SÃO PAULO MARCO ZERO
Em cada esquina - um desvario;
em cada beco - um cão sarnento:
estirados à beira de cada meio-fio,
mendigos rotos vomitam ao vento
o cheiro azedo de carnes podres;
e ali, no coração da megapraça, os pregadores
vêem à sombra da catedral
em cada cicatriz um sinal
do fim dos tempos e de todas as nossas dores;
das águas da fonte emerge apenas a desesperança
nos olhos frios de cada criança,
em promessas de trovões, sangue, pó e punhal;
políticos vis sacodem a pança
e desfilam sonhos à turba exangue;
de um buraco no ventre em sangue
esvai a vida do operário:
num instante de dor e espanto
misturam-se as tripas ao erário
que o patrão não reclamará;
no canto oposto se eleva o canto
a brotar colorido de um grupo andino;
rasteja a cobra, entre o medo e o susto,
saída do cesto do falso índio vivaldino;
dorme o bêbado babando sobre o arbusto,
enquanto vende o malandro ao outro
o cheque frio do banco quente;
retorcem-se os braços e pernas num salto louco
do saltimbanco que ganha a vida vendendo pente:
o contínuo aplaude, o aposentado resmunga;
de um nariz vermelho que funga
escorre a gosma da miséria
e o menino preto de pés descalços
troca o sol do sapato preto
pelo feijão verdadeiro de tantos dias falsos;
da praça saem em passos lentos
sombras fluidas e fantasmas sebentos;
à praça despeja o buraco norte-sul
dos pontos longínquos uma multidão azul
e o vórtice de corpos e cores
num grito surdo explode em dores:
sinto então no peito o borbulhar do paul
em que se muda o meu ser
e eu sou, Santo São Paulo,
tudo aquilo que não te quero
a pulsar angústias e em ânsias a tremer
na velha praça do marco zero.
5.10.90
(Ilustração: foto São Paulo antiga - catedral - 1913 - autor não identificado)
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