos bares, se desfaz
em reis, princesas e poetas.

Aos becos mortos oferecem vida;
aos palcos podres, emoções de estetas;
no show mambembe, uma boca retorcida
imita o canto da divina Sarah;
e, ali, na boate suja, um instante a música pára
e a stripper volatiza o sonho da última peça;
o arrepio do silêncio bêbado prepara
a entrada triunfal do show das dez:
e, antes que as poucas palmas se arrefeçam,
o palco iluminado se escancara
à orquestra louca num som de jazz.


19.10.90


(Ilustração: foto de Shubina Olga – despair)


26 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: lugares... caminhos... 5


LADEIRA DA MEMÓRIA

em passo lento
flash-back
no pé do moleque
na lama podre
do tempo lento
Escorre o tempo
e o rio ri
para o bem-te-vi
o padre reza
a missa louca

na casa de adobe
comida pouca
chapéu de aba
espada
na cinta do bandeirante
e o rio leva
para além de Itapeva
o vento uivante
o caldo espesso
de um trem só de ida
chamado progresso

e a lama pobre
se escorre se escorre
além do vento
além do espanto

alvenaria
telha européia
dinheiro - um tanto
ave-maria
e gonorreia

um prédio alto

e como num salto
o bonde
vai aonde
o homem vai

a mata seca
o rio seca
secam-se as almas

em vez das palmas
e palmares
sobem aos ares
fuligem preta

os imigrantes chegam
colorem as ruas

no rio podre não mais navegam
velhas chaluas
levadas ao vento
fazendo história

e desce a ladeira
secando a poeira
o sangue novo
do velho povo
já sem memória.


(Ilustração: São Paulo antiga - Ladeira da Memória, s/d, autor não identificado)



25 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: lugares... caminhos... 4




SÃO PAULO MARCO ZERO

Em cada esquina - um desvario;
em cada beco - um cão sarnento:

estirados à beira de cada meio-fio,
mendigos rotos vomitam ao vento
o cheiro azedo de carnes podres;

e ali, no coração da megapraça, os pregadores
vêem à sombra da catedral
em cada cicatriz um sinal
do fim dos tempos e de todas as nossas dores;

das águas da fonte emerge apenas a desesperança
nos olhos frios de cada criança,
em promessas de trovões, sangue, pó e punhal;

políticos vis sacodem a pança
e desfilam sonhos à turba exangue;
de um buraco no ventre em sangue
esvai a vida do operário:
num instante de dor e espanto
misturam-se as tripas ao erário
que o patrão não reclamará;

no canto oposto se eleva o canto
a brotar colorido de um grupo andino;
rasteja a cobra, entre o medo e o susto,
saída do cesto do falso índio vivaldino;

dorme o bêbado babando sobre o arbusto,
enquanto vende o malandro ao outro
o cheque frio do banco quente;

retorcem-se os braços e pernas num salto louco
do saltimbanco que ganha a vida vendendo pente:
o contínuo aplaude, o aposentado resmunga;

de um nariz vermelho que funga
escorre a gosma da miséria
e o menino preto de pés descalços
troca o sol do sapato preto
pelo feijão verdadeiro de tantos dias falsos;
da praça saem em passos lentos
sombras fluidas e fantasmas sebentos;

à praça despeja o buraco norte-sul
dos pontos longínquos uma multidão azul

e o vórtice de corpos e cores
num grito surdo explode em dores:
sinto então no peito o borbulhar do paul
em que se muda o meu ser

e eu sou, Santo São Paulo,
tudo aquilo que não te quero
a pulsar angústias e em ânsias a tremer
na velha praça do marco zero.

5.10.90

(Ilustração: foto São Paulo antiga - catedral - 1913 - autor não identificado)

24 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: lugares... caminhos... 3




De loucos momentos vividos
não resgates a memória:
se são tempos há tanto idos,
deixa-os dormir na História.

Em cada um dói o tempo
de forma tão vária e atroz,
que o simples sopro do vento
será mais forte que a tua voz.

Por isso, cala a tua lembrança
bem nos esconsos de tua alma.
Guardarás, assim, a esperança
de teres na tua velhice a calma.




(Ilustração: foto de Frank Boots)


23 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: lugares... caminhos... 2





Se não consegues ver
além da própria sombra,
não precisas subir a montanha.




13.11.89


(Ilustração: foto de Yuri B)

22 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: lugares... caminhos... 1






Se teus horizontes
ficam cada dia mais próximos;
se tuas dores
cada vez mais agudas,
se tens cada vez mais tempo
do tempo - pouco - que te resta;
se te sobram sombras sobre os olhos
e há fel em tua boca;
se dos teus restam apenas
negativos não revelados;
se dos teus sonhos o branco entretece
sombras vagas e vazias;
se vês de ti apenas o ontem
no espelho partido da memória pálida;
se negas a ti mesmo o passo trêfego
em busca do caminho já percorrido;
se pensas apenas no que ter sido deveras
e lastimas a vida que não viveste...

então - sombra rude em campo de trigo -
estás a colher do grão que não plantaste
e esperas somente da colheita
seres de ti mesmo o joio.


30.10.89

(Ilustração: foto de Obolenski)

21 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: lira 9




Uma noite
senti teus olhos
a queimar-me a pele.

Uma noite
provei teu seio
a roçar meu desejo.

Uma noite
ouvi teu beijo
em minha boca estremecer.

Uma noite
o teu cheiro entranhou meu ser
e nunca mais saiu.

Do teu ventre róseo
rosas de carne e sangue
sagraram nosso enlace.

E um dia acordei
dos teus braços a noite infinda
e vi que eras apesar de tudo
meus olhos, minha boca, meus ouvidos,
minha pele em desejo vertida,
o doce e eterno perfume
do amor de muitas noites.
10.3.92


(Ilustração: Ray Caesar)

20 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: lira 8




Perdeu-se no tempo
o meu sonho,
perdeu-se no espaço
a esperança.

Restaram, no entanto, no fundo de seus olhos,
a grande realidade do mundo:
nosso amor inatingível
a reconstruir em cada matiz de brilhos estelares
o sonho, a esperança,
a dor.



7.10.91

(Ilustração: Ray Caesar)

19 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: lira 7



O vento morno que vem do norte
sabe a beijos de tua boca
o vento frio que vem do sul
sabe a caricias de tuas mãos
o vento quente que vem do mar
sabe a gozos de nosso amor
mas o vento que venta em giro
traz a angústia de minha dor.

Retorno ao tempo de nossas vidas
em que na grama do teu jardim
colhia em flor teus beijos loucos;
dizia-te versos tantas vezes ditos
que as palavras tinham somente som
e tu pensavas ser a prova
de um amor que eu sentia e tu fingias;
fugiste então do nosso abrigo
e foste ao vento como os versos:
hoje, só, na minha dor
escuto a brisa, o vento, o tufão
em busca do som dos beijos teus
e amargo dores e saudades
escrevendo novos versos velhos
de priscas horas de paz total.



20.6.91



(Ilustração: Ray Caesar)

18 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: lira 6




Quem ama desama
e, ao desamar, esquece.
Mas fica, no fundo da alma,
uma dor que não arrefece
nem nunca - jamais - se acalma.

Antes que a dor retorne,
busca o peito novos amores
e, da corda que no fundo dorme,
ressoa o som de novas dores.

Na onda insana que sempre volta,
gira a roda a retesar a corda:
presa a corda, onda solta
a saudade que transborda.

Afogam-se as mágoas do desamor
no mar amargo de sargaços
e busca-se, no eco de cada dor,
o eco distante dos próprios passos.

Quem ama desama
e, ao caminhar na busca de novas dores,
da dor do amor esquece a chama
no palco em meio a novos atores,
mas para sempre em cada canto
encontra a saudade em doce pranto.



22.4.91

(Ilustração: Ray Caesar)

17 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: lira 5





Da minha vida o velho paul
emana cinzas e miasmas:
de sob a fumaça azul,
liberto todos os meus fantasmas.

Rostos tantas vezes queridos,
corpos, olhos, seios, bocas,
momentos intensamente vividos
em dias e noites de ânsias loucas.

Das cinzas surge a saudade,
dos miasmas um grito de dor;
visões, visões da pouca idade
em que se cria num puro amor.

Os teus cabelos voam ao vento,
os teus olhos brilham à luz da lua;
uivam molossos num só lamento,
enquanto te sonho tão bela e nua.

Foste tu dentre tantas
quem tocou meu coração;
se das brumas tu te levantas,
meus olhos não te negarão.

Vem, pois, do passado ao meu futuro,
salva do pântano a minha vida,
que eu, mais uma vez, te juro
retomar a estrada outrora perdida.
7.1.91

(Ilustração: Ray Caesar)

16 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: lira 4




BERCEUSE

Numa tarde de tristeza,
fui buscar o meu passado.
Num momento de lembrança
revi teu rosto tão amado.

Outrora - sonhos a realizar,
no teu corpo - uma esperança,
tantas tardes a passar
lentas e calmas no teu regaço.

Hoje - a tristeza me contempla
numa sombra - um longo abraço.
Olho para trás e só revejo
marcas fundas de meu triste passo.



11.9.90

(Ilustração: Ray Caesar)

15 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: lira 3




Foste tu que me trouxeste
vida nova a um peito gasto.
Surgiste bela como o vento leste,
levantando a relva de um verde pasto.

Arrepios loucos de beijos tantos,
tensões da carne explodindo estrelas,
humores, suores, espasmos, espantos,
fomos luzes sem de fato vê-las.

Colhemos flores de mel com nossas bocas,
múltiplos orgasmos em nossos sexos.
E o amor, como o vento em flores loucas,
espalhou o pólen de nossos amplexos.

E o mundo novo da vida revista
trouxe frutos doces como o nosso mel,
e mesmo que de tudo na vida eu desista,
terei cumprido no teu corpo o meu papel.



22.6.90


(Ilustração: Ray Caesar)

14 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: lira 2




Não quero ver
as rugas do teu rosto.
Mesmo que as marcas do desgosto
sombreiem teus olhos,
tuas formas - eu sei --
permanecerão nas minhas retinas,
inefáveis como o retrato invertido
de Dorian Gray.

Não quero ver
o volume de tuas formas
esconder o corpo que tanto amei.
Nada em ti se metamorfoseie,
para que eu possa encontrar a cada momento,
nos escombros do tempo e do espanto,
a mesma paixão,
o mesmo toque, o mesmo espanto,
de nossa boa e velha tesão.


16.5.86


(Ilustração: Ray Caesar)

13 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: lira 1




Depende, para viver, o poeta
do seu mundo imaginário:
sonha, em sonhos de esteta,
com a mulher ideal;
mas, como o mundo é vário,
vive o sonho com a mulher real.

E, na roda do sonho, a vida
vira sonho e o sonho, vaidade.
Da ilusão a estrada perdida
esfuma-se numa só saudade.

Do pensamento à emoção,
ou da emoção ao pensar,
revive em sonho a tesão
e pensa cada vez mais amar.

Imagina o poeta, ao pensar
que o amor a tudo transforma,
ser o mundo o seu sonhar,
ser o ideal de seu sonho a forma.

E entre o mundo de ser e não ser,
revela em versos seu desgosto:
paga com o sonho, por viver
em sonhos eternamente posto.
8.4.91

(Ilustração: Ray Caesar)

12 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: do fazer poético 13




não há página em branco
que resista
à vontade de um poema
de nascer
o desafio torna-se um prazer
e aquilo que era problema
vira o correr da pena
em busca da metáfora

quando à tona do mar branco
jorra o pema em letras diversas
aspira o autor à eternidade
como um deus a criar de novo o universo
e suspira à lira de cada verso
melodias que, lembrando o passado,
anelam ao futuro pertencer

não há página em branco
que persista
à loucura de um poema
quando teima em nascer



21.7.98

(Ilustração: Malevich)

11 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: do fazer poético 12



Caço em mim o pássaro
casso o canto
castro o espanto
inadiável pranto
premente poema
casto verso tão diverso
do que sinto
aríete que explode
- para mim não minto -
minto apenas sobre as penas
não do pássaro que morto está
mas das penas que pressinto
fugazes mas tenazes
libertas do eito do meu peito
e casso então
para meu espanto
o doce encanto
das dores de amores
do meu coração.



17.2.92

(Ilustração: Malevich)

10 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: do fazer poético 11



Se morto estás,
ó meu coração,
por que ferirás
meu cérebro revolto?
por que sortilégios
por que privilégios
de amarga sorte
fazes-me sentir
tão perto a morte?

Se morto estás,
perdido em abandono,
trazes-me dor com tenaz
obstinação,
ó coração!
e tiras-me do sono
para a louca alegria
de um negro poema?


17.2.92

(Ilustração: Malevich)

9 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: do fazer poético 10



Sabes por que escrevo
assim como quem devo
deixar como escravo
o verso que vem?
Sabes por que solto
o solto salto que volta
disforme em forma
de verso?
Sabes? Talvez saibas!
Talvez saibas do espasmo.
Talvez pressintas o orgasmo.
Mas jamais saberás
do pranto
do espanto
da dor.



17.2.92




(Ilustração: Malevich)

8 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: do fazer poético 9




Dá-me um tema:
não farei um poema.
Sem tema, sem lema
sem rima, sem lima
apenas escrevo
escravo que sou
do som que me vem
do fundo da memória.
Escolho apenas
de todas as palavras
apenas, apenas a escória.
Rudes, porque libertas,
tomam vias incertas
as tontas palavras.
Das portas abertas,
soltas, saltam, salvam-se
em redemoinhos.
De seus caminhos
ninguém sabe.
E antes que acabe
qualquer poema,
eu torno ao tema
que cavo, escalavro
como qualquer escravo.


17.2.92



(Ilustração: Malevich)

7 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: do fazer poético 8



Circuitos curtos
extrapolam os limites
do meu cérebro.
De ligações
e conexões
nascem versos
nascem poemas.
Penso o que sinto
não sinto o que penso.
Pessoa, sim, como pessoa
e poeta
foi cantor e esteta.
Camões, sim, com as mãos
nadava e escrevia
e não se afogava
naquilo que sentia.
Do Alves eu castro
o vasto, vastíssimo
sentimento.
Do Dias os dias
de comedimento
em ritmos ternários.
Do Carlos do mundo
seu vasto re-canto
retiro o espanto.
E tu, Bandeira, despregadas
estão tuas ruas tão nuas
tão nuas em fogueiras.
E eu curto o circuito de gosto de gozo
ao som plangente de violões e vozes
em “plenilúnios de maio em montanhas de Minas”.
Na “pedra polida” parte-se o poema.
Ouço:
lá bem no fundo do poço do meu coração
“uivam molossos na escuridão”.
Num círculo em curto
de ondas sonoras,
lúdico poema em verso tortos,
angélico canto de doce pranto
talvez vertido, talvez ferido - punhal de prata? -
em gotas no cântaro goteja.

E o cântaro, tantos cantos,
quebrado.

17.2.92

(Ilustração: Malevich)

6 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: do fazer poético 7




Do fazer entendo,
não entendo do refazer.
Solto o verso
na folha branca
e com letra estranha
em linha torta
em linha reta
tanto faz
o que não me apraz
é prender o estro
no rever insano
de um pobre pobre
parnasiano.


17.2.92


(Ilustração: Malevich)

5 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: do fazer poético 6




Brinco, sim, eu brinco
com os poemas
com as palavras
com os sons
tão bons os sons os sons os sons
da língua portuguesa.
Não me importa a rima
não me importa a lima
gosto quando vem
não desgosto quando tem
o verso no seu reverso
o gosto bom de um raro som
no que seja
do lago verso
como uma pedra lançada a esmo
espalha ondas em mim mesmo.
Brinco
de pôr um trinco
em cada verso
fechando ao senso
o strictu sensu.
Só não brinco
quando sinto
no verso frouxo
a minha falta
de inspiração.



(Ilustração: Malevich)

4 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: do fazer poético 5




VOO SIMBÓLICO

Flui o vento flácido
flocos
loucos
na lua azul

penso repenso
penso em pensamentos
poucos prováveis

lenta a vida
lento o voo
asas aos ares
ao vento fluido

faço desfaço
refaço
a lenta linha
do vôo cego

não penso
suspenso
ao ar
ao ar
ária

fogo fátuo
ao ar
ao vento
o vôo
mais lento
flui
em floco
e desfoco
o momento
a dor.


19.2.91

(Ilustração: Malevich)

3 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: do fazer poético 4



Faz muito tempo já
que pensei num poema que falasse
de todo o meu espanto
diante do mundo.

Pensei-o forte e com ódio no coração.
Busquei até mesmo o compasso binário
de tambores de guerra a marcar o ritmo
de rimas em “ão”.

Desisti, porém, do louco poema,
ao perceber a armadilha de meus sentimentos:
pensando combater o ódio,
lançava centelhas de ódio em forma de versos.

E o bom-senso prevaleceu:
esqueci o batuque frenético da metralhadora
e troquei-o pelo espanto.
Apenas o espanto do mundo.
Nada mais que o espanto do mundo
é suficiente para expressar
o espanto do mundo.
O resto é ódio.
E ódio não é filosofia.
Tampouco o é a poesia.

15.2.91

(Ilustração: Malevich)

2 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: do fazer poético 3



tão fácil juntar
rimar
limar
palavras vãs
num verso solto

tão fácil falar
de amor
de dor
de flor
em versos inúteis

tão fácil
iludir
chorar
as dores
do mundo
em versos fúteis

tão fácil dizer
de coisas
etéreas
e eternas
em versos inefáveis

mais fácil ainda
tocar
as mentes
humanas
com loucas
mensagens
de mundos estranhos

difícil, no entanto,
achar
nos versos
sem rima
sem metro
a palavra final
- o Verbo.



9.1.91



(Ilustração: Malevich)

1 de abr. de 2010

POEMAS DO MUNDO: do fazer poético 2




cacos de espelho refletem
pedaços de vida:
não sei se cada caco contém
uma vida inteira em pedaços
ou pedaços inteiros
de uma vida partida;

sei que apenas os contemple
mudam-se em calidoscópicas cores,
tornam-se vidas em sombras convertidas,
tornam-se sombras as vidas repartidas
e como tenazes agarram-se às dores
todos os amores que não vivi,
no centro da espiral em movimentos loucos
a solidão metamorfoseia-se neste verso:
“a drop fell on the apple tree”
e chamo miss Dickinson em gritos roucos,
que há tempos prendo no meu coração,
para juntar os cacos dessa profunda solidão.


22.5.90


(Ilustração: Malevich)