30 de dez. de 2022

preguiça [com variações]

 





1.

preguiça, bendita sois

que me fazeis deixar

tudo pra depois



2.

preguiça, bendita

sois: fazeis deixar

tudo pra depois



3.

preguiça: que sois

bendita, a deixar

tudo pra depois



4.

preguiça, que sois

bendita a fazer

que me deixe a ser

tudo pra depois



28.2.2022

(Ilustração: Cícero Dias - autorretrato - 1930)

27 de dez. de 2022

prazeres

 




quero o teu prazer - que ele flua

do interior de tuas sinapses cerebrais

à pulsação de todos os músculos vaginais

enquanto transcendem à noite nua

enlaçados abraços em gozos lassos

e no elanguescer de mais um instante

o doce prazer de abraçares meus abraços

como se fossem nossas carnes o som flutuante

que canta e ilumina o palco de nossas vidas

onde nascem de nossos orgasmos alamedas floridas



9.8.2022

(Ilustração: Frida Castelli)

24 de dez. de 2022

porto seguro

 








teu corpo – dádiva florescente para meus anos tardios

ainda que macerado pelo tempo que escorreu por entre tuas pernas

despeja anseios não declarados de paciência e paz

nos entremeios de um caminho que se estreita



teu corpo – tranquiliza-me o percorrer teus desvios

responde aos toques de alfazema de futuros ignorados

depõe em meus olhos o espanto de descobertas

e o instinto renovado de permanências e imanências



teu tranquilo tremor de porto seguro para meus poucos arroubos

faz arder a sarça de fogo que as chuvas de verões passados apagaram

e de novo o tempo acende o futuro e o espasmo de vulcões adormecidos



sou por teu corpo o caminheiro que um dia se perdera

e na tua entrega de lago de lua cheia navega em busca de si mesmo

para alcançar enfim paz das flores que só vicejam no inverno



27.8.2021

(Ilustração: Adrien-Jean Le Mayeur de Merpres)









21 de dez. de 2022

porre

 




esta noite tomo um porre

lambendo a baba que escorre

de dentro do meu peito como lava

esquecido da ambição da palavra

que preenche o espaço entre a morte

e a possibilidade de achar um norte



5.5.2021

(Ilustração: desenho de Goya)

18 de dez. de 2022

poema-desabafo

 




qualifiquei-me para a vida quando nasci

com cabeça

tronco

e membros

e um cérebro que pensa

e um cérebro que sonha

e um cérebro que imagina e cria

a vida no entanto sempre me desqualificou

mesmo não sendo totalmente preto

[se o fosse seria muito pior]

mesmo tendo estudado em bom colégio

[não fosse isso o futuro seria futuro de preto]



mesmo tendo me formado numa grande universidade

[não fosse isso teria caído na fossa do subemprego]

a vida me desqualificou sempre mesmo assim

porque saí da pobreza e se a pobreza não saiu de mim

foi porque só ganhei o suficiente para viver

e não me curvei àquilo que acham que gente como eu deva ser



a sociedade branca e elitista não perdoa

quem ultrapassa linhas traçadas pela injustiça e pelo preconceito

mede-se a si mesma pela média da média da estupidez

e tem olhares de esguelha e desdém aos que deviam ser párias

não suporta – essa gente de nariz que não pode tomar chuva –

que alguém que não seja de suas hostes conviva no mesmo restaurante

se não for o atendente ou o garçom cheio de mesuras servis

médico ou professor – acinte total



enfim não basta que me qualificasse na vida

[e eu o fiz a duras penas – caminhando sempre com minhas próprias pernas]

era preciso ser humilde aos olhos dos bandidos engravatados

e não sujar com minha altivez de pobre impoluto

seus salões caiados de branco e ornados no mau gosto do ouro roubado

era preciso fingir não perceber o olhar de desdém

que eles sempre tinham e sempre têm para uma fatiota que não seja de grife

para um sapato que apenas a aparência tenha da nobreza do couro

era preciso saber o nome das divas da ópera e a elas oferecer o chá da tarde

e até mesmo tocar ao piano uma valsa troncha de chopin

[logo eu que da música tenho apenas o ouvido para ouvir]

era preciso – mesmo que de forma sutil e sem salamaleques – lamber botas

e chupar como doce o amargo desprezo também sutil de cérebros de porcos

e chafurdar de vez em quando na mesma lama onde crescem suas contas bancárias



mas a vida não me qualificou para nada disso e muito mais de jogo de cintura

e de bajulações a indivíduos desprezíveis que das letras conhecem o horóscopo do dia

que de filosofia compartilham a crença do dístico das notas de dólar

porque o seu deus se cobre de verde e está confinado e devidamente adorado

na senha de uma conta secreta nos bancos suíços e de negócios escusos em paraísos fiscais

paraísos de cujos benesses se julgam novos adões e novas evas

paraísos onde promovem suas festas irrigadas a sangue de cocaleiros da bolívia

e onde dançam tangos proibidos com prostitutas dos estúdios de cinema de hollywood

a essas confraternizações só teria eu – o desqualificado – acesso como mestre de cerimônia

ou cantor de músicas sertanejas de chapelão e cinturão de fivela de prata falsificada



não

a vida não me qualificou para isso

minha cintura foi sempre mais rígida do que a moral dessa gente

o meu pescoço duro e meu olhar de o que estou fazendo aqui sempre me condenaram

as patifarias não chegaram a mim

temiam-me ou desprezavam-me para tais

era aquele que não devia estar onde estava

era aquele que não tremia diante da autoridade patronal

que se julga dona de corpos e mentes

era aquele que de vez em quando chutava uma canela

mesmo que tivesse de pagar o preço por tal ousadia



assim qualificado e desqualificado vivi

assim qualificado e desqualificado sobrevivi

não tenho da vida nada mais a cobrar nem à vida devo algum centavo de minha miséria

fui e sou o que sempre fui e o que agora sou

meio trânsfuga

meio idiota

meio-sempre-qualquer-coisa-que-nunca-chegou-a-lugar-nenhum

mas achei sempre o lugar dentro de mim do qual não abro mão

o lugar que não é a latrina de ouro e prata cheia de merda

dessa sociedade podre que se exaure no cheiro nauseabundo

de suas próprias fezes

porque isso é o que me faz ter um mínimo de orgulho de ser humano

e não a besta coberta de ouro que não sabe de que é feito o capim que come



11.7.2022

(Ilustração: Alberto Magri - Menocchio)









15 de dez. de 2022

poema sentimental

 




nem sempre voltamos

para os braços de nossos amigos e amigas



nem sempre voltamos

para os braços de nossos irmãos e irmãs



nem sempre voltamos

para os braços de namoradas ou namorados



nem sempre voltamos

para os braços de nossos noivos ou noivas



nem sempre voltamos

nem mesmo para os braços e abraços de nossos cônjuges



mas para os braços de nosso pai

mas para os braços de nossa mãe

sempre

sempre voltamos



porque são braços eternos

eternos braços abertos

para os nossos abraços de filhas e filhos

mesmo quando nós os filhos e as filhas nos perdemos

por caminhos nunca por eles traçados

por caminhos nunca por eles desejados



por isso quando os braços de filhos e filhas se cruzam sobre si mesmos

ficam os braços abertos de pais e mães e de mães e pais eternamente molhados

no vazio do vazio de mares vermelhos e neste vazio para sempre angustiados



30.12.2021

(Ilustração: Piet Mondrian - o moinho vermelho, 1910)

12 de dez. de 2022

ESPELHOS QUEBRADOS

 


 

... reviro os bolsos, todos, da calça, do velho e puído paletó, da camisa, tiro até a cueca, me sinto um idiota ali parado no meio do quarto, nu, procurando o inefável, o que não podia ter perdido, o seu bilhete, aquele que daria um fim em minha vida de miserável e começaria uma nova trajetória, ora bolas, que besta, que fim que nada, que trajetória de vida ia eu querer com aquela bosta de bilhete, que não dizia nada, absolutamente nada, nem uma promessa, nem um desejo, apenas aquelas palavras secas, duras, sem pontuação, sem nenhuma emoção, que bobagem, agora estou querendo emoção em palavras de um simples bilhete, pego as roupas espalhadas pelo chão, levo-as até o banheiro e jogo tudo no cesto, continuo ali, pelado e pensando, pensando em como fui idiota, em como me deixei manipular, ando de um lado para o outro e de repente me vejo no espelho do guarda-roupas, ridículo, nu, barrigudo, pelancas por todo o corpo e eu choro, não sei por que eu choro ainda, tantas e tantas vezes eu choro por aquele maldito bilhete, aquelas palavras que não saem de minha cabeça, e a imagem do espelho treme quando eu abro a porta do velho armário, que range um pouco, e estala, e range e estala, e então o espelho se parte, em mil pedaços, e eu me contemplo em cada pedaço ali no chão, um olho, um joelho, a boca torta, o pé ferido com um pequeno caco do velho espelho multiplicado, a dor estampada em cada pedaço de mim, e eu penso como será complicado para eles juntar os cacos de um defunto nu, gordo e nu, velho e nu, e eu penso no tal bilhete que um dia ela deixou no bolso do meu velho e puído paletó, e eu lembro o bar, o velho bar do centro da cidade, a despedida, o chope, o chope que desceu amargo, o olho que só vê o velho paletó já meio puído na manga, o olho que olha em volta, meio tímido, meio envergonhado, e tudo ali é muito velho, os garçons são tão velhos quanto as paredes pintadas com gravuras da década de vinte, as cadeiras, até a comida deve ser a mesma que servia Oswald de Andrade e os modernistas quando aprontavam por ali, nas suas bebedeiras, e eu vejo a mim mesmo entre eles, refletido no espelho do velho bar, espelho que um dia um deles, talvez Oswald, Mário, quem sabe? ou até o velho maestro, um deles, um deles trincou ao lançar um copo, por quê? ninguém sabe, ninguém sabe nem de mim nem de outros como eu, velho e só, e ele, o espelho quebrado, ficou ali para sempre, testemunha de meu fracasso, e penso que estou ali naquele velho espelho, entre Oswaldo e Menotti, que estúpido, não sou tão velho, embora esconda as cãs num velho e sujo boné, então eu me lembro que ela havia deixado um bilhete, apenas um bilhete no bolso do velho e puído paletó, há quanto tempo mesmo? não sei, apenas a lembrança dela me afogueou o sexo, o plexo, a dor que subiu do ventre para a barriga e alcançou o coração, uma pontada, apenas uma pontada e a cabeça agora lateja, eu estou aqui, no velho, muito velho quarto da minha velha pensão de quinta, eu sei que não devia lembrar, eu sei que não devia estar chorando assim, no meio de tantos cacos de um espelho quebrado, mas o bilhete, o bilhete que eu trazia há mais de trinta anos no bolso de meu paletó, no bolso revirado do meu velho e inefável paletó puído...



(Ilustração:  Britto Velho)

9 de dez. de 2022

Poema indesejável








Cristo morreu. Dizem que era um deus.

Mas morreu. Não importa como: morreu!



Buda era profeta. Dizem que poderoso.

Mas morreu. Não importa como: morreu!



Galileu Galilei escapou da inquisição.

Mas morreu. Não importa como: morreu!



Zumbi dos Palmares lutou por seu povo

Mas morreu. Não importa como: morreu!



Frida Khalo sofreu e pintou seu sofrimento.

Mas morreu. Não importa como: morreu!



Hemingway foi à guerra. Enfrentou a tirania.

Mas morreu. Não importa como: morreu!



Martin Luther. Foi a voz poderosa dos negros.

Mas morreu. Não importa como: morreu!



Fidel Castro libertou seu povo. Parecia eterno.

Mas morreu. Não importa como: morreu!



Morreram deuses e morreram sábios.

Morreram o coveiro e o menino de rua.

Morre a atriz e morre o ator. Não importa a fama.

Morreram!

Morrerá amanhã a rainha da Inglaterra.

Morreremos todos. Morreremos!

E a Terra – que gira em torno do Sol há... quanto tempo? –

Morrerá também. E o Sol. E as estrelas. E o Universo

Morrerá talvez num buraco negro.

Sabe-se lá por quê.

Morre-se. E é só isso a vida.




21.5.2021

(Ilustração: Gustave Courbet - A Burial at Ornans)

7 de dez. de 2022

poema fatal

 





quando de repente escrevo

que tudo quanto lhe devo

são meus ais

e todos os meus versos não são mais

do que esperanças ocas

– muito poucas –

só as que deixam marcas nas estradas vazias

por onde caminho todos os dias

é porque nesse instante transcrevo

nas três folhas de um trevo

o poema fatal

que começa assim

- sou para você o eterno mal

enquanto você corrói por dentro de mim

a minha carne apodrecida e sem sal



6.11.2021

(Ilustração: Zdzisław Beksiński)

3 de dez. de 2022

o vazio em minha vida

 





abriu-se um espaço

em minha vida

preso estou num laço

onde nada acontece

o vazio total abre em mim a ferida

de nada sentir

de nada pressentir

não tenho mais fome nem sede

apenas me enleio nos fios de uma rede

que a bruma entretece

para me pregar como peixe-espada

apenas um troféu na parede

sem qualquer possibilidade de reagir



por esse vazio não tenho vontade de nada

nem de amar

nem de chorar

nem de pensar

muito menos caminhar

pois meus passos

ficaram tortos

edipianamente amarrados

como se meus sentimentos

estivessem macerados

como folhas de alecrim

dados todos como mortos

e não houvesse por eles

dentro de mim

mais quaisquer lamentos

tampouco quaisquer tormentos





29.11.2022

(Ilustração: Edward Hopper)



30 de nov. de 2022

o último verso

 




se nem sempre pulsa em meu peito

a inspiração

eu me pergunto – por onde

anda a deusa despida de meus versos



despojo-me de mim ante seus devaneios

a buscar na plenitude do universo

o canto orfeônico das estrelas mortas

sob a lua antes da manhã de primavera



somente o canto dos pássaros

no espanto do fruto maduro

faz renascer novamente o esplendor

de me recompor em estranhos poemas

para que a vida – que pulsa em minhas veias –

se reanime em sangue e suor e lágrimas

o todo eu em mim mesmo desfeito em líquidos

no caldo primal de universos nascentes



se no peito o coração que bate calmo

sustém o susto de continuar vivo

eu sou – em sumos e células –

o poeta que regurgita as dores todas do mundo

mesmo que as musas mortas

dos velhos mundos em guerra permanente

se estraçalhem no pó das usinas atômicas



desespero-me no entanto ao pensar que

os ventos de ogivas nucleares

possam regurgitar do sol a energia final

e trazer para a superfície dos mares

os abismos todos dos buracos negros estelares

para o último e lancinante grito

que precede aquele grito primal

do último verso jamais escrito

na pele do último ser humano e do último animal





19.11.2022

(Ilustração: Georg Scholz -  drei totenköpfe)



27 de nov. de 2022

MARCO ZERO

 


Uma tarde, atravessando a praça da Sé, driblando as barracas de tem-de-tudo e a fumaça e o cheiro dos churrasquinhos-de-matar-o-guarda, e os cantos imundos de urina, e o bodum de creolina, e o azedo do suor de quem batalhou o dia inteiro, e o perfume barato das prostitutas, e a água velva dos barbeiros de rua, e a brilhantina mais barata ainda dos almofadinhas que pregam o evangelho, e os incensos florais dos falsos místicos, e as mostardas e ketchups das barracas de cachorro-quente-com-duas-salsichas-a-cinquenta-centavos, e a fumaça de ônibus, e a gasolina dos automóveis, indo em direção à Liberdade, vi, no marco zero da cidade o olho imenso da metrópole a acompanhar meus passos e me detive a contemplar o inequívoco pesadelo de meus sentidos em meio à algaravia que de repente emudeceu e a cidade que era cheiro, luz, movimento, de repente estancou como num filme que você deu pause no videocassete e, no silêncio de cemitério que então se seguiu, eu fiquei ali olhando aquele olho que me olhava e só olhava como se não me visse e eu sabia que estava me vendo como eu estava vendo a íris imensa a abrir-se e fechar-se como uma lente louca de máquina fotográfica dos paparazzi a tirar fotos da morte da princesa Diana da Inglaterra, mas eu sabia que não estava em Paris, estava na praça da Sé em São Paulo e aquele olho do marco zero era o olho de São Paulo, não era o olho de Paris ou de Londres ou de qualquer outra cidade, e eu fiquei ali a perguntar-me de mim para mim mesmo o que queria aquele olho estranho, bem no meio da praça suja e fedorenta, com todo mundo transformado em estátua, até mesmo as fumacinhas das barracas de churrasco e cachorro-quente pareciam paradas, imóveis, pesadas, densas em suas cores cinza e a catedral, ao fundo, parecia apenas uma fantasmagórica aparição com suas torres imensas e vazias dentro do silêncio de profundezas, e eu ali a olhar aquele olho que me olhava e eu olhava para mim, beliscava-me para ver se estava acordado e estava acordado, só a cidade parecia dormir num sono profundo de bêbado e aquele olho parecia querer dizer-me apenas que a cidade estava ali, a cidade estava atenta a tudo e eu era o seu profeta e eu não queria ser profeta de porra nenhuma, então eu saí correndo em direção ao metrô e quando o túnel engoliu o trem e me jogou dentro de mim mesmo eu vi que a cidade estava em cada pedra e em cada olho de cada passageiro, numa tristeza que dava dó e eu chorei.



22.9.97

(Ilustração: Praça da Sé - São Paulo: marco zero; foto de Vinicius Lomaski)



(Você pode ouvir essa crônica, na voz do autor, no podcast indicado acima à direita)

24 de nov. de 2022

noite

 




quando à noite o silêncio cobre o meu leito

não sei bem com quem me deito

se com a saudade de tempos passados

ou com a saudade de tempos ansiados

sei apenas que me cubro de esperança

e o mundo de sonhos que me alcança

na dobra do romper da aurora

e tudo quanto pela vida o tempo explora

estão nos versos que escrevo já desperto

em busca de mim mesmo neste deserto




17.9.2022

(Ilustração: Joseph Wright of Derby - Dovedale by Moonlight,1784)

21 de nov. de 2022

namorados

 





deu-me a vida uma amante

para meus tempos de madurez

quando o sonho fica mais distante



deu-me a vida mais uma vez

o gozo simples de um abraço

o riso claro para um novo caminho



prendeu-me num suave laço

a feliz descoberta de seu carinho

e hoje que somos mais que amantes

e quando nos sentimos apaixonados

quero dizer-lhe muito mais do que antes

somos dois eternos namorados



11.6.2022

(Ilustração: Leonid Afremov - The Passion)

19 de nov. de 2022

mistérios gozosos

 

ulvas de mágicos sabores em vasos líquidos cultivadas

sarças-de-fogo em areias fulvas de desertos espalhadas

melopeia de sinos encapuzados no vértice de triângulos sagrados

à vicária luz da lua o uivo dos lobos selvagens

no círculo de fogo os braços às estrelas levantados

corpos rútilos em sangue esvaídos a colorir as folhagens

o capítulo de fogo-fátuo na pedra tumular

nenhum obstáculo que impeça às ogivas romper o espaço ovular

e os templos erguidos aos deuses antigos e a seus festejos

finalmente em cinzas transformados durante a dança das ninfas nuas

destruídos todos os tabus em torno dos anseios e dos desejos

restam apenas as folhas das ulvas e as vulvas à luz de todas as luas

no altar improfícuo de cerimoniais deletérios

onde se pode gozar e comemorar como animais todos os mistérios



28.8.2022

(Ilustração: escultura de Andrea Riccio - sátiro e sátira)



15 de nov. de 2022

UMA TRISTE SOMBRA ESPREITA, NUM RESTAURANTE JAPONÊS DO BAIRRO DA LIBERDADE, SÃO PAULO, BRASIL, 2002


Sueli, Sueli, nome de ocidental, nome besta esse, gostava mais do meu nome antigo, lá do Japão, Futami, isso sim, nome de gente como eu, mas há tanto tempo me chamam Sueli que até tinha esquecido, e então, lá do Japão a voz, a voz de mais de cinqüenta anos atrás, ainda bonita, no tremor de velho, velha estou eu, puxa vida, dona Sueli, não, dona Futami, setenta e sete anos, sim, no mês que vem, setenta e sete anos, e a voz que veio do Japão, semana que vem, é, semana que vem vou estar no Brasil, o português meio trôpego, mas inteligível, poderíamos nos encontrar, quem sabe, senhora Futami, um jantar, sim, um jantar, e agora ela estava ali, naquele restaurante no bairro da Liberdade, ela não morava na Liberdade, ela morava no Jardim da Saúde, mas estava ali, na Liberdade, à mesa do restaurante, mais de trinta anos não ia a um restaurante chique como esse, e então ela pensou, tudo na minha vida se passou há mais de trinta anos, e eu aqui, nesse restaurante japonês no bairro da Liberdade, não, não era mentira, e ali estava o homem que amara em 1947 e que tivera que ir embora de repente do Brasil, tinha só vinte anos, ele um pouco mais velho, vinte e cinco, um pouco mais, um pouco menos, que importa, juravam amor eterno, juravam nunca se separar, naquele mesmo bairro da Liberdade, eu te amo, Futami, ele dizia e nunca, nunca vou te deixar, e um dia ele foi embora, ele foi obrigado a ir embora, partiu numa madrugada, como um ladrão saindo pela janela, ele foi embora, uma sombra fugitiva, sem falar nada para ninguém, só ela sabia que ele ia embora, ele tinha de ir embora, ainda se escreveram durante um tempo, mas as cartas semanais viraram mensais e um dia ela percebeu que não iam chegar mais, e já se tinham passado vários anos e ela nem notou que ele não escrevia mais, sempre relendo as velhas cartas lá do Japão e então, uma nova bomba de Hiroshima não caiu em Hiroshima, caiu na minha vida, ele se casou, alguém que veio do Japão falou assim, sem mais nem menos, no meio de uma conversa boba de quem chega e tem novidades para contar, e agora ela observa o senhor grisalho e sorridente ali sentado, o presente é sonho, o passado não passou, tudo sonho, e de repente ela olha para ele e vê uma sombra, uma sombra medonha de ódio e vingança, foi por causa dessa sombra que ele foi embora, foi por causa do ódio que ele foi embora, foi por medo de uma vingança terrível que ele foi embora, eu nunca entendi direito por quê, mas ele teve de ir embora, aquele senhor sorridente a chama de senhora Futami, que me chama de Futami, sim, sim, nunca me casei, nunca tive outros homens, Futami ficou te esperando, meu amor, ela não diz, ela só pensa em dizer meu amor, um casal estranho naquele ambiente de jovens, todos tão respeitosos, mas nós somos velhos, velhos como a sombra de uma vingança terrível que ela nunca, eu nunca, jamais consegui entender, um casal, naquele restaurante japonês, um casal de velhos, e ele sorri um sorriso que podia ser de esperança, mas eles são apenas um casal de velhos, e ele conta coisas do passado, de como encontrou a pátria destruída, de como trabalhou tanto e de como prosperou nesses cinquenta anos, e ele fala de um Japão tão moderno, tão bonito, que ela não conhece, fala da mulher que morreu, dos netos que estudam tecnologias que ela não entende, e ele fala de computadores que ela não sabe bem o que são, há mais de cinquenta anos eu vivo te esperando, meu amor, e ele come com elegância e a serve, não tenho fome, meu amor, e ele parece tão jovem, não tem uma só ruga, não tem dente amarelo, não tem cabeça branca, suas mãos estão limpas e lindas e lisas, o tempo não passou, passou apenas uma sombra, e ela olha com amor aquele jovem de vinte e cinco anos e então uma sombra, uma sombra terrível que matou toda a sua esperança de vida está ali, atrás dele, a sombra ainda ali, é apenas uma sombra mas está ali, a sombra da Shindô Remei.(*)






Nota:

(*) A Shindô Remei foi uma organização surgida nas comunidades de imigrantes japoneses e nikkeis no interior de São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial. A Shindô Remei recusou-se a aceitar a derrota militar do Japão e cometeu uma série de homicídios e atentados, após a guerra, contra membros da sua própria comunidade acusados de "derrotistas", por terem aceito o fato da derrota militar japonesa.




4.9.2002

(Ilustração: Kitagawa Utamaro - 1754-1806)


(Você pode ouvir esse conto, na voz do autor, neste link de spotfi:


12 de nov. de 2022

melado

 



quem nunca comeu melado

quando come se lambuza

e eu te como lambuzado

porque é assim que se usa

fazer amor deliciado

no balanço de uma rede

onde gemes de mansinho

onde eu mato a minha sede

a beber devagarinho

o melado do teu gozo

me lambuzo e me escorrego

lambendo teu mel cheiroso

que goteja do teu rego

na mata o tiziu se cala

quando pedes que eu te foda

eu atendo à tua fala

te afogo na porra toda



10.5.2022

(Ilustração: Raffaele Marinetti)



9 de nov. de 2022

lua triste




o menino tira da boca uma rosa - o sorriso de dentes pequenos

ainda os dentes de leite

não sabe para quem sorri o menino de olhos negros e suaves

sabe apenas que sorri porque a vida ainda é um jardim de grama verde

onde a bola pula no pé - esfera obediente a seus meneios

e o futuro é o gol que o amigo não defendeu



cresceram na boca do menino os dentes e a rosa aos poucos se despetalou

era a vida a reservar para ele - depois da terceira esquina

os dias tristes sem bola e sem gol não defendido por amigos que já se foram

agora o menino já não sorri como antes nem tem nos olhos a suavidade de madrugadas

ainda sonha - sim ainda sonha - mas seu futuro está preso à sua angústia

roda a cidade vendendo não a rosa murcha mas o chocolate de origem duvidosa



uma noite voltava o menino-homem-quase-feito para casa de madrugada

no bolso uns poucos reais da féria do dia

pensava ele na mãe a engrossar o angu do jantar

pensava ele na rosa que não era flor mas tinha dentes brancos e belos como ele

pensava e sonhava

quem sabe - um dia um beijo



e então de repente o susto - perdeu camarada

levanta os braços

vira de costas

abre as pernas

não olhe não olhe não olhe para trás

o que o safado está fazendo sozinho à noite

cadê o fruto do roubo

fala logo que eu não tenho tempo a perder com gente como tu

fala desgraçado

cala a boca cala a boca cala a boca

deita

deita

deita



quando se virou para deitar no asfalto frio o frio dos olhos iguais

os olhos iguais ao dele e a pele ao luar igual à dele a pele negra



não sentiu nada o menino-quase-homem-feito quando a rosa explodiu

não sentiu nada

só a lua piscou antes de se esconder atrás de uma nuvem



no barraco forrado de estrelas

o angu ficou duro e esquecido para sempre

sobre a trempe do fogão apagado



7.3.2022

(Ilustração: Michael D’Antuono)

6 de nov. de 2022

lágrimas

 



meus olhos – lagos parados no tempo –

guardam lágrimas tantas

lágrimas que não mais tento

derramar pelas gargantas

de meus desesperos

lagos quase sem água

– água sem gosto e sem temperos –

que jorram apenas a mágoa

de estar sempre a viver

com o pouco chorar

embora com o muito sofrer

e o muito amar



25.9.2022

(Ilustração: Odilon Redon - tears - 1878)

3 de nov. de 2022

inevitável

 


o espanto de um gol contra

o vento gelado de um inverno fora de tempo

o espasmo da flor murcha no vaso quebrado

o beijo negado no ardor do orgasmo



talvez seja tudo isso a vida

talvez seja tudo isso apenas o manifesto

de uma esperança que se desvaneceu



e quando tudo parece pacificado

sopra a bocarra do inefável

a trazer de novo a lembrança do inevitável




26.8.2022

(Ilustração: Andrea Kowch)

31 de out. de 2022

NONA SINFONIA

 



(Para Fayvel)

 ... e eu posso tudo, aqui nesta sala de concerto, eu, um jovem judeu, em Jerusalém, posso tudo, pois "...farei de Jerusalém uma pedra pesada para todos os povos...”(1) e todo o mundo me respeitará, eu, aos dezoito anos, aqui nessa sala de concerto, para ouvir uma orquestra alemã tocar um programa de música clássica que não conheço, que nunca curti, eu gosto mesmo é de rock, mas o pai acha que isso deve completar minha formação, e eu estou aqui, uma pedra pesada numa sala de concerto de Jerusalém, olhando atento a platéia adulta, os detalhes da decoração e o palco de cadeiras solitárias e estantes nuas, tudo muito estranho para mim, e eu pensava onde estão os microfones para amplificar até os últimos decibéis possíveis o som pesado do rock, tudo muito estranho, aqui em Jerusalém, a calma aparente de um possível ataque aéreo porque contra Jerusalém “ajuntar-se-ão... todas as nações da terra” (1), e eu pensava que aquela sala podia ser um alvo, bombas caindo, correria, caos, pessoas ensanguentadas, pisoteadas, e eu pensava aquilo para passar o tempo enquanto não começasse o tal concerto, a minha cabeça podia tudo, até destruir aquela sala de música, e então o som de um instrumento esquisito, uma trompa, sussurrou-me ao ouvido o pai, anunciou que a música ia começar, e eu me preparei para o tédio, se pudesse cochilar, mas meu pai ficaria muito puto da vida, e eu pensei que saco, vai começar, e os músicos foram se acomodando, alguém, o spalla, disse baixinho o pai, e eu nem sabia muito bem o que era aquilo, testou a afinação da orquestra que, depois, ficou quieta, esperando, longos segundos, e então entrou o maestro, aplaudido com vigor educado pela platéia curiosa de ouvir aquela orquestra de alemães, e eu prestei atenção àquele homem esguio e ainda jovem, a erguer a batuta e todos os músicos prontos para, a seu comando, iniciar a música que eu nem sabia muito bem qual era e então a orquestra iniciou um som que eu jamais teria imaginado que existisse, no segundo acorde eu já estava alerta, os ouvidos não podiam estar enganados e num átimo eu viajava, e quando eu me lembro que nada sabia daquela música, ah, idade rebelde, e a orquestra alemã estendeu num andante um alegretto ma non troppo e aquele som começou a entrar em meu cérebro, em meu corpo, e no segundo movimento eu já não era mais judeu, eu era apenas um jovem a navegar naquele andante con moto, e eu via o mundo e sentia que não podia ser apenas um judeu em Jerusalém, enquanto lá fora o perigo sobrevoava nossas cabeças e esse perigo esfumaçava-se num scherzo allegro vivace e eu me via num outro mundo, com outra cabeça, como se eu não fosse mais eu e tivesse em mim todos os sentimentos do mundo e houvesse uma pedra pesada amarrada em meu corpo e houvesse em mim uma necessidade imensa de ter uma pátria, e eu não era mais judeu na viagem de cada nota, e aqueles músicos que não eram judeus me faziam sentir algo que eu jamais pude imaginar que pudesse acontecer, e eu não era mais judeu naquele allegro vivace, eu era um pobre e desesperado jovem sonhando com uma pátria e eu podia compreender que um dia eu também desejei uma pátria, um homem precisa de chão sob os pés para conquistar seus sonhos e precisa da terra desse solo sobre o corpo depois de cumpridos os deveres e eu estava ali a sonhar com minha terra, com meu povo e eu era todos os povos do mundo e eu sentia e sabia que, se existia uma música como aquela, podia haver ainda esperança de uma paz inconcebida e incontestada, desenhada por uma orquestra alemã sob a batuta de um maestro alemão, a executar a nona sinfonia do judeu palestino Franz Schubert...



(1) Zacarias 12:3


Isaias Edson Sidney, 5/6/03


(Ilustração: Jean Dufy - orchestre symphonique (1929)


(Você poderá ouvir esse conto, na voz do autor, neste link de podcast:





28 de out. de 2022

impressões

 





noite em são paulo

entre a fieira branca e a fieira vermelha de carros

a fita negra do rio



no meu quintal

a lua cheia não seca

a roupa no varal



lua minguante

chega o ônibus à rodoviária

desce o migrante

ficou na estrada a reforma agrária



no meu jardim

antes do desmaio

a flor de maio

sorri para mim



desce o lixeiro do caminhão do lixo

ao breu da lua nova

sob jornais os corpos rijos

liga para o patrão: vou recolher

o patrão aprova



na minha cama

cobre-me a sombra da noite

a solidão é um açoite



veloz sobe o carro na calçada

mal vejo quando foge

porque é lua crescente e chove

chove e sinto frio

conto oito corpos no meio-fio

na televisão disseram que eram nove



depois de uma noite insone

não me confortam nem sol nem lua

se eu soubesse tocar trombone

saía agora mesmo para a rua



10.6.2022

(ilustração: Giuseppe Pellizza da Volpedo - Quarto Stato)


25 de out. de 2022

hypnos

 


meu amado estirado cansado ao longo da cama negra um rio calmo dentro da noite e ele ressona a cabeça pendida um pouco para a direita a vasta cabeleira dourada em desalinho o peito quase não se vê subir e descer pela respiração pausada o pênis murcho tocha apagada entre as pernas estou só profundamente só depois do coito e olho o amado ressonando ao longo da cama o vento balança as cortinas negras dentro da noite negra e a minha carne ainda está quente está quente e não está satisfeita a minha carne ela quer mais eu toco o pênis do amado ali descansando entre as pernas entre as penas mal se vê a glande eu toco de leve aquele galo quieto e aquietado no meio da noite a minha mão está fria meu corpo está quente e quando o toco o pênis se retrai mais um pouco mas o amado não acorda é belo o meu amado belo como a palmeira ao sol num céu sem nuvens eu o quero eu o desejo minha carne treme a paixão sobe da minha vagina para o meu peito meus seios intumescem e eu ardo na fogueira que vem de dentro de dentro e me queima e eu quero aquele pau bem duro dentro de mim dilacerando minhas carnes é muito belo o pau do meu amado quando mastro em mar de escolhos abria entre meus velames o caminho do orgasmo eu quero só para mim toda a sua beleza toda a sua carnação encarnada a preencher em mim todos os meus vazios eu o quero o belo pau desse amado armado e navegando entre as minhas entranhas a língua a correr por todos seus poros e a sugar sua seiva o meu amado voa pelo rio sem fim não acorda não acordará e seu desejo é apenas um lago perdido na montanha de gelo e silêncio e eu derreto profundamente só em meus rios de muco e sangue e eu sou aquela que ele amou pela última vez



30.5.2022


(Ilustraçao: Bronze head of Hypnos (god of sleep), 1st - 2nd century AD, copy of a Hellenistic original, found at Civitella d'Arno (near Perugia, Italy), British Museum, London)

22 de out. de 2022

garganta profunda

 

 

a bocarra arreganha

e à pica arrepanha

chupa a cabeça e a molha

com cuspe e me olha

com cara de safada

não espera a gozada

chupa e engole

engole e chupa

não deixa ficar mole

cuspe em catadupa

a pica na boca

a boca na pica

já quase louca

mais dura ela fica

e então o que me espanta

é quando a pica desaparece

bem no fundo da garganta

e quanto mais a sufoca

mais a pica ela a soca

muito bem socada

a boca escancarada

a pica vai bem fundo

cada vez mais no profundo

na garganta enfiada

 

condena um velho moralista

mas conhecido rolista

puta que assim chupa uma pica

de forma tão profunda

também gosta de dar a bunda

retruco eu e peço que reflita

tem essa boca qualquer mulher

que faz no sexo o que quiser

se ela gosta de dar a bunda

é seu gosto e meu por direito

mas fico muito mais satisfeito

quando a pica esquece a bunda

e qualquer preconceito

e entra e sai muito bem aceito

na sua garganta profunda

 

27.1.2022  


  (Ilustração: Frida Castelli - Teia-Labirinto)

 

19 de out. de 2022

fuga

 


quem sabe um dia voar

nas asas de um fado para lisboa

ou dançar um tango em buenos aires

 

pensamentos de fuga

de angústias que estão por vir

de pesadelos que já me assustaram

pisadas de demônios na neve

de países que ficam no extremo do meu coração

 

beijos esquecidos em areias cálidas

de seios outrora fartos

dois montes olivais de tempos perdidos

não há gazelas nas minhas planuras

nem desejos ocultos nas reentrâncias das minhas memórias

mesmo que voe nas asas de um tango p’ra a alfama

mesmo que dance um fado en la plaza de mayo

 

 



21.9.2022

(Ilustração: Inês Dourado - recanto de Alfama, Lisboa)

16 de out. de 2022

AINDA AQUELE BEIJO

 



Estava morrendo. Tinha certeza disso. O corpo pesava uma tonelada no leito desfeito. Estou... estou morrendo. A vida... a vida... a vida... me disseram que veria um videotape de tudo... Preciso lembrar... preciso lembrar...um por um... cada momento... Era a última esperança de ser feliz, precisava lembrar... tudo... a vida... a vida a passar diante de seus olhos como numa tela imensa... não, de cinema, não, quero a tela azul e suave do computador... Ele abria e fechava os olhos. Porra! Cadê o passado... cadê a primeira lembrança... cadê o primeiro brinquedo? Quero a minha vida... A única porra de vida que era sua... que lhe pertencia... a única... Estava morrendo, tinha certeza... estou morrendo e tenho o direito... Queria o direito de ver pela última vez a vida que é a única posse de um homem, a sua história passando pela tela do computador... Que bosta... eu quero lembrar... Ele queria lembrar... sonhar pela última vez... filhos-da-puta! quero a minha lembrança derradeira! Não! Não podem me negar... Não lhe podiam negar isso... É muita sacanagem... não se faz isso com um homem no seu leito de morte... a memória... A memória é tudo que ele possuía... É tudo o que eu tenho... eu quero lembrar... eu preciso lembrar... E seus olhos se fecharam para sempre, com uma única memória que teimou em fixar-se para sempre em sua retina, como um computador travado: a lembrança daquele beijo... aquele maldito beijo!



(Ilustração:  Gustav Klimt - Der Kuss)


(Você pode ouvir esse conto na voz do autor no endereço do podcast ao lado)


13 de out. de 2022

flores murchas

 



murcham as flores à falta de sol

murcham as flores à falta de adubo em suas raízes

murcham todas bem antes do arrebol

essas fêmeas nascidas para serem infelizes

em botão ainda e já maceradas

amordaçadas

ao jugo masculino

impedem-nas que cresçam

impedem-nas que apareçam

são raízes frágeis para o feminino

que habita em suas entranhas

meninas apenas sem desafios

prisioneiras sem qualquer defesa

manejadas por tênues fios

para serem mulheres de cama e mesa

 



1.6.2022

(Ilustração:  escultura de Carybé - Maternidade)

 

10 de out. de 2022

Fases da lua

 



1.

Vago pela noite escura

A pensar no amor distante:

A saudade não tem cura,

Se amor é lua minguante.



2.

Não vejo no céu o luar:

Morreu a lua! Está na cova!

Mas responde alguém, a zombar:

Tonto, a noite é de lua nova!



3.

Terá menos tempo de espera,

Se na terra jogo a semente

Numa noite de primavera,

Tendo no céu lua crescente.



4.

Noite fria, caminho para o mar:

Minha sombra se alonga pela areia,

Como se alonga triste o meu pesar,

Sob a pálida luz da lua cheia.



16.8.2022

(Ilustração: fases da Lua, autoria não identificada)


Você pode ouvir esse texto, na voz do autor, nest link de spotfi:


8 de out. de 2022

pó da memória

 





espanta o poeta o pó da memória

para que aflore enfim o passado

esquecida a história

toda a história de muitas vidas

a pedra da rua torta

lá no fundo da horta

as folhas da jabuticabeira caídas

no chão de terra molhada

a manga madura na ponta do galho

a gabiroba colhida na madrugada

o passo da mãe rangendo o assoalho

o canto sentido de uma sabiá

no galho do manacá

espanta ao poeta que ainda há

sob o pó do presente

a memória perdida

a história esquecida

de um pai sempre ausente

uma pipa parada no ar

um amor que não houve

um canto que ele não soube cantar




8.12.2021

(Ilustração: Lavras/MG: avenida Pedro Salles, anos 50)